terça-feira, 19 de maio de 2020

Amor,pois que seja essencial.

O verso ficou escondido no cursor o dia todo. Enquanto as horas passavam, a mesma palavra, mil vezes experimentada, ainda provocava silêncio. E idêntico nó na garganta. Por que não dizer pânico. Inútil escarafunchar na memória uma rima precisa. Impossível. Onde buscar a métrica, o ritmo cadenciado de palavras se não havia sintagma possível na experiência humana, para descrever? Minuto a minuto, os olhos pousados nas imagens, repassada uma a uma, na tentativa de entender. O que? Como? Se já não havia o que dizer. Como disfarçar. Era ali, no intervalo de duas notas, no espaço entre dois corpos, onde se queria estar. Mais nenhum outro. E da dor do medo, veio a constatação. Amor. Nenhuma outra palavra. E de repente tudo fez sentido. Amor, dá-me tua mão. E me abraça forte, porque são de tempestade os ventos que chegam. E é preciso que estejamos aqui. Olhando na mesma direção. Porque no momento em que te digo sim, há uma engrenagem invisível que nos distancia e já há um vento gelado que corta minha pele. E me dou conta de que estou invariavelmente só. Em vão tentarei ser forte, mas é de dor o caminho que escolho e tu nem sempre estará aqui. Como seguir, tu me perguntas, quando caminhamos quase o tempo todo em total solidão e não há controle possível diante do tempo? E a verdade da palavra? Uma vez dita, onde aprendê-la? Não nas mãos vazias, o instante capturado da fotografia, a nota exata da canção? Tudo em igual medida, fugidio e incerto. Tanto quanto as palavras que incessantemente escrevo. Em vão. Porque a verdade do que sinto não pode ser codificada, mas apenas experimentada no espaço entre eu e você. E o amor é um lugar em que somente a coragem pode levar. Andar que se faz só, pela força de ser. Frio que atinge a espinha. Escolha de cada dia. Ser e estar. E sentir. E sofrer. Lugar feito de presença, luz e sombra, sim e não. trama fina de prosa e poesia. Amor,pois que seja essencial.

segunda-feira, 11 de maio de 2020

Sobre amor

Acordou com uma sensação de presença, aquecida no meio do peito. E pareceu-lhe ouvir as palavras que lhe tinha dito, antes de dormir, quase uma oração, de afeto e cuidado, pouco antes de fechar os olhos. Dormiu de um sono só e acordou para a nova semana tendo como testemunha um céu furiosamente azul. Então sentiu-se despertar como de um longo sonho. Perscrutou, como de costume, na memória do sonho recente alguma vibração indesejada, para expulsá-la, diante do dia que iniciava. E encontrou dentro de si um sentir diferente, como uma reza recitada ao longe, as mãos postas entrelaçadas ao terço, as palavras sabidas murmuradas quase em silêncio, tecendo uma trama de proteção e afeto em torno dela. Então finalmente aceitou, a benção de se saber amada, de ter a pele tocada pelo afeto alheio. Aceitou que o novo dia viria e que iria enfrentá-lo, com a certeza de ter um lugar, em meio ao caos, onde repousar em silêncio, quando as luzes se apagassem e pudesse ouvir sua própria respiração. Aceitou finalmente o amor como um toque profundo, que vinha do corpo alheio, multiplicando os sentidos e fazendo-a mais sensível ao mundo que a cercava. De repente sentiu os pés firmemente plantados no chão e a coragem de vivenciar o que quer que viesse, porque o amor cobria-como um manto, da mesma forma que a avó entendia os lençóis frios sobre suas pernas, antes de dormir. Então aceitou que não estaria pronta e que a dor viria, mas que a receberia como a um amigo, na certeza de ter feito a única escolha possível. Aceitou que em algum lugar alguém rezava pela sua vida e sentia a mesma vibração que ela, como se o universo se reorganizasse diante dos olhos dos dois, criando uma rede de proteção que só se sabe visível aos apaixonados. E que a paixão era uma marca profunda que sentia na pele todos os dias, quando se levantava, mas que nunca lhe dera tanta certeza de quem era e de qual caminho seguir. E aceitou a entrega como um lugar onde viria com todos os sentimentos, de dor, desejo, medo e tristeza, depositando-os ao chão, diante dos olhos alheios. Aceitou a profunda necessidade que tinha de estar ali e da magia indefinida que sempre sentia quando atravessava o limiar entre a normalidade pesada das coisas cotidianas e ousava cruzar o véu para alcançar aquele mesmo espaço, criado entre duas pessoas, onde o ar se multiplicava em minúsculas partículas de luz e o silêncio era preenchido de uma infinidade de significados. E aceitou que era uma mulher e que havia feito uma escolha, apenas um caminho a percorrer: ser Eu para ser nós e então finalmente tocar o infinito. Pois quando se te a pele e a alma marcadas pela força de um encontro, somente as palavras exatas são suficientes para fazer viver. E o tempo se multiplica na intensidade do vivido. E aceitou o universo com a desmedida inexatidão que lhe parecia, ali da janela onde o dia se iniciava. E aceitou que não haveria controle e ali restava a certeza da oração ouvida, protegendo-a de todo mal pela inevitabilidade do encontro; porque o amor era uma marca profunda que a destacava, delineando seus dias. E entendeu, finalmente. Nas falas da nano olhar distraído do pai, na continuação de si na filha, do afeto que recebia dos amigos, na benção silenciosa do universo, que por vezes lhe acometia percebêramos, pois que era reza profunda que determinaria seus passos a partir daí. Porque era amada e aceitara seu destino, que assim fosse.

sexta-feira, 8 de maio de 2020

Então Alice chegou ao inferno.

Então Alice chegou ao inferno. Finalmente, depois de dias sentindo-o aos poucos se aproximar. Era quase como um nó invisível, subindo ao peito, enroscando-se no pescoço, aumentando a pulsação, oprimindo o meio das costelas. E um tremor inesperado, tomando pouco a pouco a pele, descendo na base da coluna e provocando ondas incontroláveis de calafrios. E então, em meio à luz do sol que aquecia a varanda dourada do Outono, uma nuvem cinzenta, descendo aos poucos pelo morro à frente, fazendo-a sufocar. A dor, pelo inesperado, fê-la cair de joelhos ao chão. E sentia o tremor do corpo, subitamente, impedindo-a de gritar. Medo. Dor. Náusea. Respira. Por favor, respira. Sentia a própria voz, tentando dominar o pânico, fazendo-a voltar a si. Escuridão. E então ouviu dentro do peito um silêncio como nunca houve. Estava só e parecia-lhe que, subitamente, o irremediável atingia-a como um tapa, em meio à face. Estava só, encolhida em silêncio no chão tentando capturar os últimos resquícios de luz solar. Sentindo os músculos retesarem e o pulmão inutilmente buscar todo o ar do ambiente. Sufocaria. Inevitavelmente sufocaria e teria como testemunha apenas a nuvem escura que agora já bloqueava toda a luz do sol, fazendo-a tremer. Medo. Solidão. Em um esforço desmedido, começou a tentar mover as próprias mãos, tocando a pele, em uma tentativa de aquecer. Sentiu os contornos dos ossos, a curva das pernas. Encolhida como estava, abraçou os joelhos. E fechou os olhos. E ouviu os sons descompassados vindos do peito, no tremor que vinha de dentro de si. E sentiu, como um golpe certeiro, a dor aguda no meio do estômago, fazendo-a gritar. Dor. Demasiadamente. E sentiu a mãos se retesarem, involuntariamente. E ouviu a própria voz, dentro da cabeça, tentando expulsar os sons de dentro do peito. Inutilmente. O silêncio espesso imobilizava-a. Então sentiu que vinha, de dentro do útero, contraindo-o como um espasmo, um sufocamento, como se a abrisse ao meio. Dor. Sentiu o corpo todo vibrar como se morresse naquele momento. E as lágrimas saltarem dos olhos, enquanto ali do fundo da garganta, um ruído profundo, tal e qual um animal selvagem tentando escapar à morte. E gritou, como se a chicoteassem na pele, que se rompia ao toque. E chorou, retesando às mãos no peito, contendo a custo os movimentos involuntários do peito. Sentia que seu ventre sangrava, gota a gota. Antes morrer. Como poderia viver apenas mais um segundo, sentindo como se todo o ar lhe faltasse, as unhas arranhando a pele, o peito tentando absorver o último fragmento de ar? Antes morrer. A intensidade oprimia. Sufocava. Fazia desejar a morte como se apenas ela pudesse dar fim à dor. Antes morrer. Em um esforço sobre-humano, conseguiu ajoelhar-se. Abriu os olhos e sentiu o rosto molhado, o suor frio que escorria pelo corpo. E a intensa solidão que vinha dentro de si. Vivia? Seria vida aquela agonia sobressaltada que atravessava o corpo, ventre, ossos, fazendo-a desejar mergulhar cada vez mais profundo, sem medo? Antes morrer. Porque naquele momento a vida lhe parecia um fardo impossível de carregar, na absurda constatação de que estava só e a dor de sentir era demasiada, quase insuportável. Antes morrer a atravessar esse oceano profundo de sensações desconhecidas, o desejo fazendo-a a tremer. Preferia a normalidade conhecida dos mesmos dias, as caixas organizadas diante da sala clara, onde tudo tinha um lugar. Agora via, diante de si, o caos. O conteúdo de uma vida espalhado ao chão, papeis queimados, fotos, flores, fragmentos e memorias. Tudo restava ao chão. Levantou-se com dificuldade e parecia que passeava pela própria vida, ao contemplar os pedaços de papel, misturando as distintas etapas de tempo, conforme o mover do vento na sala. Percorreu devagar cada um dos fragmentos e parecia que ouvia os secos das vozes, os risos, os gestos, o sol que batia no pôr do sol. Quando foi que a paisagem inútil na janela deixara de fazer sentido? Quando foi que a suave normalidade das horas a jogou pela primeira vez de joelhos ao chão? Em vez de calmaria. Uma tempestade profunda, interminável, que subitamente arrancara-lhe a pele e deixara-a nua, exposta, em meio ao caos. Dor. Antes morrer a desejar tão profundamente um instante, o mergulho no fragmento de sensações para o que cada momento era irremediável, profundo, irresistível. Antes morrer a vivenciar apenas mais um segundo de espera. E gritava, pedindo ajuda, para que alguém, fosse pessoa viva ou morta, colocasse tudo de novo no lugar. Porque sentir tão intenso e apaixonadamente era uma prisão profunda, inescapável, que rompia a pele e atingia o ventre. Porque não havia luz do sol ou metáfora que desse conta da urgência de ser. E já não podia esperar. Antes morrer a sentir-se romper em pedaços que jamais iriam se juntar novamente. Porque agora inutilmente a compreensão da dor paralisava seu movimento. Fazia-a sentir as paredes que a cercavam, as grades profundamente instaladas, o caos e a imobilidade dos instantes. Ali sentir era uma maldição irremediável diante do conforto cinzento de não ser. Antes morrer a desejar tão profundamente. Porque afinal descera ao inferno, buscando mergulhar profundamente no silêncio que ouvia dentro do peito? Porque afinal não permanecera na superfície? Agora, a insensatez da espera, as inevitabilidades do tempo faziam-na tremer. E uma raiva profunda crispava as mãos. De si e da audácia de ousar sentir. Antes morrer. Quando não havia rima ou mantra que trouxesse a paz que tanto buscara. E no final das horas intermináveis de percurso, que a levaram exatamente ao instante onde sentira a terrível dor, alguns momentos atrás, a verdade atingira-a como um soco na boca do estômago: jamais buscara a paz, a calmaria das horas suaves, a luz dourada aquecendo-a suavemente, antes do fim do dia. O que buscara era o caminho oposto, de ter diante de si o inferno do próprio silêncio, da irremediável fragilidade de ser, penetrar sem medida na escuridão na busca de um instante de êxtase e oferecer para isso a própria vida em tributo. Antes morrer. Porque a vida, desmedida, intensa, expandida até o limite das pernas esticadas em direção ao infinito, parecia-lhe subitamente demais. Antes morrer. Porque a verdade de si, a absurda constatação de que não haveria paz, oprimia o peito e colocava-a novamente nua, sem defesa, sozinha em meio ao caos. Antes morrer, porque a poesia de ser doí-a como um golpe de morte e não havia remédio para quem entende que o único caminho possível é mergulhar.

segunda-feira, 4 de maio de 2020

Garotas da capa em tempos de pandemia

Garotas da capa em tempos de pandemia Fui criada por uma mulher linda. Tão linda que me fez acreditar que ser linda era a última coisa que eu precisaria ser. Devia ser inteligente, ter independência financeira, acreditar nos meus sonhos e jamais abaixar a cabeça sem uma boa razão. Com ela também aprendi a entender a importância da coletividade, através da qual nossas ações determinam a vida de outras pessoas, podendo salvar ou prejudicá-las em igual medida. Na minha infância, percorri corredores de hospitais públicos e postos de saúde, enquanto minha mãe exercia sua profissão e foi ali que entendi que, independente do meu trabalho, havia o compromisso fundamental com a vida humana, a proteção dos direitos humanos, a empatia e a solidariedade. Quarenta anos depois essa mulher continua sendo linda e atravessa os corredores do mesmo hospital público com seus belos olhos verdes e quatro décadas de medicina social exercida cotidianamente, na competência técnica das suas ações e na empatia que ainda conserva, ainda que os dias nos corredores de uma emergência pública sejam muitas vezes duros. Em tempos de pandemia essa mesma mulher, que já não precisaria estar à frente de sua função, continua honrando seu juramento, proteger a vida humana. Mas ela permanece trabalhando, por escolha e compromisso com seus colegas de trabalho e com a profissão que abraçou. As vezes a vejo em fotos usando os equipamentos que a deveriam proteger, máscara, touca, jaleco, luvas de proteção - por vezes só conseguimos visualizar seus olhos, na parafernália que usa. Ela segue, atravessando a achada vez mais lotadas emergências do hospital público onde trabalha. Não me lembro de alguma vez ter visto uma médica ou qualquer outra profissional de saúde ter sido sequer cogitada para ser a cover star de revistas de moda. Nem ela nem as milhares de trabalhadoras, caixas de mercado, farmácia, atendentes, professoras, mulheres certamente lindas, mas invisíveis para a indústria da moda aparentemente, afinal, o que continuamente vendemos enquanto profissionais de comunicação é o sonho. Não a realidade. Contudo, em tempos de pandemia, quando nossos imaginários do que é comum e cotidiano são esgarçados ao limite, mortes se somam - em histórias e imagens cada vez mais próximas - às notícias do dia, vem das trabalhadoras dos serviços essenciais a garantia da manutenção de sobrevivência de milhões de pessoas. Mulheres lindas, corajosas e expostas cotidianamente ao perigo, tantas e tantas vezes que se torna comum vê-las, construindo uma ideia de normalidade que em nada se relaciona com o real perigo que correm, seja por falta de condições de trabalho, seja pelo sentimento de compromisso que as une. Seguem,contudo completamente alijadas do que se convenciona chamar normal, em revistas como a Vogue Brasil, por exemplo. Ali, na edição de maio de 2020, enquanto no país somamos cerca de 7000 mortes, das notificadas, Gisele - a personalidade que supostamente representaria a imagem feminina do país diante dos olhares estrangeiros - segue linda, vestindo Prada e falando das mudanças da rotina que o Covid-19 trouxe à sua vida. Longe de desconhecer a possível modificação da vida de qualquer pessoa diante de uma pandemia e sabendo que cabe à capa de uma revista de moda enquadrar esteticamente uma personalidade, me parece urgente questionar que critérios de beleza direcionam a linha editorial de uma revista, quando muitas de suas leitoras potenciais ou reais permanecem - quando privilegiadas- confinadas ou expostas ao risco de contaminação em cada dia de trabalho? De que normalidade falamos? Da construída, que talvez justifique o valor estampado na capa da publicação, acessível a um público específico para quem o confinamento mais parece um longo feriado chuvoso ou da normalidade real, onde mulheres saem para o trabalho todos os dias, por vezes sem máscaras, obrigadas a trabalharem seja qual for sua condição de saúde, marcando seus belos rostos com cansaço, suor e o uso constante de (quando há) máscaras de proteção? De que beleza falamos, ou qual a importância do belo, diante de um cenário de morte, caos na saúde pública, fome, desemprego, desesperança e ansiedade? Seria irresponsabilidade, perversidade ou apenas a constatação de que sim, não há a menor relação entre o Brasil que a revista Vogue orgulhosamente estampa na capa e o Brasil real? Por fim, cabe questionar a importância de Gisele Bunchen como capa de uma revista que já sinalizou anteriormente com a perspectiva de que comprar uma bolsa Chanel, orçada em 2016 em 5000 reais pode ser um bom investimento ou onde ainda hoje, vislumbrar peles negras ou mulheres “fora do padrão” é uma raridade? Afinal de contas, de que beleza fala a Vogue? E como seguir vendendo o mesmo produto, em um mundo onde nada restará como antes, mídia ou sociedade? Enquanto escrevo esse texto, belas mulheres organizam suas roupas para começar mais uma semana de trabalho, muitas sem máscaras de proteção, obrigadas a seguir trabalhando, por imposição dos patrões, necessidade de sobrevivência ou compromisso humano, enquanto a capa nova da Vogue, com a modelo mais bem paga da história da mídia impressa brasileira, chegará às bancas virtuais e reais nessa primeira semana de um mês de maio onde aguardamos o ápice da curva de contaminação pelo Covid-19, as máscaras ainda não são distribuídas para todos os trabalhadores, a presidência da República segue em sua campanha pelo fim do isolamento e a capa da Vogue continua custando R$20,00, a quem puder pagar. #voguebrasil #vogue #capamaiovogue #covid19 #coronavirus #revistademoda fonte: https://vogue.globo.com/…/gisele-bundchen-celebra-simplicid… https://vogue.globo.com/…/bolsa-da-chanel-pode-ser-investim… https://theintercept.com/…/coronavirus-supermercados-mund…/…

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Ainda sobre Orfeu

Reza a lenda que Orfeu, poeta e músico grego - em busca de Eurídice desceu à Mansão dos Mortos e ali, encontrando a sombra que um dia havia sido a mulher que amou, pediu a Hades, Deus dos infernos, para levá-la de volta ao mundo dos vivos. Comovidos pelo desespero do poeta, Hades e Perséfone concordaram, mas deram uma única condição: que no percurso de volta, Orfeu não olhasse para trás, sob risco de perder seu amor para sempre. Apaixonado, mas temeroso, Orfeu voltou brevemente os olhos para Eurídice. Foi o que bastou. Sem poder impedir, viu-a instantaneamente ser arrastada de volta para o reino das sombras. Enquanto observamos aqui, como narradores, o desespero de Orfeu, um pensamento surge: e se a história fosse diferente? E se o poeta, invadido por um amor inesperado, além de suas forças, que o fizesse cair de joelhos diante do caos - que precipitasse tudo aquilo em que acreditara antes na incerteza - passado e futuro diante de si desconstruídos subitamente e uma súbita e surpreendente vontade de viver? E se Orfeu decidisse acreditar? Não haveria quem afirmasse que o tempo já se havia esgotado e que o lugar de Eurídice era certamente nas memórias de seu amante? Ou mesmo aqueles que diriam a Orfeu - ora, trata de viver, há tanto que conquistar ainda, o mundo lá fora se desfaz em guerras, epidemias e incertezas, precisamos de tua força para tantas outras causas, maiores e mais nobres e você escolhe justamente o amor, o mais imprevisível dos acontecimentos humanos, fugidio e incerto, dolosamente breve, escapando diante dos dedos quando menos esperamos? Por que justamente o amor, Orfeu? Por que? E então o poeta, ao ouvir seus companheiros em desespero, certo de que só havia um caminho a seguir, responderia apenas: porque sou eu. Minha busca, ao descer o caminho das sombras não é apenas por uma mulher, uma história, um amor, mas por mim. Ao penetrar no inferno de Hades, ousei mergulhar nas minhas próprias fragilidades, caminhando nu e desprotegido, por entre todas as minhas pequenas certezas. No caminho, fui deixando aqui e ali fragmentos do vivido. Dores, memórias, convicções, tudo que me pudesse proteger e desviar. E então, quando nada mais havia e minhas mãos se encontravam vazias, cheguei até o rio onde viviam meus próprios infernos, mergulhei e ali, na escura água dos meus medos, contemplei minha solidão. E foi somente quando o silêncio se fez dentro do meu peito, é que pude compreender que Eurídice fazia parte de mim. Buscá-la era como buscar a mim mesmo, na difícil estrada da consciência de si. No cotidiano exercício de mergulhar no que não se pode ver, apenas sentir. Na inexplicável magia de ouvir um silêncio que vai de um peito a outro, incompreensível para todos os demais. E então eu acreditei. E Orfeu, sorrindo diante dos companheiros emudecidos, retomou o remo, apontou seu barco para a saída e finalmente, sem sequer olhar para trás seguiu adiante. Ao seu lado Eurídice ia, conforme se aproximavam da curva mais distante do rio, pouco a pouco ganhando contornos reais e deixando de ser apenas uma sombra, corpo e mãos entrelaçados a Orfeu, enquanto seguiam sem pressa seguindo sem medo as águas do rio. https://open.spotify.com/track/5fcjkWACO7WoIIDH0rtFU4?si=tkanY0o2RIWgS7SLrlcpuQ

01 de Maio

Se eu pudesse desejar algo- diante desse enorme vozerio que se eleva para lá das paredes de concreto, dos muros dessa cidade, das lágrimas que se avolumam em cada esquina, de todo desespero e do caos, diante de tanta incerteza e da minha própria voz que por vezes emudece - é que você ouse manter as janelas abertas para o sol entrar e que enfrente seus silêncios com a mesma força e coragem que venceu um por um, todos os seus dias. Que teime em manter seu espírito livre e inventar sua própria poesia, que te faz único, calmaria e tempestade em cada uma das suas notas. Que siga seus próprios passos e poste-se diante do mar, tua metáfora pessoal, em compreensão de teu percurso. E deixa que as lágrimas caiam, se necessário for. E ali, os pés enterrados na areia, o vento batendo no rosto, ouse seguir em frente. E mergulhar, porque tua vida depende disso, de ser e se perder, escuridão para ser luz, medo para ser coragem, ser eu para ser nós. E segue. Daqui de onde estou, me posto em estado de contemplação de tuas cores, metáfora inesperada e indescritível que nenhuma nota consegue determinar. E que não há palavra que possa descrever. E que apenas o silêncio, quase como em estado de oração, que apenas duas pessoas podem compreender, vai deixar transparecer, no espaço entre da vida, nos fragmentos do talvez. Na ousadia de dizer sim. E ser poesia, quando tudo é caos. E seguir, na espera diária do nascer do sol, que atravessa a sala e toca nossos pés. Nas folhas espalhadas na sala, espaço de sonhar e viver. Que assim seja.

domingo, 26 de abril de 2020

De Alice diante do abismo



Então Alice contemplou o abismo: era profundo, negro, de interminável extensão. E absolutamente irresistível. Havia sido uma longa jornada, de tantos anos, em busca de um caminho seguro. Inesperadamente, quando acreditara estar no final da estada, uma curva inesperada a jogara de joelhos no chão empoeirado de suas pequenas certezas. À sua frente, a vertiginosa montanha de pedra, que a interrogava silenciosamente: decifra-me ou te devoro. Tentou contornar o obstáculo, procurou atalhos, refez seus cálculos de viagem até concluir que não havia escapatória: ou mergulhava naquele momento ou ficaria o resto da vida contemplando a dúvida que tinha diante de si. Quis culpar-se pelas decisões tomadas. Não poderia ter contornado à esquerda? Talvez se pudesse ter pronunciado algumas palavras, podia ter voltado atrás. Mesmo sem nenhuma reação, Alice adivinhou nos contornos inexoráveis da pedra a resposta: não podia. Se tivesse arriscado um passo diferente da essência que tão duramente conquistara, cavando solitária a saída da dolorosa cela que criara para si mesma, teria sucumbido e talvez morrido. E que morte poderia ser mais dolorida que a de perder a si mesma, quando finalmente conseguira enxergar seus próprios olhos no reflexo do espelho? E suas asas, ainda molhadas, carregando o peso das lágrimas de tantos anos e o medo que a paralisara por tanto tempo? Mas e agora isso? Fora para ter diante de si a própria morte como prêmio, que caminhara tanto? O que aconteceria se mergulhasse? Quanto tempo até arrebentar os ossos no inescapável final, que certamente a aguardava? Quanto de sangue e lágrimas teria, no percorrer da trajetória, antes de morrer novamente, sem respirar, sozinha, em silêncio? Mais do que isso, que instantes de êxtase seriam necessários, o suficiente para compensar o gesto insensato de saltar? Do breu que a contemplava, nenhum som vinha ou luz que ajudasse a decidir. A decisão seria apenas sua. Alice inspirou o ar frio. Uma. Duas vezes. Profundamente. Naqueles breves instantes, sentiu a força dos braços, recém conquistada, o movimento das pernas, o peito encher-se de ar, como que um sopro de vida. Olhou para as mãos. Vazias. Como no início do percurso. E lembrou do propósito da caminhada. Fazer suas próprias escolhas, viver sua própria história. Em dor e silêncio, mas também busca e descoberta. Diante de si, o abismo parecia sorrir, confiante de que a conquistara. Então Alice se levantou. Tomou a dianteira, ergueu os braços, saltou. Nos breves instantes antes de desaparecer, Alice sorriu. Finalmente compreendera. O abismo que tinha diante de si inescapavelmente, estava dentro dela. Fechou os olhos, contemplou o silêncio definitivo dentro do peito e mergulhou

Trilha sonora: https://www.youtube.com/watch?v=NNbM9R53coo

quinta-feira, 16 de abril de 2020

Chuva no Mar

Era um oceano profundo, azul, que refletia a luz do sol todas as tardes, alcançando a janela das casas brancas que ocupavam a ilha. Os moradores costumavam circundar a orla, na ida e volta do trabalho, sobraçando legumes com que preparar a ceia, enquanto as crianças corriam aqui e ali, inventando brinquedos com a terra vermelha do chão. Poucos arriscavam o mergulho nas águas escuras que mudavam de cor conforme o dia passava, mais claras no nascer do sol, escuras com o reflexo das noites estreladas que levavam os moradores a carregarem suas violas para a única praça do local. Um dia em que a cantoria ia alta e o crepúsculo punha tons de dourado no ir e vir das águas, uma mulher que dançava avistou a negra nuvem de chuva avizinhar-se da costa, ainda longe da praia. Enquanto seguiam as cordas dos violões e as saias ciganas agitavam-se ante os pés que batiam no chão, a mulher, olhos presos no mar, acompanhava pouco a pouco a nuvem que se aproximava cada vez mais, tornando negros os reflexos dourados da luz do sol. Aos poucos, um e outro foram se apercebendo do que a mulher via e, não podendo nominar o que prendia seus olhos e fê-la parar de dançar, punham-se a observá-la e ao mar. E assim vinha a nuvem, lenta e inexorável, calando uma a uma todas as violas, capturando os olhares, que seguiam a negra sombra que tomava a praia. Um e outro, aos poucos o vento frio foi entrando nas almas, a praça foi ficando vazia, cada um correndo para o conforto da casa em busca das obrigações, a roupa no varal, os animais no quintal. Todos menos a mulher que, em pé diante do mar, aguardava em silêncio a nuvem que agora já alcançava a ilha. E o dia, que antes fora claro, agora se vestia de negro e era diante de uma imensidão azul escura que ela aguardava. E veio a chuva, preenchendo a atmosfera do dia de silêncio e frio. A mulher quis correr, retomar o percurso já conhecido da casa, mas tinha diante de si o negro oceano escuro, preenchido agora totalmente pela nuvem que caia sobre toda a ilha. E como fugir, se os olhos já adivinhavam que não havia outro caminho possível. Ele era a definitiva metáfora que sempre buscara, inesperada, surpreendente e irresistível. A música que ouvira dentro do peito e cujas notas nunca soubera interpretar. Ela caminhou lentamente para a praia, sentiu o bater forte da chuva nos ombros. Teve medo, quis voltar, mas como se já era o silêncio da chuva que tinha dentro do peito, empurrando-a para frente? Seguiu em muda contemplação até as águas negras da praia e sentiu as ondas subirem pelas pernas, enrolando as saias, dificultando o caminhar. Logo era puxada cada vez mais fundo, as águas tomando-a até o pescoço e carregando-a mais e mais para dentro. A chuva agora batia na janela das casas e ninguém via que a mulher se tornava aos poucos um ponto distante na praia, seguindo cada vez mais longe. E já não sentia medo, mas uma compreensão profunda do tempo e de si, deixando-se atravessar, fazendo-se também água, tempestade e silêncio. Em dado momento, a chuva amainou e as janelas foram uma a uma se abrindo e retomando a vida em seu curso. Mas ficou um tanto de silêncio e uma nota solta no ar, em meio à praça, enquanto mulher e águas, chuva e mar se tornavam um só, no infinito oceano azul.




https://www.youtube.com/watch?v=UgXDR21JDAs&list=LL2GnhMYDDqKL-F5eNCpGPCw&index=405

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Prosseguir

Trinta dias de confinamento. De idas e vindas. E mergulhos em infinitos precipícios distintos e diários. E a certeza de que me perco a cada dia e que me encontro no mesmo lugar ou que corri quilômetros na mesma estrada escura e sinuosa, para descobrir o mesmo espelho onde já não reconheço mais os meus traços. Em um mês de confinamento fui pouco a pouco perdendo a certeza de que um dia ia passar, que logo tudo voltaria ao normal. De repente compreendi a dura realidade: quando tudo voltasse eu não voltaria, porque já não era mais a mesma, arrancando com minhas próprias unhas camadas de pele e certezas e ousando abrir as mãos e deixar caírem subitamente todos os meus planos. Em vão as tabelas e listas de afazeres começam a acumular poeira e aquela velha página do mesmo livro de poemas tantas vezes relida e marcada, com sangue e lágrimas, adormecida ao meu lado ao longo de tantos anos, hoje passa a habitar o meio do peito, apertando a garganta, aquecendo o corpo e convidando ao risco. E se já não é possível enxergar o final dessa tempestade, também não é possível precisar a extensão do mergulho do que me move hoje. Para além do roteiro de medo e morte, na terra batida de todos os dias, um rio inesperado subitamente toma força, rompe as comportas dos vividos e se torna mar, subindo pelas pernas, tirando o fôlego e me levando além das paredes fechadas do apartamento e dos muros altos dos discursos de morte alavancados pela imprensa. De repente tudo se torna um confuso vozerio sem sentido enquanto aqui dentro o que me toma é um silêncio interminável cheio de significados. E todas as dores de uma nova metáfora, inevitável, inesperada e que me leva irremediavelmente a prosseguir.

domingo, 5 de abril de 2020

Do corona virus ao pos contemporâneo: da prosa cotidiana a poesia.

Apertem os cintos! O Piloto sumiu. Ou talvez, ele nunca tenha estado lá. Em tempos de pandemia, fora os inescapáveis dados sobre mortalidade e curvas de crescimento de contaminação, onde não se sabe direito nem quando ou como refrear a imensa onda casos que pululam globo afora, uma das maiores justificativas de pânico parece ser a incerteza sobre quando retornaremos ao universo conhecido de nossas certezas. A verdade, acachapante, é a de que nunca ouve Kansas, Dorothy e que a estrada dos tijolos amarelos certamente não conduziria, em uma visão filosófica, a lugar algum. E se houve na humanidade um momento em que a sensação geral é a de não lugar, talvez seja o presente momento. Por todo o lado enquanto Estados (a maioria deles) e instituições tentam construir soluções para a crescente contaminação e mortalidade, tendo o tempo como algoz, indivíduos enfrentam dilemas igualmente urgentes, como a incerteza sobre salários, negócios, distribuição de alimentos, políticas de contenção, número de mortes, possibilidade de contaminação, regras e regras e mais rege as sobre práticas cotidianas antes tão corriqueiras, como as compras que se traz da rua, ou o simples ato de jogar o lixo fora. Em um cenário distópico, em que a única realidade possível é a de que não há garantias, como compreender o espaço e tempo nos termos que fomos ensinados a conceber desde há muito, enquanto constituímos nossos imaginários de coletividade, produção e subsistência? Como contar o tempo, se o intervalo entre o tempo do trabalho e o tempo do lazer se permeiam e o espaço público e privado tensionam as relações mais formais? Por todo lugar, salas de aula, lojas, serviços, migram agora definitivamente para o mundo virtual e já há muitas vozes engrossando o coro do: “quando teremos nossa antiga vida de volta”? A dura realidade que alguns já anteveem é que jamais retornaremos ao estado anterior. E como fazer com tudo que aprendemos sobre o mundo, as relações, as dimensões espaço-temporais, as culturas que desenvolvemos por centenas de anos, até culminarem no intenso fluxo de pessoas e bens ao redor de um globo cada vez mais conectado. Mais seria mesmo assim tão conectado? Ou estaríamos de alguma forma assimilando o espelho em vez de Alice, ao identificarmos nas imagens com as quais convivíamos diariamente uma parte representativa da vida, para quem recorríamos em busca de afeto, legitimação e segurança, em mídias e redes dia afora, sons, imagens e afeto consolidando nossos corpos e mentes? E então, em um piscar de olhos, um intenso silêncio impõe-se ao caos e vamos pouco a pouco nos apropriando de nossa solidão. Ao redor não mais os 500, 600 ou mesmo milhares de seguidores de antes, a extensa agenda de contatos, os programas diversos, vão pouco a pouco apagando como monitores sendo pouco a pouco desligados. E o que fica é o universo interior de dores, inseguranças e, felizmente, essência. O que faremos quando só o que ouvirmos for nossa própria voz? Em que lugar pensar os fluxos contemporâneos de afetos, cultura e sociabilidades, quando não pudermos mais interagir como antes? De que modo as mídias sustentarão as práticas sociais em um universo onde o próprio social vai sendo pouco a pouco reinventado? Nesse cenário onde o tempo se impõe ao espaço e o público e o privado se mesclam já não é mais possível pensar apenas no contemporâneo. Essa enorme colcha de retalhos onde a política e a economia se mesclam em narrativas múltiplas, criando outras formas identitarias, vieses, nuances até o ponto de se fundirem em uma liberdade sem precedentes ou a mais fundamentalista cultura de auto-extinção, cujo exemplo pode ser o que melhor aprouver: forças armadas, exércitos paralelos, infinitos mercados virtuais e distanciamento social agravado pela desigualdade de condições de sobrevivência que garantem a cada um seu lugar no globo, enquanto fome, doença e desesperança moldam-se ao cenário cotidiano e não há manchetes que deem conta de tocar os corações. Tudo seguiu enquanto a modernidade ordenava corpos e ideias, tempo e espaço, normatizando a poesia e formatando vontades, além de invisibilizar diferenças de dores, Terra afora. Até que tudo ruiu e a pequeneza de nosso estado de certezas era tal que não foi necessário mais do que alguns poucos fragmentos de vida para romper a paz fictícia que tanto buscamos. E em meio ao mar de corpos que se acumulam em cada cidade, ao terror e à desesperança, em meio ao constante sobressalto do peito de cada um, a vida de todos os dias racha ao meio e os relógios da modernidade paralisam os ponteiros em um instante interminável, onde atônitos, corremos às janelas para observar o crescente silêncio, como se pela primeira vez o tivéssemos ouvido. Como se as mortes e o sangue das esquinas, a violação de mulheres e crianças, os corpos crivados de balas, o caos e o desespero nunca nos tivessem atingindo. E as epidemias, constantes, viessem tocar apenas as vidas alheias. Pois hoje choramos todos, a terrível constatação de que nunca estivemos no controle, de que o risco sempre esteve à esquina, enquanto não entendíamos o que afinal queria dizer “comum”. E enquanto ambos os monumentos da modernidade e do contemporâneo racham juntos, levando pedaços de concreto e metal ao centro da praça, que permanece vazia, ainda há um pôr do sol que nos convida a escutar o silencio dentro de nós e redescobrir a poesia da vida enquanto há tempo. Uma verdade transparece, por entre os fragmentos de luz que nos chegam da janela: Sempre fomos um. Mas por muitas vezes nos perdemos em projeções equivocadas do eu. A sobrevivência sempre foi coletiva. Nos confundimos pelos caminhos solitários de ser imagem além do corpo. Pulsação fora da rotação de si e do mundo. Roda gigante na inquietação por controle de tudo que avidamente colocávamos para dentro. Ávidos num vazio que não diminuía a medida que inutilmente tentávamos esconder. A dor sempre existiu. Mas por ora era silenciada pelo barulho de outras narrativas. Eram tantas prosas, caminhos, fluxos e fugas num caleidoscópio de existência rasa. Corríamos na contramão do fluxo do mundo. Esbarrávamos em nós sem pedir licença. Na crença de estarmos maior. Qual a medida certa de nossa existência? Qual o passo no compasso da vida comum? Que linguagem trará nosso entendimento? Somos respostas aprendendo a formular perguntas. Somos dois tentando ser um. Somos vida em estado de pausa. Na dança de sermos apenas nós. Sós. Solares numa manhã que ainda não desabrochou no horizonte. O horizonte não está lá fora. Ele sempre esteve aqui. Ele irrompe de si na aurora austral de cada um em suas casas. Ele gera luz em estado de poesia e percorre caminhos inéditos na nossa aprendizagem do aprender. Pois é preciso reaprender a aprender o obvio. O simples nos convoca como enigma de tudo que fomos. Somos. E seremos. Outros na esteira de um novo olhar. Por Debora Restum e Tatiane Mendes Este texto também está em http://artesadoar.blogspot.com/

sexta-feira, 3 de abril de 2020

Paisagem

Enquanto o mundo desmorona, aqui e ali, há um fragmento qualquer de poesia que me toca e me toma, em meio ao caos e que mantêm meus olhos fechados, em profundo estado de escuta, enquanto os horrores das mortes e narrativas se tornam um burburinho confuso que não alcança meus ouvidos. Porque são outros os sons que eu ouço e as imagens que me chegam ao pensamento. Porque eu meio ao silêncio cada vez maior, ainda há uma nota que persiste e um percurso que se abre, como um convite irresistível a seguir. Súbito não é somente a paisagem da janela que me move contemplar, mas as texturas e nuances que mobilizam corpo, alma e se fazem poesia diante dos meus olhos. À minha revelia ergo as mãos para tocar a imensidão da tua pele, de teus olhos fechados, do silêncio que se faz no mundo quando te observo dormir. Enquanto tudo se faz pausa, em uma atmosfera densa que permeia o quarto, uma infinidade de palavras me veem à cabeça, mas não conseguem alcançar minha boca, se perdem e meio ao caos que me tira a voz, que me coloca em estado de espera. Agora tudo parece respirar em um silêncio que eu não ouso romper, mas que se desfaz em instantes, no momento em que você me toca, que os espaços e sons, convertem em um só fluxo e calor, de vida e movimento. Porque em meio a tudo que diz não, há uma outra força, maior e inescapável, que me convida a dizer sim e que me faz arriscar a ter esperança em meio a tudo que não pode ser.

segunda-feira, 16 de março de 2020

Carta a avó

Carta à avó Daqui a três dias seria mais um aniversario seu. Dia de contar tempo, como você costumava dizer... E a saudade fica maior a cada dia.. Ontem te vi nos meus passos, percorrendo a trilha da minha infância, no calçamento desigual das ruas do teu bairro, onde o sol é sempre de um amarelo difuso e as ruas guardam um silêncio que mora dentro da gente. E te visitei, descendo as escadas de pedra da tua casa para estender roupa no quintal e me pedindo para parar de ler um pouco e aproveitar o sol... Senti o cheiro bom do queijo que você fazia, da água fria das torneiras da pia, da sensação do lençol limpo de flores amarelas que você estendia na sua cama, para eu dormir. Lembrei de tanta coisa que veio antes e depois de todos os anos de Curvelo, do Largo dos Guimarães e da quitanda que fechou na esquina, onde vê costumava dizer que a dona era bem antipática e que o preço caro, quando me via espichar os olhos para as infinitas cores das prateleiras. A cada curva eu ouvia tua voz, no relato das tuas memórias, no constante movimento de costurar nossas vidas em afeto e cuidado, nas tuas mãos segurando as minhas, e dizendo que vai ficar tudo bem. Percorri a trilha que vai do Parque das Ruínas até a porta da sua casa e as cores são outras, permeadas com camadas e camadas de tinta e tempo. Mas ainda resiste entre os vãos da porta uma atmosfera de luz e sombra que construímos juntas, eu e você em nossos dias. E foram tantos. Dias de choro e risos, do teu ombro no meu, da tua voz no acalmar de todas as dores. E como eu precisei do teu colo em tantos momentos, que você me olhasse bem fundo, em uma dimensão que nem eu mesma conheço e que me dissesse, como coisa já sabida: vai ficar tudo bem. Sei que em todas as horas em que sangrei e foram muitas, vocês estava aqui.. Escrevo para te dizer que nas andanças de ontem me reencontrei e encontrei você exatamente como costumava ser, no afeto de todos os dias e nas horas mais douradas das minhas tardes, naquele raio de sol que atravessava as cortinas brancas da tua sala. E pra te para contar, como se vê n soubesse que estou bem e me reconstruo a cada dia, passo a passo, percorrendo todas as esquinas que caminhamos juntas, em afeto e poesia, e ousando ir além de onde minha mãos abarcam e compartilhar minhas histórias a todos que quiserem ouvir. Eu podia te falar dos tempos de tempestade que chegam, das muitas incertezas dos dias de hoje, de dores, doenças e medo. Mas tudo que eu consigo te dizer é que, aos poucos vou reinventando aqui dentro uma outra forma de ser mais leve, sem deixar de querer tudo, exatamente como você me disse um dia... E se te falo que ainda tremo na espera das trovoadas, deixei de ter medo da chuva e comecei a aproveitar mais o sol e há tanto nesse ir de vir que não caberia aqui contar, caso pudesse encontrar as palavras...Mas sei que você entende meus silêncios, como sempre entendeu e o sorriso que permanece a cada dia mais no meu rosto. Enquanto cruzo a fronteira entre passado e presente e contemplo mais uma vez os trilhos da minha vida se embrenhando nos trilhos do bonde, em poesia e amor. Queria poder te dizer que tudo vai ficar bem, embora eu nem mesma saiba o que seria isso em um tempo como o nosso. Mas sei também que de onde você esta, adivinha meus modos, o calor que brota do peito e que adivinha meu sorriso. E parece que ali, no silêncio da tarde, te vejo parar uns segundos contemplando o meu rosto e dizer, antes de voltar a seus afazeres: minha filha, coração é terra onde ninguém manda...e seguir seu caminho. E é nesse amor e na certeza de você estar por aqui que eu sigo... Amo vc...feliz aniversário..

domingo, 15 de março de 2020

Fluxos,por Debora Restum e Tati Mendes

No toque dos corpos, no fluxo da vida, a pele segue a urgência do sentir. Caminho que passa por sangue,suor e lágrimas Poesia feita de poeira e sonhos.. Desejo que rompe as amarras do cotidiano e ousa ser voz, energia, na coragem de ser nós, faca que corta a carne, aperta o peito, mãos que se abrem à revelia do Eu... E enquanto cada segundo, no correr do relógio risca na alma um instante a menos do existir, a vida ousa ser mergulho, no inesperado, caminho indefinido entre o sim e o não,onde não há controle, só o movimento constante de sons e imagens, só o corpo que treme diante do caos e a paixão da vida. Diante de si o medo. Medo de deixar de ser Medo de não ser mais Mas só se é no fluxo. É preciso assumir o risco de abrir as mãos e cerrar os olhos para sentir o sutil toque do novo sob a pele que ainda sangra sobre os sonhos e a ousadia de tentar reter as engrenagens do tempo. Porque será em vão. Às janelas trancadas, a inevitável poeira dos dias adentra a casa Ao menor descuido, o mar invade a alma, inescapável, em todas as suas metáforas. E a única coisa fazer é ter a coragem de deixar-se ir,sem direção ou controle. Onde o único caminho possível é soltar as amarras e mergulhar,corpo e alma, medo e desejo, luz e escuridão.. Porque ha um instante, que não se ousa reter e caminhar, nas nas galáxias intermináveis que ligam o nós. No meio desgovernado do ser, no entre da gente, na vida que transborda vida, na alquimia sem catálogo do que esta sempre por vir. Inédito pela comunhão de ser. Outro e outro e outro, no desenrolar de experienciar mundo.E outros mundos são criados na cadência de estrelas.Não há narrativa prévia, não há roteiro, não há enredo. Não há garantias.Há uma obra aberta para a vida e a morte para além do fim. Não há fim. Há movimento. Fluxo que amedronta e surpreende na sutileza de ser grande, na certeza de ser inteiro, e no dinamismo de ser livre Tb aqui https://mundossensiveis.blogspot.com/2020/03/fluxos.html e aqui https://magiaerazao.blogspot.com/…/fluxospor-debora-restum-… trilha sonora: https://www.youtube.com/watch?v=9RMHHwJ9Eqk

segunda-feira, 9 de março de 2020

#8M

Peço perdão por recusar tuas flores e metáforas.Por seguir em silêncio enquanto discursas sobre homenagens e conciliação. Mas é que,em meio o burburinho contínuo das felicitações e mensagens, nossos corpos ainda queimam.Ainda há por toda parte uma infinidade de marcas em nossos seios e nossos ombros doem do peso excessivo carregado por tanto tempo. Por todo canto corpos sem vida, jovens, velhas, algumas ainda meninas, cuja infância não conseguiu deter o avanço de tuas pernas, de teus olhos, mãos e sexo. De teu irracional desejo de ter...E foi com sangue que elas pagaram o crime de serem, irremediavelmente, mulheres. Por mais tentemos, mas é impossível perdoar. Porque as mesmas mãos que hoje me tocam, seguram meus pulsos, prendem minhas pernas, alcançam meus cabelos quando tento me mover, rasgaram a carne de tantas outras, tantos dias de não terminar e ainda ouço gritos, sufocados pelos sons de todos os dias. E ainda sinto suas mãos sobre a minha boca, quanto tento gritar..Daqui, de onde estou, ainda sinto a força desmedida no golpe que fez meus joelhos tombarem.Que me fez querer morrer..Me perdoe se recuso teu sorriso, se me esquivo ao seu toque, se meu peito pula de terror,ao adivinhar os seus passos, no corredor? Porque não há ponto que costure aos roupas,pele, sonhos, uma vez rasgados, e não há caminho de volta quando se morre sem defesa ou perdão. Quantas vezes não morremos, um dia depois do outro, escondendo nossos corpos, silenciando nossas vozes, em uma débil tentativa de sobreviver? E enquanto eu sangrava, ainda podia ouvir o eco de vozes ,mulheres,homens, crianças,apontando meu corpo,meu rosto, minhas mãos e pernas, determinando aqui e ali tudo aquilo que extrapola o padrão preciso do que devo e posso ser? Olhos que escrutinam meu útero e ventre, réguas que medem meu sentir, palavras que atravessam minha pele determinando minhas emoções e meu prazer? Só o que eu queria era poder ser forte para seguir nua, sem armas ou defesas, ousando exibir meu corpo como uma bandeira,em desafio,livre, sem marcas, sem medo?Mas a verdade é que sob a pele o corpo ainda sangra e se ouso mergulhar, vez por outra em um fragmento qualquer de poesia, será pela urgência do seguir e a necessidade do silêncio e não mais pela busca do sonho,posto que, aos que tem o feminino impresso no corpo e na alma, não é dada a chance de sonhar,apenas de resistir.

quinta-feira, 5 de março de 2020

Enquanto isso

https://www.youtube.com/watch?v=gdqKLwjgaRI Enquanto o tráfego vai pouco a pouco normalizando o caos na chegada ao trabalho nas primeiras horas da manhã e os sons diferentes da cidade, carros, vozes, diferentes percursos e corpos criam as tramas que sustentam a vida e as primeiras mensagens do dia misturam rap, rock, tambor, forró, Rio de Janeiro e Nordeste e um pouco de céu rasga o cimento dos prédios e ilumina a retina para fazer entrar as nuvens cinzentas do verão. A porta do carro se abre e um fragmento de memória atravessa e se sobrepõe a todos os sons...Ali imagens de um percurso de muitos dias, infância, adolescência e dias atuais atravessam e vão me encontrar nesse meio caminho de tudo que a maturidade pode dar...Enquanto o tempo convida a conjugar outras formas de ser livre e acostumar aos fins e inícios de um ainda novo ano e ao interminável correr de folhas do calendário. Enquanto o corpo tenta retomar o costume de acorda todos os dias em um novo lugar e não render-se ao cansaço, ao sono e ao desespero, enquanto se tenta inventar uma nova canção, alguém no dial do táxi fala para abrir a mente para novas formas de ver (“open mind for a different view.. “) . Em meio às curvas do caminho de volta pra casa a voz fala sobre presença se sobrepondo à distância (“so close no matter how far... “) e abrir-se ao novo, resgatando o sentido e a liberdade de ser e sentir. Enquanto surgem, em meio à fumaça dos carros e motos, infinitos sentidos para existir e reexistir e abrir as mãos para deixar escorrer pelos dedos todos os medos que ainda persistem, fragmentos de memória que se misturam aos sons de um cotidiano que insiste em se reinventar, enquanto o peito arrisca bater cada vez mais rápido, as primeiras metáforas começam a preencher o correr dos dias e aos poucos os carros vão chegando a seus destino, enquanto um último acorde de guitarra me faz sorrir na cadencia do refrão.. "and nothing else matters.."

sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Areia

Feito areia que o vento toca
E desmancha as marcas dos pés, no molhar das águas.
Lágrimas. Suor. Sangue.
Feito o tempo que acumula nas gretas dos móveis, nas dobras da cortina.
Das fotos que persistem na estante, onde sorrisos, vozes, abraços acumulam ainda na retina e se misturam ao duro silêncio da sala vazia.
Porque é de ausências que se faz o dia e todos os ponteiros do relógio.
E são as mesmas mãos entrelaçadas de antes? As mesmas juras ou o mesmo sentir, ou já é outro tempo que se cristaliza nesse instante, da luz amarelada que incide sobre o vermelho xadrez do tecido, sobre a pele, seria a mesma? São as mesmas águas, o mesmo sentir, a mesma dor? Mas não.
Porque é outro corpo que surge, diante do caos, da dor e ousando ir além da morte e caminhar novamente. E há um encantamento novo, que ousa paralisar o tempo enquanto sobe no ar a fumaça do café. E são múltiplas dimensões do sentir, carne, sons e poesia, presos em canções ainda a aprender, com muito de medo e outro tanto de desejo.

Feito areia, escorrendo nas mãos abertas, porque a única certeza que se tem é que tudo flui e que todo rio corre para perder-se no infinito profundo desse mar que ainda não ouso tocar, mas que já amo, na silenciosa admiração de suas formas e que me dói não ser mais forte, não ainda, para mergulhar. Como eu queria não ter sangrado tanto tempo e estar mais forte para te ser na intensidade devida, mas não. Tudo o que eu consigo é reter um pouco mais a respiração e conter o impulso desenfreado de correr para bem longe, enquanto é tempo.
Mais um segundo, apenas mais um segundo e já será tarde demais.
Por isso me detenho ainda mais um pouco, na escuta silenciosa de tuas cores.
E me perdoa se minhas palavras sempre tem lacunas. É porque adivinho o profundo de tuas águas e me antecipo na dor de sua ausência, porque o fim sempre virá.
Mas é nesse segundo de distração, enquanto ouso te olhar, que súbito percebo que já sobem pelas pernas as ondas incontroláveis do tempo que corre e desse mar incontornável que me toma e que se mistura às lagrimas que eu ainda choro.
Só mais um segundo, eu peço, me deixa te olhar mais um instante, sem que nenhum movimento seja feito.
Porque é nesse segundo infinito em que percebo que não há controle, porque mesmo onde se trancam as portas e se corre a chave, a poesia se esconde nas lacunas e o silêncio espera no escuro do quarto. Nada mais me resta do que oferecer o pouco que tenho, essa dor infinita, esse desespero, essa vontade de te tocar e te descobrir, esse medo infinito da dor que eu já sinto, esses poucos fragmentos, palavras e sangue que ainda me cortam a carne, as mãos completamente vazias e uma ou outra metáfora que sobreviveu ao tempo e que já me toma por completo, à minha revelia, por mais me esforce.
E Deus, como me esforço.
Mas é em vão.
Sobre todas as palavras e esforços, sobre toda a liberdade pleiteada e garantida, sobre todas as estradas que ainda vou percorrer, há sempre uma luz dourada que incide sobre o dia e um silêncio que me invade, do cheiro da tua pele e de um tempo ainda desfocado que eu já antevejo e que me apavora e convida em igual medida e onde nada mais me resta do que seguir.

terça-feira, 14 de janeiro de 2020

Águas que correm

Deixa correr tuas águas
Desse rio de lágrimas e sangue que exacerba por dentro da pele
Dessa dor que aperta o peito,dessa vontade de morrer
Aceita que nada esta sob controle
E que é chegado o momento de chorar, no tempo justo das coisas
Deixa que corram as águas, por entre a poeria dos dias, os móveis antigos, as roupas usadas,o cheiro de suor e tédio
Deixa que a tristeza e o desespero te afaguem e te façam dormir...
Alivia teu peito e deixa que saiam da tua garganta todas as palavras que ainda não disse
Fim. morte. Separação. Suas mãos sustentando o peito.Teu desespero.Tua angústia.. Deixa ir
Deixa que o rio corra, suave,inevitável. Caudaloso. Por entre as trilhas do teu medo.. mergulha no teu pesar. E chora.
É toda uma vida.. E então,quando nada mais restar de pranto,nem voz ou força
Mergulha teu corpo no leito do rio..
e silencie..
Suavemente, ouça os sons do mundo, o vento, o correr do rio, a intensa imensidão de tudo que te cerca.. No fundo de tudo vai escutar as batidas do teu próprio coração e é aí, que perceberá que ainda está viva..
. e seguirá tua travessia

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

Orações

Orações Quando eu era pequena, muito antes de entender de onde vinham os bebês, me apresentaram a Deus e – o que quer que significasse essa palavra para mim aos seis anos de idade- compreendi instantaneamente que havia algo de mágico nas palavras pronunciadas de uma certa maneira, uma depois da outra. Que poder era aquele de conectar pessoas a alguma substância invisível que, sem explicação alguma, atendia pedidos, curava a dor e trazia esperança. Foi nessa mesma época em que aprendi que o nome correto era “orações” e fui apresentada a algumas delas pelas minhas avós. Sim, eu tinha três avós em uma casa – minha avó vivia com as duas cunhadas - e, uma depois da outra, me ensinaram a rezar o terço, o Pai Nosso e a Ave Maria. A partir de então era com um novo ritual, todos os dias antes de dormir que eu me despedia do dia vivido, me deitava na cama da minha avó – os lençóis brancos com o eterno perfume de sabonete e sol, que ela lavava à mão – e recitava: “com Deus me deito, com Deus me levanto, por obra e Graça do Espirito Santo”. E eu nem mesmo sabia o que era o Espirito Santo, mas me parecia importante e fazia sentido para minha avó, então continuei por muito tempo até que entendi que as palavras realmente tinham um poder indefinido de diminuir a angústia, refrear o medo e dar esperança. Minhas tias me trouxeram uma série de outras crenças, nem todas da igreja católica e aprendi que algumas ervas tinham o mesmo poder de palavras, assim como as mãos, dispostas em posição de cura. Mas sempre conservei as primeiras palavras aprendidas à beira da cama: “rogai por nós, agora e na hora de nossa morte” e assim me sentia protegida. Aos poucos entendi que a fé poderia se manifestar de diferentes maneiras, nem todas através da palavra escrita. Pude perceber que o homem tem nomes distintos para coisas bem parecidas e que bem poucos entendem que palavras diferentes não determinam menos fé. Muito ao contrário. Também consegui entender que o sagrado por vezes se encontra nos lugares mais inesperados, como no meio de um abraço, em mãos que tocam e curam, em um pôr do sol. E descobri que sim, havia uma grande magia nas palavras da minha vó, costurada ao longo dos anos no tempo de todos os dias em pontos bem apertados, que me protegiam e me protegem até hoje. E que não estava necessariamente na oração, mas no afeto com que ela me guardava e guarda até hoje... O tempo passou e conheci muitas outras orações poderosas, nenhuma tão bela quanto a de São Francisco. Porque falar de comunhão, fé e igualdade social em uma oração tão curta deve ser realmente obra divina. Conheci muitas igrejas, templos e terreiros de religiões variadas, chorei com missas cantadas em altares monumentais. Mais do que isso. Pude atestar a inescapável presença do sagrado, em acontecimentos banais e palavras que se tornaram magia para mim, pelo tanto de afeto que conservavam. Até que um dia tive que aprender a recitar minhas orações sem ter minha avó do lado e a entender que o sagrado pode ter um nome bem conhecido para te proteger e guardar. E jamais deixei de acreditar no poder das orações: “ livrar-me de todo mal, amém”.

smoke in water

Puxou um cigarro do bolso da camisa, ofereceu, sem perguntar se fumava. Quis dizer que não, não fumava,detestava cigarro,alias, mas não conseguiu dizer nada, tão presa estava aos olhos negros, que prescrutavam o infinito, dialogando em prosa fácil com cinema,literatura de vanguarda e sonhos.... Ela pegou o cigarro, atrapalhou-se com a fumaça, conseguiu queimar as pontas dos dedos, enquanto ele observava,divertido....Vai pensar que sou uma adolescente, ela resmungou,internamente..Conseguiu tragar e a fumaça saiu quase dignamente.. Cantarolou desafinada o refrão de Nina Simone, que tocava baixinho na Juke Box....sentiu que ele a observava ainda..Agora,curioso..ela não sabia o que dizer...Já tinham falado sobre paixão, cinema, livros, sexo, já tinham rido com as preferências sexuais de cada um, os desencontros, as viagens, sobre o que mais falar? Talvez ele esperasse uma tirada genial, um fragmento de poesia, quem sabe esperasse partir para ação, uma aproximação física imediata..Mas ela, pela primeira vez percebeu que faltava alguma coisa antes de desnudar seu corpo..Havia ainda alguma membrana invisível que cobria sua pele e e que ainda a impedia de sentir com profundidade o encontro que viesse..Fosse qual fosse. Então ela pousou levemente o cigarro no cinzeiro, pigarreou um instante (ele não pôde deixar de rir da falta de jeito dela) e falou... - Antes de vir aqui hoje eu me preparei muito,sabe.Eu escolhi as melhores palavras, a maquiagem ideal, a roupa perfeita,algo que me fizesse passar desapercebida de mim,que me escondesse e camuflasse para que nenhuma insegurança pudesse ser notada. Falou meio a medo,como se esperasse ser rejeitada no instante em que falou..Ele continuou em silêncio. Então prosseguiu. Já que começara, era melhor que dissesse tudo. - mas eu acho que não imaginei que para que eu pudesse estar aqui, mais do que coragem de construir minha imagem, eu devia ter a a coragem de me desconstruir..porque já é tempo e são muitas camadas de tecido cobrindo a minha pele.. ele olhou-a ,vagamente interessado... -mas olha que coisa...de tudo que eu te disse, todas as palavras, meus títulos, frases e imagens,nenhuma imagem vai ser mais explícita daquilo que eu sou quanto esse maldito cigarro que estou tentando tragar há dez minutos....ele queima minha boca, me faz engasgar, mas eu quero fumar inteiro,porque cansei das experiências que são organizadas para parecermos bem na foto...Cabelinho arrumado,roupas passadas...maquiagem no lugar..Aí vem esse cigarro, essa fumaça incontrolável na minha boca, e eu tentando respirar e ainda parecer acostumada com isso. A vida que ainda resta em mim é exatamente como essa fumaça,queimando a minha pele,mas que eu insisto em fumar...Eu sou isso.atrapalhada, despreparada e na verdade eu estou com um medo enorme de seguir... Porque de fato ser uma amadora é o que faço melhor. Eu pulo de experiencia em experiência mas sem me aprofundar, porque o medo grande é um dia pular e cair e não conseguir me levantar novamente....e aprofundar é escolher, sofrer e morrer,se for necessário....e isso também é sobre sexo,sobre desnudar-se e sentir com profundidade tudo que vier, mesmo que seja por uma noite só. Terminou a frase e olhou pra ele.parecia surpreso....não respondeu de imediato. Puxou um cigarro pra si,acendeu e fumou por alguns instantes enquanto ela se consumiu em angústia. Falara demais.De novo. Mais uma vez quebrara o encanto que tanto tempo conservava sobre si,impedindo-a da rejeição...Era o caso de sair dali agora,antes de sentir a dor do não?ou esperar? Mas chegara o tempo de ouvir. E esperou,fosse o que fosse vir.. Ele fumou o cigarro todo....sem olhar pra ela... Levantou da mesa, foi até a Juke box...escolheu uma música...voltou pra mesa exatamente quando os primeiros acordes de You know i´m not good começavam a preencher a sala..E a voz rouca,imperfeita e desesperada de Amy dizia "I cheated myself,Like I knew I would'..Ele esticou a mão,chamou-a...Segurou a mão dele, um pânico de errar de novo. A dança,a fala, a vida...Mas o momento era de seguir..." You know that I'm no good.." agora você sabia...E então ela sentiu. O corpo dele em contato com o seu, a respiração entrecortada, o terrível cheiro de cigarro das roupas, o abraço cada vez mais perto.Sentiu sem nenhuma película no meio, sem intermediários ou máscaras...então era isso que queria dizer desnudar-se....e o cigarro permaneceu na mesa, aceso,queimando sozinho enquanto a fumaça dissolvia as silhuetas dancando em meio ao vazio da sala....canção apos canção.e depois havia a vida...

domingo, 29 de dezembro de 2019

Receita de mulher

Para criar uma mulher é necessário tomá-la dos braços dos pais logo ao nascer e fazê-la crescer sozinha,entre seus medos e sonhos...
Para criar uma mulher é necessário torná-la inconsciente de sua força, crer não ter asas, que é frágil, que suas pernas não podem alcançar grandes distâncias e que seus braços não conseguem abarcar os seus sonhos.
É necessário fazê-la desacreditar de si, imaginar que lhe falta algo fundamental e passar a vida buscando aquilo cujo nome ninguém jamais dirá.
Para criar uma mulher é necessário fazê-la crescer sem confiança, sem orgulho ou sem vontade, minando suas possibilidades de crescimento tão logo perceba a medida de sua força.
Para fazer uma mulher nascer é necessário quebrar seu coração de modo definitivo,não somente uma, mas três vezes e de modos distintos, no período mais curto de tempo possível.
É preciso tocar sua pele e sua alma,com suavidade, adivinhar seus contornos e medos, ouvi-la contar seus sonhos e assim, quando a encontrar entregue, retirar incontinente, pele, carne,ossos, deixando-a nua e desprotegida..
Para fazer uma mulher nascer é necessário pisar seus sonhos, escarafunchar suas pretensões românticas, rasgar suas cartas, tocar fogo em suas roupas..
Para uma mulher renascer é preciso deixá-la consumir-se em fogo, lágrimas e sangue, além do limite de suas forças, até só restarem cinzas. Então deve-se esperar que o tempo se encarregue de espalhar suas partes ao sabor do vento que insiste em sobrar...
E assim, em um intervalo de silêncio, veremos seu corpo subitamente reunir todas as suas metades, de dor e sangue, até conseguir novamente ficar de pé. Um passo depois do outro, ela irá recobrir-se novamente,
pele,sangue,ossos, ainda mais forte,infinitamente mais bela porque refeita de luz e sombra, silêncio e poesia.
Para fazer renascer uma mulher é preciso que se entenda o ciclo que a circunda, em um pulsar que é o tempo silencioso do mundo, morte e vida, sim e não.
Para fazer renascer uma mulher não é necessário falar ou agir mas sentar-e ao seu lado em completo silêncio até vê-la erguer novamente os olhos, esticar as asas e voar.