quinta-feira, 16 de abril de 2020

Chuva no Mar

Era um oceano profundo, azul, que refletia a luz do sol todas as tardes, alcançando a janela das casas brancas que ocupavam a ilha. Os moradores costumavam circundar a orla, na ida e volta do trabalho, sobraçando legumes com que preparar a ceia, enquanto as crianças corriam aqui e ali, inventando brinquedos com a terra vermelha do chão. Poucos arriscavam o mergulho nas águas escuras que mudavam de cor conforme o dia passava, mais claras no nascer do sol, escuras com o reflexo das noites estreladas que levavam os moradores a carregarem suas violas para a única praça do local. Um dia em que a cantoria ia alta e o crepúsculo punha tons de dourado no ir e vir das águas, uma mulher que dançava avistou a negra nuvem de chuva avizinhar-se da costa, ainda longe da praia. Enquanto seguiam as cordas dos violões e as saias ciganas agitavam-se ante os pés que batiam no chão, a mulher, olhos presos no mar, acompanhava pouco a pouco a nuvem que se aproximava cada vez mais, tornando negros os reflexos dourados da luz do sol. Aos poucos, um e outro foram se apercebendo do que a mulher via e, não podendo nominar o que prendia seus olhos e fê-la parar de dançar, punham-se a observá-la e ao mar. E assim vinha a nuvem, lenta e inexorável, calando uma a uma todas as violas, capturando os olhares, que seguiam a negra sombra que tomava a praia. Um e outro, aos poucos o vento frio foi entrando nas almas, a praça foi ficando vazia, cada um correndo para o conforto da casa em busca das obrigações, a roupa no varal, os animais no quintal. Todos menos a mulher que, em pé diante do mar, aguardava em silêncio a nuvem que agora já alcançava a ilha. E o dia, que antes fora claro, agora se vestia de negro e era diante de uma imensidão azul escura que ela aguardava. E veio a chuva, preenchendo a atmosfera do dia de silêncio e frio. A mulher quis correr, retomar o percurso já conhecido da casa, mas tinha diante de si o negro oceano escuro, preenchido agora totalmente pela nuvem que caia sobre toda a ilha. E como fugir, se os olhos já adivinhavam que não havia outro caminho possível. Ele era a definitiva metáfora que sempre buscara, inesperada, surpreendente e irresistível. A música que ouvira dentro do peito e cujas notas nunca soubera interpretar. Ela caminhou lentamente para a praia, sentiu o bater forte da chuva nos ombros. Teve medo, quis voltar, mas como se já era o silêncio da chuva que tinha dentro do peito, empurrando-a para frente? Seguiu em muda contemplação até as águas negras da praia e sentiu as ondas subirem pelas pernas, enrolando as saias, dificultando o caminhar. Logo era puxada cada vez mais fundo, as águas tomando-a até o pescoço e carregando-a mais e mais para dentro. A chuva agora batia na janela das casas e ninguém via que a mulher se tornava aos poucos um ponto distante na praia, seguindo cada vez mais longe. E já não sentia medo, mas uma compreensão profunda do tempo e de si, deixando-se atravessar, fazendo-se também água, tempestade e silêncio. Em dado momento, a chuva amainou e as janelas foram uma a uma se abrindo e retomando a vida em seu curso. Mas ficou um tanto de silêncio e uma nota solta no ar, em meio à praça, enquanto mulher e águas, chuva e mar se tornavam um só, no infinito oceano azul.




https://www.youtube.com/watch?v=UgXDR21JDAs&list=LL2GnhMYDDqKL-F5eNCpGPCw&index=405

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