domingo, 30 de outubro de 2016

Da micropolítica ou sobre ser coxinha...

Em dias de eleição, me pego lembrando o primeiro momento de confronto com nossa realidade eleitoral. A saber, a eleição de 1989,que elegeria o primeiro residente pós-ditadura. Ficaram gravadas no meu corpo e na minha memória as imagens de uma Santa Teresa definitivamente vermelha, coroada de bandeiras e estrelas. Havia um frenesi coletivo, uma alegria que não se conseguia segurar dentro de casa. Então íamos às ruas, exercendo ruidosamente nosso direito de escolha em todas as esquinas, comentando a possível virada e revoltando-nos em conjunto com o condenável comportamento da Globo no último debate. Eu tinha onze anos. Mesmo ainda criança ou talvez mesmo por isso, me parecia impossível que tantas vontades fossem ignoradas, afinal éramos tantos (eu pensava) e queríamos,precisávamos de mudanças. Não fazia muito tempo que, no chão da sala, minha mãe me relatara a experiência de viver sob um regime totalitário, nos 21 anos que separaram toda a efervescência dos anos 60 de um grande silenciamento político,no fechamento do congresso, suspensão de garantias constitucionais,torturas e desaparecimentos. Tudo me vinha como uma inacreditável história, das de terror, aquelas contadas ao pé da fogueira e que provocam um calafrio na espinha. A realidade nos porões do regime militar ainda me parecia uma reunião de relatos fantásticos e eu custava a acreditar que haveria tanta maldade no mundo e tantas pessoas empenhadas em ocultá-la. A segunda-feira pós-eleição nos revelou o que seria o primeiro(para mim)dos episódios em que a vontade popular seria negligenciada. Tínhamos enfim um presidente, eleito pela imagem e pelo discurso. Durou três anos. Eu já era adolescente e participei ativamente da campanha “Fora Collor”, seja em greves estudantis,em grêmios, manifestações, panfletagens e demais atividades coerentes com o que eu acreditava ser minha atuação política. Demorou algum tempo para me dar conta da quantidade de interesses e cores que existem entre a utopia e a prática, entre o sistema capitalista e o socialista,entre os diferentes lados por onde é possível sambar. Nesse meio de caminho, compreendi (acho) a diferença entre projeto político e governabilidade, ética e moral e percebi que, como diz Caetano,no que diz respeito à política nacional, quase sempre “it’s a long way” entre o pensar político e a prática cotidiana que visa o bem comum... Foi então que um dia, entre uma e outra conversa,alguém me disse,no auge de um acalorado debate, que eu estava errada sobre querer pensar “a revolução” como uma forma de transformar o mundo de cima pra baixo, pela arrogância de pensar que nós,os ‘revolucionários’, seríamos os únicos capazes de promover mudanças nas vidas de quem precisava. Calmamente,essa mesma pessoa me descadeirou ao me dizer que a revolução deveria vir do cotidiano, ao fornecermos mecanismos com os quais as pessoas, quaisquer fossem elas, pudessem elas mesmas transformarem suas vidas,como agentes das próprias trajetórias. Demorei dez anos para compreender o discurso e aplicá-lo na minha vida. E é somente hoje, quando tento me equilibrar entre a utopia a realidade,que consigo absorvê-lo inteiramente. Daqui de onde olho, da árdua e transformadora função de educadora onde tento me desenvolver(cujas responsabilidades e profundeza uma vida inteira não daria conta de apreender inteiramente)vejo uma infinidade de pessoas que,cada um a seu modo, tentam mudar o mundo,todos os dias, lutando pela educação,pela saúde,pelo direito, empoderando ou permitindo o empoderamento de um número cada vez maior de pessoas. Daqui, de onde olho, vejo pessoas que, tecnicamente odeiam “política”, praticando-a todos os dias, gastando horas para pensar mecanismos que garantam o bem estar alheio, que democratizem acesso a meios de comunicação e informação, que visibilizem a fala de um número cada vez maior de pessoas em um espaço público que se reconfigura continuamente. Muitos desses agentes transformadores estão por aí, nos bastidores, sejam eles professores,médicos, advogados, profissionais das mais variadas áreas, exercendo sua função social, seja para os ilustres desconhecidos que os cercam,seja para educarem seus filhos, amigos e parentes a respeitarem o lugar e a voz dos amiguinhos. Daqui,do lugar de “subversiva”que escolhi para mim, tais visões e ações me provocam sorrisos e me fazem acreditar cada vez mais na política dos afetos,cotidiana, que se faz nas ruas, nas escolas,nas esquinas, permeada de poesia mas, inadvertidamente, da mais palpável e transparente realidade. Em tempo:todo esse texto para pensar que a mobilização referente às eleições não se esgota no resultado de hoje.Ao contrário.Os movimentos e práticas fortalecem uma política que se faz além do voto, mas que está entranhada definitivamente no cotidiano,em nossos imaginários e relações,nas escolhas que fazemos e na perspectiva do bem coletivo que se fortalece quando nos vemos como parte de uma vida “em comum”, nas esquinas,nas nossas casas,em nossos ambientes de trabalho,na ideia de que todos temos direito à vida, à dignidade, à saúde, e educação e à comunicação,isso pra dizer o mínimo.Em cada segundo de vida precisamos compreender que a política é o exercício de ser social,algo que não nos é facultativo,mas faz parte da perspectiva contemporânea e humana que nos cerca.

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