sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

19 de abril

Uma vez por ano vemos as crianças, braços e pernas enfeitados com penas e cocares e as levamos, orgulhosamente pelas ruas. Uma vez por ano elas são ensinadas que havia um povo (assim mesmo no passado) que habitava ocas, caçava e pescava para sobreviver. Uma vez por ano elas se juntam em danças, celebram hábitos encentrais e pintam o rosto com tinta colorida. Uma vez por ano, quem sabe um pouco mais, há sempre alguém que lembra que houve um povo que já estava aqui antes dos portugueses “descobrirem “ o Brasil... Muitas, muitas vezes por ano, há tanto tempo que já não sei bem quanto, há um povo que sobrevive, já não sei bem de que forma, longe das ocas, longe das tintas, braços e pernas cobertos de roupas que não são as suas…os rostos não tem mais tinta, só a fuligem das queimadas e a lama dos assentamentos... Uma, duas, três vezes por semana, há ordens de desocupação, há gritos e brigas, há homens de óculos escuros, que chegam bem perto das famílias e envergam papeis...Ha choro e revolta. Há crianças que correm. À noite, quase sempre, há vigília, porque, às vezes, há tiros. E corpos que caem... Muitas vezes, ao longo dos anos, há homens de terno e gravata que se juntam para pensar formas de mandar esse povo, aquele mesmo das ocas, para bem longe, depois da curva onde se plantam bois e onde se colhe madeira...Em todo esse tempo, quase nunca o povo das ocas foi convidado a ficar. Uma, duas, três vezes por semana, os homens de terno dispõem de terras e ocas e tintas, penas e cocares, como se fossem seus, como se os homens das ocas não fossem os verdadeiros donos da terra, desde muito, muito tempo atrás. A verdade, que quase nunca é dita é que os homens das ocas já estavam ali, com seus cocares e penas e tintas, cuidando da terra, pescando e caçando para sobreviver. Enquanto caçavam, pescavam e pintavam os rostos, pouco a pouco chegaram uns, chegaram muitos e de repente não havia mais terra... Restou um pouco de terra seca, onde acomodar os homens das ocas e restou a certeza de que eles mereciam uma compensação. Por isso, todo ano, dia 19 de abril, os filhos dos homens de gravata, cantam, dançam e pintam o rosto em homenagem aos homens que não tem mais tinta, nem cocar, nem oca. Nem Terra. E esses, desde há muito tempo, são os que se chamam selvagens.

Nenhum comentário: