quinta-feira, 26 de maio de 2016

Baixio das 30 bestas

Recebo, com uma pontada de dor, o tapa na cara diário que nos assalta a cada lida nas manchetes diárias, quando um caso de violência sai das sombras do cotidiano e chega até nós. De tão chocada, me custa até escrever. Respiro profundamente. E as palavras vêm, porque há uma urgência de dizer. No Rio de Janeiro, na região de Jacarepaguá, uma mulher foi estuprada (já perceberam como a própria palavra contém uma carga de violência, linguística, se é que isso é possível e simbólica?) por 30 homens. Não 10, não 20, mas 30 homens que, não satisfeitos, filmaram a “ação” e comentaram o resultado no corpo da moça, com prazer e escárnio. Ufa!Está escrito. Agora não há mais saída. É preciso falar. É preciso encontrar um sentido (não para o ato), mas para que mais atos como esse não ocorram. É preciso resistir. Enquanto tento me recuperar penso em Foucault, quando observara o corpo como superfície de inscrição dos acontecimentos e percebo que não há corpo mais atravessado pelo tempo e pelas ações humanas do que o corpo feminino. Escondido, enquadrado, recortado, formatado e, mais recentemente, exibido à exaustão, sofremos na pele cada gota de história humana.Através das décadas, lutamos pelo direito ao sexo, à pílula, ao aborto e continuaremos lutando, infinitamente. Agora, sob uma nova luz, a da sonoridade (essa palavra difícil, de fácil execução) que implica em dizer que não somos divididas em “amigues” e inimigas”, que não somos intrinsecamente constituídas em inveja e submissão. Ao contrário. Somos capazes de construir uma rede de afetos por entre nossos úteros e protegermos umas às outras. E chorarmos juntas a cada ação, posto que afeta cada uma de nós. Por esse motivo, é com absoluta tristeza que vejo meninas e mulheres desdenhando dos movimentos feministas, geralmente por desconhecimento. Porque é impossível desdenhar daquilo que se é..E ,em última instância, o que o movimento feminista defende é o direito da mulher a ser o que quiser, inclusive machista.Mas esse texto não é sobre feminismo,embora tenha sido escrito sob essa ótica.Para compreender o estupro e exposição de uma menina por 30 homens é preciso descer mais fundo, mergulhar até o pescoço na lama de nossos silenciamentos(enquanto sociedade judaico-cristã permeada de moralismos) e alcançar o baixio. Coincidentemente, no mesmo dia em que consigo ver o polêmico filme de Claudio Assis, recebo a notícia do estupro coletivo( a cada escrita da palavra penso que vou me acostumar a ela,mas não, ela me violenta, a cada vez que a escrevo). A escolha por utilizar esse filme como metáfora não se dá pela intenção do diretor, acho eu. Mas pelos mecanismos do imaginário que involuntariamente conectaram a “ficção” à “realidade” em meu cérebro. Afinal, é desse lugar (porque sempre há um lugar de fala), do cinema e do imaginário, além do feminino, que lanço minha fala. Seria Baixio das Bestas um retrato denuncista do comportamento de agroboys em relação ao corpo feminino?Ou apenas uma ousadia estética, em um cinema nacional permeado de monotonia e lugares comuns?A essa altura do campeonato, não me cabe julgar... Apenas utilizo-me do filme como alegoria para um crime, cada vez mais comum, de violentar e expor o corpo feminino, como se ele não pertencesse a ninguém. Como se sua função fosse ser exposto, agredido, humilhado, atravessado por regras, limitações, moral.Como se a única coisa que se pudesse sentir por esse corpo fosse pena. Ou raiva, a ponto de tocá-lo ou de destruí-lo. E então, inevitavelmente, chegamos às bestas. Percebo que estava adiando esse momento, posto que também eu temia ser tomada pela raiva por aquilo que eu também não entendo.Como é possível,pais, filhos, irmãos, amigos, estuprarem coletivamente uma mulher, machucarem-na a ponto de seu corpo ficar irreconhecível e, não satisfeitos, exibirem seu corpo para a audiência? Que direito fundamental é esse que os toma, na medida de se acharem donos desse corpo, fonte de prazer e dor?Seriam mesmo as bestas de Claudio Assis, desumanizadas, sujas, envoltas em sombras, para que a violência que os constitui seja definitivamente afastada de nós, seres “do bem”? Infelizmente, não. O baixio das bestas está em cada esquina, em cada casa, ainda que existam flores na janela e carinho entre os moradores. A permissividade com a violência contra a mulher está embaixo das camas, dentro das geladeiras, nas bancas de jornal. Está escondida nos corredores, em meninas que sofrem abusos dos parentes por anos a fio e sob silêncio de suas parentes mais próximas. Está na leniência como reproduzimos brigas entre meninas, sob o jugo da piada, do meme(“já acabou,Jessica?”), no silêncio com que assistimos à humilhação das “amantes”, ou ‘destruidoras de lares”, como se seus corpos tivessem que ser expostos, bem como suas ações?(como era mesmo o nome do homem que foi traído pela mulher que dizia que ia à manicure?).Está na ignorância ou irresponsabilidade pela forma como nossos irmãos, amigos, filhos tratam suas próprias mulheres e as mulheres com quem convivem.Está na severidade como julgamos outras mulheres, em suas escolhas,em seus cabelos, em suas roupas, afinal de contas, a idade nos obriga a cortar nossos cabelos, cobrir nossos corpos, esconder nossa sexualidade. Está,em última instância, na forma como criamos nossas meninas,com suavidade e delicadeza, em contrapartida aos meninos, que precisam ter namoradinhas desde a barriga, serem ativos, sexualizados, destemidos, ousados?Estamos, todos, mergulhados no mais profundo silêncio e na mais vergonhosa culpa, quando nos calamos ante a exploração, exibição do corpo feminino alheia à sua vontade. Quando, sob o signo da liberdade criativa, aplaudimos a criação de obras onde as mulheres se tornam objeto de violência extrema e sádica,ao mesmo tempo em alvo de fetiche que, em lugar de dar voz, silencia e objetifica. Que o direito à criação e a estética seja um fato. Mas que possam existir contrapartidas, para que o imaginário possa ser atravessado pro brechas, por possibilidades outras,onde o corpo feminino fale, seja ouvido, se permita ser exposto por vontade e prazer e nunca como um ato de submissão. Enquanto isso,em nossas casas,ruas e demais espaços de convivência, que observemos com devida atenção de que forma estamos criando nossos meninos e convivendo com nossos amigos e parentes, de modo que não sejamos nós a nos calarmos diante de pequenas agressões e silenciamentos. Sabemos o que uma relação sexual não consentida pode provocar em um corpo e em uma alma. Pensemos nessa agressão multiplicada por 30 e usemos toda nossa força e sensibilidade para evitar que em qualquer corpo ou mente a naturalização de qualquer ideia remotamente próxima a isso possa germinar, sejamos homens, mulheres, cis, trans, etc, etc, etc.

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