sábado, 28 de janeiro de 2017
busca da poesia I
Dessa coisa inexplicavel, de se descobrir em livros, de buscar palavras, até sentir no peito nascer a inconfundível sensação da estrela brilhante que nos move ao impulso irresistível de escrever...Dessa força que angustia, aperta o coração, dá falta de ar,enquanto nao se tem diante do rosto o pedaço de papel em branco.a partir daí, as frases,que surgem prontas, no pensamento, começam a sair nas pontas dos dedos, em um convite, irrecusável à poesia..
sexta-feira, 27 de janeiro de 2017
19 de abril
Uma vez por ano vemos as crianças, braços e pernas enfeitados com penas e cocares e as levamos, orgulhosamente pelas ruas.
Uma vez por ano elas são ensinadas que havia um povo (assim mesmo no passado) que habitava ocas, caçava e pescava para sobreviver.
Uma vez por ano elas se juntam em danças, celebram hábitos encentrais e pintam o rosto com tinta colorida.
Uma vez por ano, quem sabe um pouco mais, há sempre alguém que lembra que houve um povo que já estava aqui antes dos portugueses “descobrirem “ o Brasil...
Muitas, muitas vezes por ano, há tanto tempo que já não sei bem quanto, há um povo que sobrevive, já não sei bem de que forma, longe das ocas, longe das tintas, braços e pernas cobertos de roupas que não são as suas…os rostos não tem mais tinta, só a fuligem das queimadas e a lama dos assentamentos...
Uma, duas, três vezes por semana, há ordens de desocupação, há gritos e brigas, há homens de óculos escuros, que chegam bem perto das famílias e envergam papeis...Ha choro e revolta. Há crianças que correm. À noite, quase sempre, há vigília, porque, às vezes, há tiros. E corpos que caem...
Muitas vezes, ao longo dos anos, há homens de terno e gravata que se juntam para pensar formas de mandar esse povo, aquele mesmo das ocas, para bem longe, depois da curva onde se plantam bois e onde se colhe madeira...Em todo esse tempo, quase nunca o povo das ocas foi convidado a ficar.
Uma, duas, três vezes por semana, os homens de terno dispõem de terras e ocas e tintas, penas e cocares, como se fossem seus, como se os homens das ocas não fossem os verdadeiros donos da terra, desde muito, muito tempo atrás. A verdade, que quase nunca é dita é que os homens das ocas já estavam ali, com seus cocares e penas e tintas, cuidando da terra, pescando e caçando para sobreviver. Enquanto caçavam, pescavam e pintavam os rostos, pouco a pouco chegaram uns, chegaram muitos e de repente não havia mais terra...
Restou um pouco de terra seca, onde acomodar os homens das ocas e restou a certeza de que eles mereciam uma compensação.
Por isso, todo ano, dia 19 de abril, os filhos dos homens de gravata, cantam, dançam e pintam o rosto em homenagem aos homens que não tem mais tinta, nem cocar, nem oca. Nem Terra. E esses, desde há muito tempo, são os que se chamam selvagens.
quarta-feira, 18 de janeiro de 2017
no caminho do meio..
é nesse prender-se no olhar do outro e ali se queimar, mergulhar no que ainda não é ,nem se conhece, no instante de silêncio que se faz,entre a vontade de fugir e a vontade de ficar, entre o talvez e o não, viver e morrer, entre nós e o resto do mundo,que reside o que nos mantem vivos...Na irresistível mistura de sim e não, ditos e não ditos e sorrisos desnecessários que não chegam até o rosto, ficam apenas na memória, está o caminho do meio, onde nunca teremos certeza, onde não há garantias, onde , a cada segundo, o relógio bate as horas certas e é preciso ir embora, para a vida de todo dia, para os compromissos e afetos com destino e função específica, para o que é destinado a dar certo..Fora todas as pequenas certezas de que são feitos nossos dias e anos,ali no espaço do que é feito para ser subentendido, é preciso apurar bem o ouvido e perceber, entre as palavras, geralmente formais e despretensiosas, um fragmento de pulsação e vida....sem estrutura, sem certezas,sem pele ou ossos, apenas alma, fugidia e irremediavelmente infinita..
domingo, 8 de janeiro de 2017
Edelweiss
A primeira vez que nossos olhos, tão acostumados ao calor e à luz dos trópicos, se deparam com as montanhas geladas da Áustria, causa impressão a curva de água que desce pela terra, em meio à neve e, no caminho, vai germinando as sementes que encontra. Entre elas está a Edelweiss, não por acaso a rara flor dos Alpes, eternizada na canção de mesmo nome, que emociona plateias até hoje em The Sound of Music (ou A noviça rebelde, para nós) ...
Se olharmos com atenção, a Edelweiss é uma bela metáfora para o exercício (e o risco) de se expor diante do outro. Assim como a água gelada dos alpes percorre um caminho desconhecido até chegar às sementes, arriscando-se a não germinar e perder-se nos caminhos das florestas austríacas, toda palavra, o gesto, os olhos, arriscam-se a não encontrar nada quando buscam o contato com outros olhos, ou outras mãos. Perder-se no outro é mergulhar no silencioso desconhecido, empreender uma jornada cuja duração não poderemos precisar. A cada passo uma palavra contrária, um descuido e, talvez, a desconexão ou a indiferença. Quase como um sistema delicado de engrenagens, o encontro com o olhar do outro e a imersão nesse universo imprevisível funcionam de modo similar a uma delicada caixa de música, onde, não se sabe bem porque ou como, a um comando determinado de peças metálicas, em algum momento, o encanto se faz e a música surge, na palma de nossas mãos.
Escrevo isso porque, na (des) organização dos enfeites de natal descubro uma pequena caixa de música, presente dos meus pais durante uma visita à cidade suíça de Lucerna. Após um dia inteiro de andanças, os dois me chamaram ao seu quarto e me depositaram um pequeno pacote nas mãos. Abri e me deparei com uma caixinha de música e, após breve dificuldade (ok, não tão breve assim) consegui manipular as engrenagens. Foi quando ouvi os primeiros acordes da canção Edelweiss, que me encantara desde a infância, apaixonada que sempre fui pelas aventuras da família Von Trapp.
Naquele momento mergulhei profundamente nas minhas memórias e emoções de infância, tendo diante dos meus olhos os personagens que povoavam minha cabeça. A jovem leitora, os meninos, a filha mais velha e o belo casal formado por Plummer e Andrews e o Laendler, a dança típica que é executada pelos dois atores, lá pelas tantas dos filmes. Naquela caixa de música escondia-se uma parte da história da cidade, que eu tornava minha também, pela experiência de receber o objeto dos meus pais. Cientes da minha paixão, pai e mãe conseguiram resgatar nas minhas emoções, em segundos, uma parte considerável da minha infância e me conectar àquele lugar, tornando-o parte da minha memória. Enquanto a música toca, volto ao percurso nas montanhas geladas dos alpes austríacos, no deslumbramento dos rios cor de agua marinha, dos picos de neve e das arvores desconhecidas. De tudo que vi, nada ficou mais forte na memória, entretanto, do que o momento em que finalmente ouvi as notas de Edelweiss em uma pequena caixa de música que agora, à guisa de epílogo, tenho exatamente aqui, na palma da minha mão.
Edelweiss em Sound of Music https://www.youtube.com/watch?v=mMuTDdWXbNo
Edelweiss em Sound of Music https://www.youtube.com/watch?v=mMuTDdWXbNo
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terça-feira, 3 de janeiro de 2017
Já de muito tempo que a gastronomia tornou-se o território sagrado onde o glamour e a competição roubam a cena do simples ato de misturar alimentos em complexa e incerta alquimia com um só objetivo: o ponto exato.Dessa forma a textura perfeita, a delicada junção de ingredientes possibilitam a quem come a experiência única, de corpo e alma...
Enquanto isso, por trás do palco, certos saberes permanecem soberanos, restritos ao paladar de poucos, nos quintais e cozinhas mundo agora, objeto de panelas familiares e colheres de pau centenárias, onde cada foto leva consigo a ciência do afeto de muitas outras mãos , que compartilham receitas de pai(e Mãe)pra filhos...
Escrevo isso sob a certeza de que toda experiência convoca todos os sentidos, visão, audição, olfato,muito além do paladar.Se, caso raro,a degustação de uma comida ,mais do que isso,acessa o lugar da memória, vai além, somando a todos os os sentidos o componente fundamental do afeto.
Assim, em cada cozinha onde sobra o afeto e falta o glamour, o peso da colher está na perceção total dos sentidos,que não estão só no ponto exato, mas na experiência única.
Não faltam exemplos de comidas e bebidas cuja memória fará o narrador mais desinteressado fechar os olhos de saudade.No bolo das avós,no mugunzá das cozinheiras há um componente único:o tempo vivido e marcado na memória pelo afeto.e é daqui,do lugar da memória que falo, sentada em uma mesa de madeira simples, de frente para um quintal onde sobram árvores após o almoço caseiro servido por um senhor alegre, que nos recebe, após a visita à praia capixaba do Riacho Doce, com familiaridade e simpatia.Não nos pergunta o que queremos,apenas se temos fome.Em alguns minutos a bandeja vem carregada de ensopados, feijão, arroz,frango,farofa e suco de frutas..Em cada prato, totalmente desprovido de glamour, há a memória dos visitantes que chegaram aqui,atrás da mesma praia paradisíaca e encontraram o mesmo quintal,o mesmo tempero e igual simpatia...Não há receita ou técnica no mundo que possa reproduzir o vento no rosto, o cheiro do tempero,o sorriso da cozinheira e as histórias da senhora que nos traz a comida.Essa experiência não pode ser medida em estrelas,não consta em enciclopédias ou guias gastronômicos.Vai além, porque está permeada do exercício de desapegar-se da aparência e abrir o coração para o outro.
Enquanto isso, por trás do palco, certos saberes permanecem soberanos, restritos ao paladar de poucos, nos quintais e cozinhas mundo agora, objeto de panelas familiares e colheres de pau centenárias, onde cada foto leva consigo a ciência do afeto de muitas outras mãos , que compartilham receitas de pai(e Mãe)pra filhos...
Escrevo isso sob a certeza de que toda experiência convoca todos os sentidos, visão, audição, olfato,muito além do paladar.Se, caso raro,a degustação de uma comida ,mais do que isso,acessa o lugar da memória, vai além, somando a todos os os sentidos o componente fundamental do afeto.
Assim, em cada cozinha onde sobra o afeto e falta o glamour, o peso da colher está na perceção total dos sentidos,que não estão só no ponto exato, mas na experiência única.
Não faltam exemplos de comidas e bebidas cuja memória fará o narrador mais desinteressado fechar os olhos de saudade.No bolo das avós,no mugunzá das cozinheiras há um componente único:o tempo vivido e marcado na memória pelo afeto.e é daqui,do lugar da memória que falo, sentada em uma mesa de madeira simples, de frente para um quintal onde sobram árvores após o almoço caseiro servido por um senhor alegre, que nos recebe, após a visita à praia capixaba do Riacho Doce, com familiaridade e simpatia.Não nos pergunta o que queremos,apenas se temos fome.Em alguns minutos a bandeja vem carregada de ensopados, feijão, arroz,frango,farofa e suco de frutas..Em cada prato, totalmente desprovido de glamour, há a memória dos visitantes que chegaram aqui,atrás da mesma praia paradisíaca e encontraram o mesmo quintal,o mesmo tempero e igual simpatia...Não há receita ou técnica no mundo que possa reproduzir o vento no rosto, o cheiro do tempero,o sorriso da cozinheira e as histórias da senhora que nos traz a comida.Essa experiência não pode ser medida em estrelas,não consta em enciclopédias ou guias gastronômicos.Vai além, porque está permeada do exercício de desapegar-se da aparência e abrir o coração para o outro.
domingo, 20 de novembro de 2016
Quando o caos não gera estrelas brilhantes
A menina na escola termina seu último desenho. Ela se sente feliz, pois acabou a tarefa pedida pela professora. O pedido era para que todas as crianças, uniformemente distribuídas pela sala, desenhassem o que fizeram nas férias. A menina caprichou nas cores, gastou todos os seus azuis na página branca que ficou pesada de tantas histórias... O rosto suado pelo esforço de imprimir todas as cores do arco Iris em giz de cera grosso, as mãos multicoloridas, ela sorria um sorriso de covinhas, as bochechas ainda com restos de cores,o cabelo amassado, retorcido atrás das orelhas..A um sinal da professora, todos os alunos levaram suas composições à mesa grande...Era preciso escolher a melhor..Percorrendo com os olhos cada folha,a menina conseguiu identificar torres, igrejas, praias,todas representadas com riqueza de detalhes.. A professora, séria, ia passando de um em um, analisando as linhas, a perspectiva, um ou outro elemento. Súbito,olhou para ela.. Onde estava o seu, a professora perguntou. Atrás das costas,meio amassada nas mãos, a menina estendeu a folha pesada e colocou-a na mesa,junto aos demais..A professora analisou, franziu a sobrancelha, perguntou o que era.. A menina explicou... A professora pediu detalhes. A menina não tinha. O que tinha era uma profusão de azuis, que tomava toda a superfície do papel em nuances sem nenhuma forma ou detalhe.. Então era isso que tinha feito nas férias?Apenas uma grande mancha azul?Os colegas riram. A professora balançou a cabeça. Desse jeito seria reprovada em composição... Voltou ao seu lugar. Engoliu a recomendação de que deveria estudar a técnica, ou melhor, as técnicas, pois assim como estava jamais poderia concluir o curso... A menina abalou a cabeça e olhou o desenho onde, ao contrário dos demais, ela conseguia ver cada momento das férias... Dobrou a folha, guardou na mochila, foi cuidar da técnica. Aprendeu perspectiva, composição, todos os elementos da sintaxe visual. Foi considerada apta. Saiu da escola e foi cuidar da vida... Aprendeu Matemática, História, Português.Formou-se. Arranjou um emprego. Alugou um apartamento. Paga seus impostos. Vez por outra é vista comprando papel e tinta, quase sempre azuis, para usos inexplicáveis.. E o desenho,das férias,continua guardado no canto mais fundo do armário.
O menino escondeu-se atrás dos amigos. Numa longa fila cada um deveria executar um movimento, sob a avaliação da banca. Eram muitos os pés, apertados nas sapatilhas, sobre o linóleo frio. Ao final da sala os três professores aguardavam... A cada passo que dava o menino sentia mais enjoo e vontade de sair correndo. Ballet era isso? Era por isso que aguentava cotidianamente a gozação dos irmãos e a indiferença do pai?Repuxou nervosamente a malha, ajeitou a sapatilha e alongou os braços. À sua frente os amigos pareciam calmos, enquanto ele queimava...Aquelas longas horas de exame não se pareciam nada com a sensação que teve ao ver pela primeira vez o solo do famoso bailarino, que o inspirou a entrar nas aulas de dança. Soberbo, absoluto, leve, o artista parecia voar,seus pés mal tocando o chão do palco.. Muito diferente daquilo que o menino sentia,como se suas sapatilhas estivessem pregadas no chão... Até que, de passo em passo, chegou sua vez. Pensou morrer, quando ouviu seu nome ser chamado... Caminhou pela sala sem ter certeza de que ainda tinha pernas. Posicionou-se na barra.. E esperou..Não conseguiu ouvir nenhuma das ordens da professora. Apenas lembrava brevemente da ordem dos movimentos, mas não tinha certeza alguma se estava executando-os ou apenas sacudindo braços e pernas, sem direção alguma... A tortura durou meia hora...Assim que foi dispensado, o menino levantou-se, pegou a mochila,disparou pelo corredor e não parou mais de correr,até chegar em casa.Lá escondeu as sapatilhas no canto mais fundo do armário e nunca mais mexeu...Os anos passaram e o menino cresceu.Viajou bastante.Conheceu muitos lugares diferentes...Jantou em restaurantes exóticos.Dirigiu carros incríveis.. Vez por outra assiste a um ballet, da frisa mais cara, de onde sai encantado, olhos vermelhos, mãos retorcidas de dor.. As sapatilhas,contudo,continuam guardadas no armário.
A menina repousou o rosto nas mãos. Era quase meia-noite e a festa continuava animada. Um a um ela via cada um dos seus amigos partirem para a pista de dança, mas ela continuava ali, sozinha..O medo era tão grande, que não conseguia arriscar um passo..Afinal de contas,não fora ela mesmo que dissera que a dança não era importante,quando saíra da última aula?Não conseguiria mesmo aprender as técnicas, o corpo não dava conta de tantas regras e ela se sentia inadequada e incapaz. Fora sempre essa a sensação que a expulsara de todas as aulas de dança que fizera. Ao final da última se convencera de que a dança, definitivamente não era pra ela...Tinha sido esse o diagnóstico da professora, reforçado pelos parentes e amigos,certos de que ela seria ótima em qualquer outra área. Mas era ali,no ritmo da música,no meio do salão, onde o coração pulsava e cada célula do seu corpo pedia pelo movimento,qualquer que fosse ele... Ao canto ela podia ouvir os risos das amigas, condenando qualquer coisa diferente de seus narizes... Ensaiou balançar os pés, mas derrubou uma das cadeiras próximas, chamando atenção para si.. Ouviu risos da mesa ao lado e o ar condescendente do garçom,que lhe oferecera um copo de guaraná...respirou fundo e tomou uma decisão. Levantou da cadeira. Caminhou meio a medo,para o centro do salão e ali fechou os olhos,sentindo o ritmo da música tomar seu corpo.. Começou a balançar-se lentamente,quando ouviu risadas..As moças da mesa ao lado,não havia dúvida, a olhavam e riam...Gelou o peito...Respirou fundo. Baixou os olhos.Tremia...Olhou as mulheres muito profundamente...Virou a cabeça. E saiu do salão...Foi para casa.As mulheres e os salões de dança nunca mais a viram, mas os vizinhos,aos domingos, costumam ouvir um arrastar de móveis e um som de música,abafado,sair de seu apartamento.
domingo, 30 de outubro de 2016
Da micropolítica ou sobre ser coxinha...
Em dias de eleição, me pego lembrando o primeiro momento de confronto com nossa realidade eleitoral. A saber, a eleição de 1989,que elegeria o primeiro residente pós-ditadura. Ficaram gravadas no meu corpo e na minha memória as imagens de uma Santa Teresa definitivamente vermelha, coroada de bandeiras e estrelas. Havia um frenesi coletivo, uma alegria que não se conseguia segurar dentro de casa. Então íamos às ruas, exercendo ruidosamente nosso direito de escolha em todas as esquinas, comentando a possível virada e revoltando-nos em conjunto com o condenável comportamento da Globo no último debate. Eu tinha onze anos. Mesmo ainda criança ou talvez mesmo por isso, me parecia impossível que tantas vontades fossem ignoradas, afinal éramos tantos (eu pensava) e queríamos,precisávamos de mudanças. Não fazia muito tempo que, no chão da sala, minha mãe me relatara a experiência de viver sob um regime totalitário, nos 21 anos que separaram toda a efervescência dos anos 60 de um grande silenciamento político,no fechamento do congresso, suspensão de garantias constitucionais,torturas e desaparecimentos. Tudo me vinha como uma inacreditável história, das de terror, aquelas contadas ao pé da fogueira e que provocam um calafrio na espinha. A realidade nos porões do regime militar ainda me parecia uma reunião de relatos fantásticos e eu custava a acreditar que haveria tanta maldade no mundo e tantas pessoas empenhadas em ocultá-la.
A segunda-feira pós-eleição nos revelou o que seria o primeiro(para mim)dos episódios em que a vontade popular seria negligenciada. Tínhamos enfim um presidente, eleito pela imagem e pelo discurso. Durou três anos. Eu já era adolescente e participei ativamente da campanha “Fora Collor”, seja em greves estudantis,em grêmios, manifestações, panfletagens e demais atividades coerentes com o que eu acreditava ser minha atuação política. Demorou algum tempo para me dar conta da quantidade de interesses e cores que existem entre a utopia e a prática, entre o sistema capitalista e o socialista,entre os diferentes lados por onde é possível sambar. Nesse meio de caminho, compreendi (acho) a diferença entre projeto político e governabilidade, ética e moral e percebi que, como diz Caetano,no que diz respeito à política nacional, quase sempre “it’s a long way” entre o pensar político e a prática cotidiana que visa o bem comum...
Foi então que um dia, entre uma e outra conversa,alguém me disse,no auge de um acalorado debate, que eu estava errada sobre querer pensar “a revolução” como uma forma de transformar o mundo de cima pra baixo, pela arrogância de pensar que nós,os ‘revolucionários’, seríamos os únicos capazes de promover mudanças nas vidas de quem precisava. Calmamente,essa mesma pessoa me descadeirou ao me dizer que a revolução deveria vir do cotidiano, ao fornecermos mecanismos com os quais as pessoas, quaisquer fossem elas, pudessem elas mesmas transformarem suas vidas,como agentes das próprias trajetórias. Demorei dez anos para compreender o discurso e aplicá-lo na minha vida. E é somente hoje, quando tento me equilibrar entre a utopia a realidade,que consigo absorvê-lo inteiramente. Daqui de onde olho, da árdua e transformadora função de educadora onde tento me desenvolver(cujas responsabilidades e profundeza uma vida inteira não daria conta de apreender inteiramente)vejo uma infinidade de pessoas que,cada um a seu modo, tentam mudar o mundo,todos os dias, lutando pela educação,pela saúde,pelo direito, empoderando ou permitindo o empoderamento de um número cada vez maior de pessoas. Daqui, de onde olho, vejo pessoas que, tecnicamente odeiam “política”, praticando-a todos os dias, gastando horas para pensar mecanismos que garantam o bem estar alheio, que democratizem acesso a meios de comunicação e informação, que visibilizem a fala de um número cada vez maior de pessoas em um espaço público que se reconfigura continuamente. Muitos desses agentes transformadores estão por aí, nos bastidores, sejam eles professores,médicos, advogados, profissionais das mais variadas áreas, exercendo sua função social, seja para os ilustres desconhecidos que os cercam,seja para educarem seus filhos, amigos e parentes a respeitarem o lugar e a voz dos amiguinhos. Daqui,do lugar de “subversiva”que escolhi para mim, tais visões e ações me provocam sorrisos e me fazem acreditar cada vez mais na política dos afetos,cotidiana, que se faz nas ruas, nas escolas,nas esquinas, permeada de poesia mas, inadvertidamente, da mais palpável e transparente realidade.
Em tempo:todo esse texto para pensar que a mobilização referente às eleições não se esgota no resultado de hoje.Ao contrário.Os movimentos e práticas fortalecem uma política que se faz além do voto, mas que está entranhada definitivamente no cotidiano,em nossos imaginários e relações,nas escolhas que fazemos e na perspectiva do bem coletivo que se fortalece quando nos vemos como parte de uma vida “em comum”, nas esquinas,nas nossas casas,em nossos ambientes de trabalho,na ideia de que todos temos direito à vida, à dignidade, à saúde, e educação e à comunicação,isso pra dizer o mínimo.Em cada segundo de vida precisamos compreender que a política é o exercício de ser social,algo que não nos é facultativo,mas faz parte da perspectiva contemporânea e humana que nos cerca.
sábado, 17 de setembro de 2016
Da importância de ser palhaço..
Peço licença para falar também um pouco de Domingos, ante a comoção geral.... Não do ator ou da pessoa, posto que desses, infelizmente, não me cabe falar, mesmo diante da admiração que nutria pela atuação deste. Não acompanhei muitos dos seus papeis nas novelas globais, assim como não tive a sorte de conhecer a pessoa, descrita como inesquecível, doce e iluminado, assim como parecem ser sempre aqueles que,corajosamente, encontram-se na plenitude... E Domingos me parecia, nas imagens e na fala, encontrar-se definitivamente na plenitude de si, exalando beleza, seja ela física ou espiritual.. Eu nem sabia bem seu nome, mas já admirava a bela figura do moço de cabelos grisalhos e sorriso cheio, largo, estampando as chamadas da novela ou os programas de entrevista. Mas o que me fez encantar pela pessoa de Domingos foi descobrir a entrevista que ele concedera aos diretores do filme Tarja Branca, cuja temática gira em torno da importância de brincar...Ali,o ator,antes de falar da infância ou do ofício, deixa escapar um sorriso calmo e se declara,antes de tudo,palhaço,sua primeira formação. Ator global, galã de novela, protagonista de filmes, presente em inúmeras campanhas de conscientização, Domingos preferira enfatizar que, mais do que qualquer outra coisa, ser palhaço lhe proporcionara a consciência de si e da vida, permitindo-lhe atingir a plenitude da existência.. Talvez as palavras não tenham sido exatamente essas,mas o sentido era um só:brincar é fundamental...Me apaixonei pela fala e pela transparência do ator.Então me dei conta da importância da figura do palhaço, em um mundo tão competitivo como o nosso, mundo de espelhos e máscaras, de gente frágil encastelada em suas pequenas certezas... Nessa seara ser palhaço é estar em permanentemente desconstrução, sentidos e pensamento, é ter a coragem de desnudar a alma, na medida em que nos colocamos para além da seriedade cotidiana. Ser palhaço é, definitivamente, ser livre, transver a vida, carnavalizar as estruturas sociais. Não somente nos quatros dias “momescos” que, à duras penas, temos direito, mas nos difíceis intervalos do relógio cotidiano, ser palhaço é desterritorializar afetos, propor o novo, convocar o lado mais íntimo desarmado do ser humano, aquele que sobressai quando, por vezes, sem que queiramos, ante o desempenho do sujeito de costumeiro nariz vermelho e sapatos gigantes, deixamos escapar uma gostosa gargalhada. O palhaço não é o ator porque é mais que isso, artista que não constroi um personagem ou limita-se ao desempenho. Vai além. Na beleza do improviso, desconstroi-se como sujeito para reconstruir-sem em experiência plena de sensibilidade e afeto... No exagero dos gestos cria em torno de si uma magia delicada, inserindo-se sutilmente em nossos corações e então, tornando-se eterno.. E se posso desejar alguma coisa ao palhaço Domingos é que ele permaneça,entre afeto e memória, tecendo com a magia dos seus gestos o cotidiano dos que o amam....
sábado, 30 de julho de 2016
sobre liberdades e feminismo.
Aos 11 anos escrevi meu primeiro texto feminista. Eu nem sabia o que era isso, mas foi a primeira vez que o peito doeu, absolutamente cheio de palavras a dizer e, como seria sempre a partir dali, o papel foi o melhor canal para absorver o que eu sentia. Não me lembro de toda a poesia, mas me lembro claramente de dizer que não queria um mundo onde o homem fosse humilhado, mas que estivesse, inevitavelmente, ao meu lado... Eu já buscava nessa época, uma forma de vida que não colocasse em extremidades opostas homem e mulher, ou que privilegiasse qualquer uma das partes,mas um espaço plural, de respeito e de equilíbrio. Confesso que, em algumas situações, o simples fato de ser mulher era uma atitude de protesto. Mulher em uma escola quase que totalmente de meninos (cursei CEFFET e ,na minha
turma, de quarenta alunos, somente seis eram mulheres). Mulher em uma área como o TI, onde ser doce era um convite e ser antipático era um risco profissional. Mulher em uma sociedade em que engravidar aos 17 e se separar aos 20 anos era (ainda é) um crime. Mulher onde ser solteira e demonstrar o que se sente ainda é considerado uma ameaça. Não foram poucas as vezes em que me revoltei quando percebi o tanto de machismo que existe entre mulheres. Somos juízas de nossos corpos, de nossas ações. Nos submetemos bem mais do que antes ao olhar alheio. Precisamos da perfeição, profissional e estética.E julgamos - Como julgamos!!- por idade, tipo físico, comportamento... Criamos nossas filhas para serem lindas, doces,inteligentes e quase nada humanas. E aceitamos como uma regra a imposição de que somos inimigas... E então, quando me sinto sucumbir ao desânimo, ganham força vozes e ações que se levantam contra isso. Dão as mãos. Abraçam. Acolhem. Sinto finalmente quer iremos,todas juntas... Respiro aliviada.
Mas ainda há muito o que fazer. Em muitos grupos feministas as décadas de combate ao machismo criaram uma força em igual medida e em "sentido contrário". Tornamos-nos, muitas vezes, conservadoras, sectárias, intolerantes. Julgamos a sexualidade e o relacionamento alheio pelos olhos do que consideramos “certo”. Proferimos verdades sobre como as outras devem ou não se comportar. Fazemos discursos sobre conceitos morais ligados ao judaico-cristianismo e nem sequer piscamos os olhos.. Afinal de contas, queremos ou não a liberação sexual?Temos que ser éticas, dizemos. Confundimos relações com contratos e nos surpreendemos reproduzindo os mesmos modelos do patriarcado, criando fogueiras onde penduramos os que ,acreditamos,não estão de acordo com a regra. Quem trai, afinal,merece ser exposto, julgado, agredido. No calor da luta, no cansaço dos anos, nos tornamos uma força contra-hegemônica, igual e no sentido oposto da força que combatemos. E nos perdemos no caminho. Enquanto navego por entre discursos femininos e feministas, percebo que nos perdemos em nossas batalhas, buscando coerência em campos tão diversos quanto a sexualidade. Queremos regras. Ainda. E como somos conservadoras! Nossos movimentos, jovens e cheios de energia, caducaram. Precisamos do poder ultrajovem, como diria Drummond, de propor outros olhares, outras sensibilidades, onde compreendamos que o sujeito é feito de complexidade e que não são necessários mais enquadramentos... É preciso respeito ao que se sente. Apenas. E afeto pelo que o outro/outra é...
Uma coisa ainda me aterroriza:enquanto continuarmos nos baseando em modelos de Relacionamento ditado pelo patriarcalismo jamais seremos verdadeiramente livres.
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quinta-feira, 14 de julho de 2016
Sobre todas as coisas
As coisas,as pessoas que amamos,são eternas até certo ponto quando, por incomunicabilidade ou incompletude,planam por nosso imaginário, no limite necessário entre o presente e o vir a ser.
Pensá-las é pensar que não se acabam nunca e de certa forma perduram, pela dor ou pelo afeto, no correr de nossas horas cotidianas e em tudo que tentamos ser. Tornam-se findas (e tudo em alguma medida finda)quando, de repente, olhamos para trás e vemos que, de alguma forma também se moveram de onde estavam e seguem caminhando em direção a seus sonhos. Então vasculhamos nossos baús de memória à procura da lacuna que faltava, entre intervalos de silêncio e sorrisos e nos deparamos, inacreditavelmente, com o perdão e a constatação de que prosseguimos e que, de algum modo crescemos, apesar das dores e dos não vividos...
O que sobra, para além dos anos, é o afeto, para perdurar por sobre a memória e colocar no rosto, vez por outra, enquanto estivermos distraídos, o mais inexplicável dos sorrisos. E se ainda persiste uma palavra a ser dita é de que teu caminho continue a ser trilhado, com afeto e com coragem para que sejas tudo aquilo que eu tinha exata certeza de que serias um dia... Que teu coração não caiba dentro do peito e que sorria, sempre.
Que não deixe de acreditar em teus sonhos e que, por vezes, sem que possas perceber, o mesmo sorriso, subitamente, possa chegar ao teu rosto e aquecer teu peito, assim como ao meu.
terça-feira, 28 de junho de 2016
navegar é preciso
Diz-se da educação que é processo, aprendizado, discurso, metodologia. Em verdade digo que a educação, enquanto prática cotidiana, se assemelha muito ao ato de lançar-se ao mar, navegando no desconhecido. Antes, traça-se a rota,combina-se o trajeto,pensa-se na estratégia a ser executada. Antes de tudo,pensa-se o porto de destino. Trajetória escolhida, é hora de fazer as malas, juntar toda a força e coragem que tiver disponíveis,vestir as melhores roupas e sair do conforto do lar.
Uma vez na sala de aula, ops, no mar, todas as nossas certezas, planos, estratégias,são postos à prova simultaneamente. Em alguns momentos tudo parece estar contra nós. Não conhecemos nossa tripulação, não temos pleno controle do navio, nem tão pouco sabemos como estará o tempo todos os dias. Em alguns momentos temos plena ciência de que o leme não está nas nossas mãos. Temos, ao longo do tempo, uma vaga ideia de nossos objetivos e mapeamentos prévios. Às vezes, só o que podemos fazer,quando nossa embarcação está em plena tempestade, é correr a tapar os buracos das balas de canhão que são lançadas continuamente, sem que consigamos saber de onde vieram ou porque tentam nos atingir. Os estragos que as balas fazem racham inúmeras vezes nosso casco, fazendo entrar água em toda a embarcação. Em alguns dias tudo o que queremos fazer é naufragar enquanto esperamos ventos favoráveis. Ao nosso redor o mar profundo e impenetrável do tempo, onde tentamos navegar, segue impávido,sem que consigamos provocar-lhe o mínimo retardo ou alteração. Em um dia qualquer, enquanto estivermos amarrados ao mastro esperando que a tempestade passe sentiremos no rosto o calor do sol e nos depararemos com nossa embarcação surpreendentemente ancorada no porto de destino.
quinta-feira, 23 de junho de 2016
Está na ordem do dia: nos ônibus, nas praças, nos consultórios,nas farmácias,na padaria,no jornaleiro.Nos programas diários,na conversa de elevador,nos relatos de domingo, no jornal, nas revistas,nas redes sociais.Não tem um lugar do mundo em que não se converse sobre emagrecimento e alimentação saudável.Sobre potencializar nossos corpos e mentes.As lojas de produtos ditos saudáveis pululam e a quantidade de gente que acumula histórias de sucesso só aumenta.Seria um momento de desapegarmos dessa acumulação ainda moderna/pós-moderna que nos fez consumir em excesso e adotarmos hábitos mais humanos, em um tempo mais nosso?Seria ótimo se, com essa onda de preocupação com saúde aceitássemos nossos corpos como são e buscássemos o equilíbrio.Só que não.Tentamos voar cada vez mais alto esculpindo nossos músculos, braços,pernas,barrigas, cabelos,rostos,nos esticando em máquinas, lasers, químicas, dobrando nossos esforços a cada dia.E aqui dentro continuamos insatisfeitos e infelizes..O que vai sobrar dessa nova onda de narcisismo,que parece ter nada a ver com o "cuidado de si"?de fato não estamos cuidando de nós mesmos.Estamos cuidando da imagem que queremos ter.Belos,fortes,bem sucedidos, os que não sentem dor,os que não se fragilizam,os que nunca param para contar os estragos...Os que não podem mostrar seus defeitos.Parece irônico que esse texto esteja no lugar do "show do eu",mas talvez seja o único espaço possível de diálogo(será?) em um mundo tão cheio de visibilidades e tão avesso ao essencial.
quinta-feira, 16 de junho de 2016
Como dizia o poeta
Feito essa gente que não muda com a lua, que não vê poesia, que está sempre contando tempo e dinheiro, que acumula camadas de resistência e pequenas covardias, escondidos sob mantos de não ditos e não vividos. Na medida em que caminha,os bolsos abarrotados de “nãos”,a máscara impressa na pele escorre ante o suor que o esforço em ser frio,distante, inacessível, proporciona ao sujeito...Enquanto isso, do lado de fora da janela,há o pôr de Sol, os pequenos encantamentos cotidianos, as mãos estendidas, a imprevisibilidade do encontro e a dor lancinante que virá,porque ela sempre virá,seja “sim” ou “não” sua opção de vida. Melhor é abrir portas e janelas, deixar o sol entrar, reconhecer a sua inevitável fragilidade diante do outro, que sempre vai nos invadir em alguma medida.. Enquanto você tentar ignorar o óbvio, na esquina ao lado um poeta, sentado em um banco de pedra, escreve distraído,mais uma estrofe de seu belo poema. Ele ri de sua seriedade,de sua falsa rigidez, zomba de suas certezas...Ele sabe,mais profundamente do que imagina, que defesas só são necessárias quando nos encontramos invariavelmente tocados pelo afeto... Então, ousa...Mergulha no desconhecido... Aventure-se a não ter respostas.. E seja,então,infinitamente maior do que era até então...E surpreendentemente mais feliz..
trilha sonora:
https://www.youtube.com/watch?v=oIelCdlc0hA
terça-feira, 31 de maio de 2016
Alice através do espelho
E então Alice se deparou com o espelho. Tinham sido três longos anos de batalhas e aventuras,por mares nunca antes navegados..Até mesmo para ela, sedenta por novidades, o maravilhoso cheiro do mar e o infinito azul do horizonte começavam a se configurar cansativos...Sentia falta do cheiro dos seus livros velhos e do gosto morno do chá das cinco..Sentia falta da sensação do sol da tarde sobre a colcha de retalhos da sua cama e de ter na cabeça todos os sonhos do mundo...Posicionou o leme na rota e manejou o pesado navio no curso desejado.Estava finalmente voltando para casa... Três dias depois, chegava ao mesmo porto de antes. As coisas, entretanto, estavam muito diferentes.Havia uma grossa camada de poeira por sobre os móveis e teias de aranha em todos os livros..Caminhou pelo corredor vazio e as tábuas de madeira rangeram,como se estranhando sua presença..A cada passo sentia-se mais estranha naquela casa.Quando afinal chegou na porta do seu quarto, parou por alguns segundos diante dela.Voltar era retomar um ponto antes de sua viagem,voltar ao que era, recomeçar?Pensou por um momento. Não. Já não era mais a mesma de antes. Deixara muito de si nesse longo período, onde tudo que fizera fora tentar manter-se viva diante de tantos perigos.O perigo maior, contudo, fora perder-se de si mesma, na obrigação de seguir em frente e controlar a vontade de voltar, fugir das dificuldades e correr para seu quarto,onde todos os sonhos eram possíveis e estavam ao alcance da mão.Lá fora o vento soprava forte, fazia muito frio e estaria irremediavelmente sozinha.Suspirou profundamente e girou a maçaneta, abrindo a porta.Dentro do quarto,uma nesga de sol penetrava pela cortina amarela..Ali dentro tudo permanecia como antes, embora encoberto pela mesma camada de poeira que tomava o restante da casa. Caminhou até a escrivaninha e abriu a primeira gaveta. Ali dentro, seus diários, amarelados pela falta de uso. Em quase todas as páginas o desejo incontrolável de voar, de subir mais alto, de alcançar o infinito, descrito com sua mal cuidada e apressada letra. Alice sorriu. Por quanto tempo permanecera ali, protegida, voando apenas através de suas palavras. Agora, três anos passados, percebia que fora necessário preencher-se de poesia ao longo do tempo para que pudesse suportar o duro cotidiano da viagem. Cada dia era tão pleno de acontecimentos que, ao final de cada um, não conseguia o silêncio necessário para alcançar a poesia das palavras. Agora que estava de volta, entretanto, havia muito que escrever. Na memória, cada fato vivido adquiria, no silêncio do quarto, um significado particular. Tentou abrir a segunda gaveta. Trancada. Estranhou.Então lembrou-se da chave que levava no pescoço...Como fora difícil trancar essa gaveta e levar no peito por três anos a chave que poderia abri-la...Mas agora já era hora de revisitar cada memória e estar pronta para o que viesse...Destrancou a gaveta.Lá no fundo, uma caixa com algumas fotos e infinitos textos..Por dez anos essa caixa fora todo o seu mundo,preenchido minuto a minuto nas longas horas da espera. E como ela amava cada elemento dessa caixa. Um a um foi tirando dali as fotos e as palavras, incertas, em instantes da mais incontrolável alegria ou do mais profundo desespero. Nenhuma delas, entretanto, representava o que ela era naquele momento, três anos depois..Havia um vazio no seu peito depois de atravessar todo esse tempo. Algo que talvez jamais fosse preenchido de novo..Mas ali dentro, no silêncio absoluto do seu quarto aquela caixa ainda pulsava de palavras não ditas e silêncios inexplicáveis....Fechou os olhos.E então ouviu um leve ruído dentro do quarto...Olhou em redor..Continuava sozinha, mas algo se mexia perto da janela.Alice caminhou até lá e descobriu, nas dobras da cortina,uma bela borboleta azul,que ela ainda não vira por ali. Suas asas se debatiam com pressa, tentando se desprender do tecido da cortina. Alice ajudou-a a se soltar . De repente a borboleta tomou o quarto, batendo as asas em liberdade, finalmente. Encantada, Alice seguiu-a com os olhos, tentando adivinhar seus movimentos. Como era bela, ainda que desconhecida. Assim, esquecida da caixa aberta sobre a escrivaninha, ela começou a acompanhar cada movimento da borboleta, ora se aproximando, ora fugindo, sem nunca parar de voar.. Súbito, a borboleta dirigiu-se ao espelho sobre a prateleira da parede, mergulhando nele. E então desapareceu. Assustada, sem conseguir entender nada, Alice correu para o espelho e tentou descobrir uma fenda, um furo, onde a borboleta pudesse ter entrado.Não encontrou nada. Em vez disso, enquanto tateava o vidro do espelho, encontrou seu próprio reflexo. Havia três anos que ela não olhava para si mesma, preocupada que estava em ficar apresentável, eloquente e digna para uma plateia diferente a cada dia. Quem era aquela que olhava para ela com tanta intensidade ?O rosto, cansado, os cabelos, ainda no desarranjo da viagem, assim como as roupas... Mas os olhos, depois da borboleta, tinham um brilho diferente, desconhecido..Era como se, no encantamento do encontro, se permitira olhar para si mesma, descobrindo no caminho a desordem interior... Ali dentro, toda sua poesia, guardada por dez longos anos, permanecia viva, na ânsia de sair... No voo da borboleta ela vira um universo desconhecido, mas belo, de encantamento, que a atraia, irremediavelmente. Pouco importava não estivesse ainda na sua melhor forma, no desarranjo da volta... Era ali, no desassossego do encontro, que vislumbrava um caminho a seguir, onde não lhe ocorria percorrer terras distantes, mas mergulhar no seu ainda desconhecido universo particular,de imagens, silêncios e alguns sorrisos. Alice então puxou uma cadeira e subiu à altura do espelho. Tocou sua superfície fria e se sentiu irremediavelmente atraída para o centro do espelho, mergulhando em seu interior... Ali no quarto ficaram no chão uma bússola e um mapa que ela carregara por toda a viagem. A caixa de lembranças permaneceu na cama, aberta e desarrumada e da janela,ainda hoje, é possível enxergar a luz do sol que insiste em entrar,por entre as sombras da cortina.
quinta-feira, 26 de maio de 2016
Baixio das 30 bestas
Recebo, com uma pontada de dor, o tapa na cara diário que nos assalta a cada lida nas manchetes diárias, quando um caso de violência sai das sombras do cotidiano e chega até nós. De tão chocada, me custa até escrever. Respiro profundamente. E as palavras vêm, porque há uma urgência de dizer. No Rio de Janeiro, na região de Jacarepaguá, uma mulher foi estuprada (já perceberam como a própria palavra contém uma carga de violência, linguística, se é que isso é possível e simbólica?) por 30 homens. Não 10, não 20, mas 30 homens que, não satisfeitos, filmaram a “ação” e comentaram o resultado no corpo da moça, com prazer e escárnio. Ufa!Está escrito. Agora não há mais saída. É preciso falar. É preciso encontrar um sentido (não para o ato), mas para que mais atos como esse não ocorram. É preciso resistir. Enquanto tento me recuperar penso em Foucault, quando observara o corpo como superfície de inscrição dos acontecimentos e percebo que não há corpo mais atravessado pelo tempo e pelas ações humanas do que o corpo feminino. Escondido, enquadrado, recortado, formatado e, mais recentemente, exibido à exaustão, sofremos na pele cada gota de história humana.Através das décadas, lutamos pelo direito ao sexo, à pílula, ao aborto e continuaremos lutando, infinitamente. Agora, sob uma nova luz, a da sonoridade (essa palavra difícil, de fácil execução) que implica em dizer que não somos divididas em “amigues” e inimigas”, que não somos intrinsecamente constituídas em inveja e submissão. Ao contrário. Somos capazes de construir uma rede de afetos por entre nossos úteros e protegermos umas às outras. E chorarmos juntas a cada ação, posto que afeta cada uma de nós. Por esse motivo, é com absoluta tristeza que vejo meninas e mulheres desdenhando dos movimentos feministas, geralmente por desconhecimento. Porque é impossível desdenhar daquilo que se é..E ,em última instância, o que o movimento feminista defende é o direito da mulher a ser o que quiser, inclusive machista.Mas esse texto não é sobre feminismo,embora tenha sido escrito sob essa ótica.Para compreender o estupro e exposição de uma menina por 30 homens é preciso descer mais fundo, mergulhar até o pescoço na lama de nossos silenciamentos(enquanto sociedade judaico-cristã permeada de moralismos) e alcançar o baixio. Coincidentemente, no mesmo dia em que consigo ver o polêmico filme de Claudio Assis, recebo a notícia do estupro coletivo( a cada escrita da palavra penso que vou me acostumar a ela,mas não, ela me violenta, a cada vez que a escrevo).
A escolha por utilizar esse filme como metáfora não se dá pela intenção do diretor, acho eu. Mas pelos mecanismos do imaginário que involuntariamente conectaram a “ficção” à “realidade” em meu cérebro. Afinal, é desse lugar (porque sempre há um lugar de fala), do cinema e do imaginário, além do feminino, que lanço minha fala. Seria Baixio das Bestas um retrato denuncista do comportamento de agroboys em relação ao corpo feminino?Ou apenas uma ousadia estética, em um cinema nacional permeado de monotonia e lugares comuns?A essa altura do campeonato, não me cabe julgar... Apenas utilizo-me do filme como alegoria para um crime, cada vez mais comum, de violentar e expor o corpo feminino, como se ele não pertencesse a ninguém. Como se sua função fosse ser exposto, agredido, humilhado, atravessado por regras, limitações, moral.Como se a única coisa que se pudesse sentir por esse corpo fosse pena. Ou raiva, a ponto de tocá-lo ou de destruí-lo. E então, inevitavelmente, chegamos às bestas. Percebo que estava adiando esse momento, posto que também eu temia ser tomada pela raiva por aquilo que eu também não entendo.Como é possível,pais, filhos, irmãos, amigos, estuprarem coletivamente uma mulher, machucarem-na a ponto de seu corpo ficar irreconhecível e, não satisfeitos, exibirem seu corpo para a audiência? Que direito fundamental é esse que os toma, na medida de se acharem donos desse corpo, fonte de prazer e dor?Seriam mesmo as bestas de Claudio Assis, desumanizadas, sujas, envoltas em sombras, para que a violência que os constitui seja definitivamente afastada de nós, seres “do bem”? Infelizmente, não. O baixio das bestas está em cada esquina, em cada casa, ainda que existam flores na janela e carinho entre os moradores. A permissividade com a violência contra a mulher está embaixo das camas, dentro das geladeiras, nas bancas de jornal. Está escondida nos corredores, em meninas que sofrem abusos dos parentes por anos a fio e sob silêncio de suas parentes mais próximas. Está na leniência como reproduzimos brigas entre meninas, sob o jugo da piada, do meme(“já acabou,Jessica?”), no silêncio com que assistimos à humilhação das “amantes”, ou ‘destruidoras de lares”, como se seus corpos tivessem que ser expostos, bem como suas ações?(como era mesmo o nome do homem que foi traído pela mulher que dizia que ia à manicure?).Está na ignorância ou irresponsabilidade pela forma como nossos irmãos, amigos, filhos tratam suas próprias mulheres e as mulheres com quem convivem.Está na severidade como julgamos outras mulheres, em suas escolhas,em seus cabelos, em suas roupas, afinal de contas, a idade nos obriga a cortar nossos cabelos, cobrir nossos corpos, esconder nossa sexualidade. Está,em última instância, na forma como criamos nossas meninas,com suavidade e delicadeza, em contrapartida aos meninos, que precisam ter namoradinhas desde a barriga, serem ativos, sexualizados, destemidos, ousados?Estamos, todos, mergulhados no mais profundo silêncio e na mais vergonhosa culpa, quando nos calamos ante a exploração, exibição do corpo feminino alheia à sua vontade. Quando, sob o signo da liberdade criativa, aplaudimos a criação de obras onde as mulheres se tornam objeto de violência extrema e sádica,ao mesmo tempo em alvo de fetiche que, em lugar de dar voz, silencia e objetifica. Que o direito à criação e a estética seja um fato. Mas que possam existir contrapartidas, para que o imaginário possa ser atravessado pro brechas, por possibilidades outras,onde o corpo feminino fale, seja ouvido, se permita ser exposto por vontade e prazer e nunca como um ato de submissão. Enquanto isso,em nossas casas,ruas e demais espaços de convivência, que observemos com devida atenção de que forma estamos criando nossos meninos e convivendo com nossos amigos e parentes, de modo que não sejamos nós a nos calarmos diante de pequenas agressões e silenciamentos. Sabemos o que uma relação sexual não consentida pode provocar em um corpo e em uma alma. Pensemos nessa agressão multiplicada por 30 e usemos toda nossa força e sensibilidade para evitar que em qualquer corpo ou mente a naturalização de qualquer ideia remotamente próxima a isso possa germinar, sejamos homens, mulheres, cis, trans, etc, etc, etc.
domingo, 15 de maio de 2016
Terra Estrangeira
Daqui de onde olho o mundo me parece muito diverso.
Já são sujeitos, na correria diária, cruzando ruas, nos afazeres diários.
Entre eles, percebo as engrenagens invisíveis, que os movimentam e os mantém em pé.
Nas esquinas geladas de uma Lisboa ainda belíssima, meus passos seguem-lhe os movimentos, tentando apreender-lhes os gestos, que me parecem cadenciados e ritmados, como um grande balé.
Suas falas, num forte sotaque, se fazem canção diante de meus ouvidos maravilhados.
Vez por outra ouço um sorriso, percebo um silêncio e tento adivinhar-lhe o motivo.
Impávidos, eles seguem, sem sequer me notar.
Não notam também a beleza que encontro em seus gestos, nas ruas que percorrem, nos muros envelhecidos, nas pontes centenárias, nos belos azulejos azuis que resistem ao tempo. Tudo lhes é familiar e intimo. Portanto, parecem não conseguir mais ver.
Daqui de onde estou tudo me parece demasiado, enorme, belíssimo.
Sigo extasiada por suas cidades, contemplo suas casas e igrejas seculares, me detenho por horas diante de suas paisagens mágicas.
E respiro, profundamente, quando me deparo com suas praias, ainda geladas, permeadas de rochas e areia branca, por entre montanhas e caminhos sinuosos,que seguem sempre em frente até descortinarem um oceano infinito e azul, onde nascem as maiores ondas do mundo. Ali, com o vento frio batendo no rosto, me dou conta, inadvertidamente, da presença imponderável, mas definitiva de Deus. Se existe no mundo um lugar como esse, há que se buscar, em alguma coisa, o elemento transcendente fundamental, posto que nem só de engrenagens pragmáticas vivemos então.
Diante desse quadro, inexplicável e intangível paisagem, me posto em silêncio quase religioso .
Tempo e espaço, nesse momento não me parecem mais do que uma pobre invenção , feita para os tolos.
Aqui a única linguagem possível é a do infinito.
segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016
.. Sobre parir estrelas brilhantes..
Ora( direis) ouvir discursos, na busca incessante da construção do ego. Eu?Eu não!
Busco estrelas, na árdua batalha de desconstruir a mim mesma.
Caminho difícil esse, sem prêmios ou títulos, mãos vazias e rosto no vento.Apenas..
Enquanto vocês permanecem no sol, entre loas e elogios mútuos, eu me contento em enfrentar o enorme buraco que carrego dentro do meu peito.
É ali onde continuamente surge,num espaço entre o coração e as costelas, um espaço vazio que lateja,incessantemente, dificultando a respiração...
É inútil ignorar a dor que rasga a carne.
Ema vez que os olhos veem, o peito aperta, as mãos se fecham e sinto como se minha pele fosse retirada de uma só vez de meus ossos...
Como eu queria que o conhecimento me bastasse, que a simples observação do fenômeno pudesse chegar, na emergência cotidiana de mais um dia.
Não basta.
Porque o que vejo, quando vejo não está no que a retina absorve, mas o que a alma sente e uma vez atravessada a carne não resta opção: é preciso gritar ao mundo...
Em vão tentarei fechar os olhos, me esconder no canto mais escuro da casa. Nada adiantará. Escreva!Escreva!Berram todas as células do meu corpo...
Sucessivamente, sou assaltada por palavras, por frases, que se formam diante dos meus olhos, sem que possa controlar...
E então,quando já não é mais possível respirar, meus dedos buscam o reconfortante barulho do teclado, ante a assustadora visão da folha em branco.
Já não é mais possível fugir.
Estou ali,diante de mim mesma, minhas dores e incertezas expostas.
E vem a primeira palavra, perdida num emaranhado de caminhos alternativos..
. Uma vez escrita a primeira frase, o texto já não é mais meu.
Ele me controla, me leva pela mão, sem que possa precisar se será prosa ou poesia o que resultará de todo o processo...
Sei que, sem forças para controlar o caos que se forma, obedeço e me curvo diante do nascimento de mais uma estrela, que guarda em si porções iguais de brilho e de sombras.
quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016
Eu amo a poesia que grita, a palavra que berra,o verso que me chuta pelos degraus abaixo...
Ah!como eu amo quando uma frase, um grito ritmado e metrificado me toma e me leva mundos acima, rio abaixo, e enquanto me encanta e me faz caminhar às cegas,arranca,de súbito a pele.E eu que antes fora reservada e tímida, me vejo assim,no meio da rua deserta das minhas próprias certezas, sem defesa, descalça, a seguir estrelas...E ainda que caminhe às cegas, tenho rumo certo. Ora e qual outro não seria senão a intensa,apaixonada,busca do encantamento, com que me faça estender os braços e as pernas,tentando alcançar o infinito?ah!e logo eu que passei a vida a colecionar máscaras com que me proteger dos olhares alheios estou aqui,despida de qualquer defesa, rezando por mais algumas palavras,só mais uma, com que me elevar novamente ao desassossego...
quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016
Sobre histórias.Contadas e vividas
Acabo de ver a última temporada de Downton Abbey (sem spoilers, prometo!) e súbito me dou conta de algo simples, mas surpreendente, como geralmente são as grandes verdades que por vezes nos batem no rosto por anos, até que lhes voltemos o olhar. A verdade é que, independente do que escolhemos ser, somos construídos e, frequentemente, desconstruídos por boas histórias. Elas atravessam cada segundo de nossas vidas, desde os murmúrios que ouvimos ao nascer, passando pelas canções ouvidas na hora de dormir, até o glorioso momento em que podemos nós mesmos mergulhar no universo das palavras e imagens. Para cada um de nós o contato com a narrativa guarda um pouco de magia, esteja ela nas mãos de nossas avós ou nas páginas coloridas dos nossos primeiros livros. E assim,seres simbólicos que invariavelmente somos, aprendemos a dialogar com o tempo das coisas, nos costumes e linguagens que precisamos e queremos aprender...Mais do que isso: em cada capitulo da vida, aos poucos buscamos perceber a organização dos personagens, a mise-en-scène de cada momento, a fala adequada a cada ocasião..Crescemos. Mas continuamos sendo amadores, com bem pontuou a seu tempo, Sarah Bernhardt. E continuamos, ao longo da vida, a sermos preenchidos por histórias onde, por vezes, somos os protagonistas. Outras, meros figurantes. Lembro de, em criança, me encantar pelo que me parecia a mais bela de todas as funções:a do narrador. Afinal, era dele o poder de criar mundos, personagens, promover encontros e desencontros, fazer rir e chorar. Hoje, enquanto me percebo seriamente triste pelo fim de uma série, me dou conta de que ainda creio na mesma coisa:não pode haver magia maior do que , usando apenas a imaginação, convidar o outro(leitor ou espectador) a aproximar-se de seu mundo interior, pintando com as cores escolhidas uma infinidade de histórias e emoções com as quais é possível pegar o sujeito pela mão,esteja ele onde estiver e levá-lo a qualquer lugar...Se ele vai mergulhar ou apenas olhar de longe, isso ficará a cargo do tamanho da sensibilidade que terá... Quanto ao narrador, se tornará maior, na medida em que compartilhar um pouco (ou muito) de si com todo aquele que ousar se aproximar dele.....Não pode haver no mundo magia maior, a de tocar alguém que não se conhece, que não está a seu lado mas com quem , de algum modo e atravessando todas as barreiras de tempo e espaço,se está inevitavelmente de mãos dadas...
quinta-feira, 7 de janeiro de 2016
O corpo ainda pulsa
O corpo ainda pulsa
Sob camadas de pele o corpo ainda pulsa.
Protegido nos véus das máscaras e tintas, o corpo ainda resiste.
Dilacerado por milhares de enquadramentos,o corpo ainda deseja e se abre em convite.
Ao corpo não cabem dúvidas ou vergonha.
Ele é. Absoluto e desejante. Existe e basta.
Não tem tamanho ou proporção exata.
Gênero ou formato adequado.
Só potência e vontade.
Se tentam limitá-lo, o corpo escorrega por entre as coxias,desaparece num átimo e ressurge,lépido e faceiro,segundos depois."Aqui estou", ele diz."Aturem-me!"
E prossegue,a descoberto,mesmo ante tantas camadas de roupa.
Por baixo de tudo, os poros permanecem abertos e a pele convida ao toque, à revelia de regras e linguagens.
De que servem os símbolos,diz o corpo,se já sou movimento e transgressão?
De que me serve a moral, se permaneço incógnita aos que tentam me decifrar?
Sou, antes de tudo,potência e,ainda que tentem,ao menor descuido me lanço ao espaço,ergo meus braços e espicho minhas pernas, tentando alcançar o infinito.
Sob camadas de pele o corpo ainda pulsa.
Protegido nos véus das máscaras e tintas, o corpo ainda resiste.
Dilacerado por milhares de enquadramentos,o corpo ainda deseja e se abre em convite.
Ao corpo não cabem dúvidas ou vergonha.
Ele é. Absoluto e desejante. Existe e basta.
Não tem tamanho ou proporção exata.
Gênero ou formato adequado.
Só potência e vontade.
Se tentam limitá-lo, o corpo escorrega por entre as coxias,desaparece num átimo e ressurge,lépido e faceiro,segundos depois."Aqui estou", ele diz."Aturem-me!"
E prossegue,a descoberto,mesmo ante tantas camadas de roupa.
Por baixo de tudo, os poros permanecem abertos e a pele convida ao toque, à revelia de regras e linguagens.
De que servem os símbolos,diz o corpo,se já sou movimento e transgressão?
De que me serve a moral, se permaneço incógnita aos que tentam me decifrar?
Sou, antes de tudo,potência e,ainda que tentem,ao menor descuido me lanço ao espaço,ergo meus braços e espicho minhas pernas, tentando alcançar o infinito.