sexta-feira, 1 de maio de 2020

Ainda sobre Orfeu

Reza a lenda que Orfeu, poeta e músico grego - em busca de Eurídice desceu à Mansão dos Mortos e ali, encontrando a sombra que um dia havia sido a mulher que amou, pediu a Hades, Deus dos infernos, para levá-la de volta ao mundo dos vivos. Comovidos pelo desespero do poeta, Hades e Perséfone concordaram, mas deram uma única condição: que no percurso de volta, Orfeu não olhasse para trás, sob risco de perder seu amor para sempre. Apaixonado, mas temeroso, Orfeu voltou brevemente os olhos para Eurídice. Foi o que bastou. Sem poder impedir, viu-a instantaneamente ser arrastada de volta para o reino das sombras. Enquanto observamos aqui, como narradores, o desespero de Orfeu, um pensamento surge: e se a história fosse diferente? E se o poeta, invadido por um amor inesperado, além de suas forças, que o fizesse cair de joelhos diante do caos - que precipitasse tudo aquilo em que acreditara antes na incerteza - passado e futuro diante de si desconstruídos subitamente e uma súbita e surpreendente vontade de viver? E se Orfeu decidisse acreditar? Não haveria quem afirmasse que o tempo já se havia esgotado e que o lugar de Eurídice era certamente nas memórias de seu amante? Ou mesmo aqueles que diriam a Orfeu - ora, trata de viver, há tanto que conquistar ainda, o mundo lá fora se desfaz em guerras, epidemias e incertezas, precisamos de tua força para tantas outras causas, maiores e mais nobres e você escolhe justamente o amor, o mais imprevisível dos acontecimentos humanos, fugidio e incerto, dolosamente breve, escapando diante dos dedos quando menos esperamos? Por que justamente o amor, Orfeu? Por que? E então o poeta, ao ouvir seus companheiros em desespero, certo de que só havia um caminho a seguir, responderia apenas: porque sou eu. Minha busca, ao descer o caminho das sombras não é apenas por uma mulher, uma história, um amor, mas por mim. Ao penetrar no inferno de Hades, ousei mergulhar nas minhas próprias fragilidades, caminhando nu e desprotegido, por entre todas as minhas pequenas certezas. No caminho, fui deixando aqui e ali fragmentos do vivido. Dores, memórias, convicções, tudo que me pudesse proteger e desviar. E então, quando nada mais havia e minhas mãos se encontravam vazias, cheguei até o rio onde viviam meus próprios infernos, mergulhei e ali, na escura água dos meus medos, contemplei minha solidão. E foi somente quando o silêncio se fez dentro do meu peito, é que pude compreender que Eurídice fazia parte de mim. Buscá-la era como buscar a mim mesmo, na difícil estrada da consciência de si. No cotidiano exercício de mergulhar no que não se pode ver, apenas sentir. Na inexplicável magia de ouvir um silêncio que vai de um peito a outro, incompreensível para todos os demais. E então eu acreditei. E Orfeu, sorrindo diante dos companheiros emudecidos, retomou o remo, apontou seu barco para a saída e finalmente, sem sequer olhar para trás seguiu adiante. Ao seu lado Eurídice ia, conforme se aproximavam da curva mais distante do rio, pouco a pouco ganhando contornos reais e deixando de ser apenas uma sombra, corpo e mãos entrelaçados a Orfeu, enquanto seguiam sem pressa seguindo sem medo as águas do rio. https://open.spotify.com/track/5fcjkWACO7WoIIDH0rtFU4?si=tkanY0o2RIWgS7SLrlcpuQ

Nenhum comentário: