terça-feira, 3 de janeiro de 2017

Já de muito tempo que a gastronomia tornou-se o território sagrado onde o glamour e a competição roubam a cena do simples ato de misturar alimentos em complexa e incerta alquimia com um só objetivo: o ponto exato.Dessa forma a textura perfeita, a delicada junção de ingredientes possibilitam a quem come a experiência única, de corpo e alma...
Enquanto isso, por trás do palco, certos saberes permanecem soberanos, restritos ao paladar de poucos, nos quintais e cozinhas mundo agora, objeto de panelas familiares e colheres de pau centenárias, onde cada foto leva consigo a ciência do afeto de muitas outras mãos , que compartilham receitas de pai(e Mãe)pra filhos...
Escrevo isso sob a certeza de que toda experiência convoca todos os sentidos, visão, audição, olfato,muito além do paladar.Se, caso raro,a degustação de uma comida ,mais do que isso,acessa o lugar da memória, vai além, somando a todos os os sentidos o componente fundamental do afeto.
Assim, em cada cozinha onde sobra o afeto e falta o glamour, o peso da colher está na perceção total dos sentidos,que não estão só no ponto exato, mas na experiência única.
Não faltam exemplos de comidas e bebidas cuja memória fará o narrador mais desinteressado fechar os olhos de saudade.No bolo das avós,no mugunzá das cozinheiras há um componente único:o tempo vivido e marcado na memória pelo afeto.e é daqui,do lugar da memória que falo, sentada em uma mesa de madeira simples, de frente para um quintal onde sobram árvores após o almoço caseiro servido por um senhor alegre, que nos recebe, após a visita à praia capixaba do Riacho Doce, com familiaridade e simpatia.Não nos pergunta o que queremos,apenas se temos fome.Em alguns minutos a bandeja vem carregada de ensopados, feijão, arroz,frango,farofa e suco de frutas..Em cada prato, totalmente desprovido de glamour, há a memória dos visitantes que chegaram aqui,atrás da mesma praia paradisíaca e encontraram o mesmo quintal,o mesmo tempero e igual simpatia...Não há receita ou técnica no mundo que possa reproduzir o vento no rosto, o cheiro do tempero,o sorriso da cozinheira e as histórias da senhora que nos traz a comida.Essa experiência não pode ser medida em estrelas,não consta em enciclopédias ou guias gastronômicos.Vai além, porque está permeada do exercício de desapegar-se da aparência e abrir o coração para o outro.

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