segunda-feira, 11 de maio de 2020

Sobre amor

Acordou com uma sensação de presença, aquecida no meio do peito. E pareceu-lhe ouvir as palavras que lhe tinha dito, antes de dormir, quase uma oração, de afeto e cuidado, pouco antes de fechar os olhos. Dormiu de um sono só e acordou para a nova semana tendo como testemunha um céu furiosamente azul. Então sentiu-se despertar como de um longo sonho. Perscrutou, como de costume, na memória do sonho recente alguma vibração indesejada, para expulsá-la, diante do dia que iniciava. E encontrou dentro de si um sentir diferente, como uma reza recitada ao longe, as mãos postas entrelaçadas ao terço, as palavras sabidas murmuradas quase em silêncio, tecendo uma trama de proteção e afeto em torno dela. Então finalmente aceitou, a benção de se saber amada, de ter a pele tocada pelo afeto alheio. Aceitou que o novo dia viria e que iria enfrentá-lo, com a certeza de ter um lugar, em meio ao caos, onde repousar em silêncio, quando as luzes se apagassem e pudesse ouvir sua própria respiração. Aceitou finalmente o amor como um toque profundo, que vinha do corpo alheio, multiplicando os sentidos e fazendo-a mais sensível ao mundo que a cercava. De repente sentiu os pés firmemente plantados no chão e a coragem de vivenciar o que quer que viesse, porque o amor cobria-como um manto, da mesma forma que a avó entendia os lençóis frios sobre suas pernas, antes de dormir. Então aceitou que não estaria pronta e que a dor viria, mas que a receberia como a um amigo, na certeza de ter feito a única escolha possível. Aceitou que em algum lugar alguém rezava pela sua vida e sentia a mesma vibração que ela, como se o universo se reorganizasse diante dos olhos dos dois, criando uma rede de proteção que só se sabe visível aos apaixonados. E que a paixão era uma marca profunda que sentia na pele todos os dias, quando se levantava, mas que nunca lhe dera tanta certeza de quem era e de qual caminho seguir. E aceitou a entrega como um lugar onde viria com todos os sentimentos, de dor, desejo, medo e tristeza, depositando-os ao chão, diante dos olhos alheios. Aceitou a profunda necessidade que tinha de estar ali e da magia indefinida que sempre sentia quando atravessava o limiar entre a normalidade pesada das coisas cotidianas e ousava cruzar o véu para alcançar aquele mesmo espaço, criado entre duas pessoas, onde o ar se multiplicava em minúsculas partículas de luz e o silêncio era preenchido de uma infinidade de significados. E aceitou que era uma mulher e que havia feito uma escolha, apenas um caminho a percorrer: ser Eu para ser nós e então finalmente tocar o infinito. Pois quando se te a pele e a alma marcadas pela força de um encontro, somente as palavras exatas são suficientes para fazer viver. E o tempo se multiplica na intensidade do vivido. E aceitou o universo com a desmedida inexatidão que lhe parecia, ali da janela onde o dia se iniciava. E aceitou que não haveria controle e ali restava a certeza da oração ouvida, protegendo-a de todo mal pela inevitabilidade do encontro; porque o amor era uma marca profunda que a destacava, delineando seus dias. E entendeu, finalmente. Nas falas da nano olhar distraído do pai, na continuação de si na filha, do afeto que recebia dos amigos, na benção silenciosa do universo, que por vezes lhe acometia percebêramos, pois que era reza profunda que determinaria seus passos a partir daí. Porque era amada e aceitara seu destino, que assim fosse.

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