terça-feira, 31 de maio de 2016

Alice através do espelho



E então Alice se deparou com o espelho. Tinham sido três longos anos de batalhas e aventuras,por mares nunca antes navegados..Até mesmo para ela, sedenta por novidades, o maravilhoso cheiro do mar e o infinito azul do horizonte começavam a se configurar cansativos...Sentia falta do cheiro dos seus livros velhos e do gosto morno do chá das cinco..Sentia falta da sensação do sol da tarde sobre a colcha de retalhos da sua cama e de ter na cabeça todos os sonhos do mundo...Posicionou o leme na rota e manejou o pesado navio no curso desejado.Estava finalmente voltando para casa... Três dias depois, chegava ao mesmo porto de antes. As coisas, entretanto, estavam muito diferentes.Havia uma grossa camada de poeira por sobre os móveis e teias de aranha em todos os livros..Caminhou pelo corredor vazio e as tábuas de madeira rangeram,como se estranhando sua presença..A cada passo sentia-se mais estranha naquela casa.Quando afinal chegou na porta do seu quarto, parou por alguns segundos diante dela.Voltar era retomar um ponto antes de sua viagem,voltar ao que era, recomeçar?Pensou por um momento. Não. Já não era mais a mesma de antes. Deixara muito de si nesse longo período, onde tudo que fizera fora tentar manter-se viva diante de tantos perigos.O perigo maior, contudo, fora perder-se de si mesma, na obrigação de seguir em frente e controlar a vontade de voltar, fugir das dificuldades e correr para seu quarto,onde todos os sonhos eram possíveis e estavam ao alcance da mão.Lá fora o vento soprava forte, fazia muito frio e estaria irremediavelmente sozinha.Suspirou profundamente e girou a maçaneta, abrindo a porta.Dentro do quarto,uma nesga de sol penetrava pela cortina amarela..Ali dentro tudo permanecia como antes, embora encoberto pela mesma camada de poeira que tomava o restante da casa. Caminhou até a escrivaninha e abriu a primeira gaveta. Ali dentro, seus diários, amarelados pela falta de uso. Em quase todas as páginas o desejo incontrolável de voar, de subir mais alto, de alcançar o infinito, descrito com sua mal cuidada e apressada letra. Alice sorriu. Por quanto tempo permanecera ali, protegida, voando apenas através de suas palavras. Agora, três anos passados, percebia que fora necessário preencher-se de poesia ao longo do tempo para que pudesse suportar o duro cotidiano da viagem. Cada dia era tão pleno de acontecimentos que, ao final de cada um, não conseguia o silêncio necessário para alcançar a poesia das palavras. Agora que estava de volta, entretanto, havia muito que escrever. Na memória, cada fato vivido adquiria, no silêncio do quarto, um significado particular. Tentou abrir a segunda gaveta. Trancada. Estranhou.Então lembrou-se da chave que levava no pescoço...Como fora difícil trancar essa gaveta e levar no peito por três anos a chave que poderia abri-la...Mas agora já era hora de revisitar cada memória e estar pronta para o que viesse...Destrancou a gaveta.Lá no fundo, uma caixa com algumas fotos e infinitos textos..Por dez anos essa caixa fora todo o seu mundo,preenchido minuto a minuto nas longas horas da espera. E como ela amava cada elemento dessa caixa. Um a um foi tirando dali as fotos e as palavras, incertas, em instantes da mais incontrolável alegria ou do mais profundo desespero. Nenhuma delas, entretanto, representava o que ela era naquele momento, três anos depois..Havia um vazio no seu peito depois de atravessar todo esse tempo. Algo que talvez jamais fosse preenchido de novo..Mas ali dentro, no silêncio absoluto do seu quarto aquela caixa ainda pulsava de palavras não ditas e silêncios inexplicáveis....Fechou os olhos.E então ouviu um leve ruído dentro do quarto...Olhou em redor..Continuava sozinha, mas algo se mexia perto da janela.Alice caminhou até lá e descobriu, nas dobras da cortina,uma bela borboleta azul,que ela ainda não vira por ali. Suas asas se debatiam com pressa, tentando se desprender do tecido da cortina. Alice ajudou-a a se soltar . De repente a borboleta tomou o quarto, batendo as asas em liberdade, finalmente. Encantada, Alice seguiu-a com os olhos, tentando adivinhar seus movimentos. Como era bela, ainda que desconhecida. Assim, esquecida da caixa aberta sobre a escrivaninha, ela começou a acompanhar cada movimento da borboleta, ora se aproximando, ora fugindo, sem nunca parar de voar.. Súbito, a borboleta dirigiu-se ao espelho sobre a prateleira da parede, mergulhando nele. E então desapareceu. Assustada, sem conseguir entender nada, Alice correu para o espelho e tentou descobrir uma fenda, um furo, onde a borboleta pudesse ter entrado.Não encontrou nada. Em vez disso, enquanto tateava o vidro do espelho, encontrou seu próprio reflexo. Havia três anos que ela não olhava para si mesma, preocupada que estava em ficar apresentável, eloquente e digna para uma plateia diferente a cada dia. Quem era aquela que olhava para ela com tanta intensidade ?O rosto, cansado, os cabelos, ainda no desarranjo da viagem, assim como as roupas... Mas os olhos, depois da borboleta, tinham um brilho diferente, desconhecido..Era como se, no encantamento do encontro, se permitira olhar para si mesma, descobrindo no caminho a desordem interior... Ali dentro, toda sua poesia, guardada por dez longos anos, permanecia viva, na ânsia de sair... No voo da borboleta ela vira um universo desconhecido, mas belo, de encantamento, que a atraia, irremediavelmente. Pouco importava não estivesse ainda na sua melhor forma, no desarranjo da volta... Era ali, no desassossego do encontro, que vislumbrava um caminho a seguir, onde não lhe ocorria percorrer terras distantes, mas mergulhar no seu ainda desconhecido universo particular,de imagens, silêncios e alguns sorrisos. Alice então puxou uma cadeira e subiu à altura do espelho. Tocou sua superfície fria e se sentiu irremediavelmente atraída para o centro do espelho, mergulhando em seu interior... Ali no quarto ficaram no chão uma bússola e um mapa que ela carregara por toda a viagem. A caixa de lembranças permaneceu na cama, aberta e desarrumada e da janela,ainda hoje, é possível enxergar a luz do sol que insiste em entrar,por entre as sombras da cortina.

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