quarta-feira, 15 de abril de 2020

Prosseguir

Trinta dias de confinamento. De idas e vindas. E mergulhos em infinitos precipícios distintos e diários. E a certeza de que me perco a cada dia e que me encontro no mesmo lugar ou que corri quilômetros na mesma estrada escura e sinuosa, para descobrir o mesmo espelho onde já não reconheço mais os meus traços. Em um mês de confinamento fui pouco a pouco perdendo a certeza de que um dia ia passar, que logo tudo voltaria ao normal. De repente compreendi a dura realidade: quando tudo voltasse eu não voltaria, porque já não era mais a mesma, arrancando com minhas próprias unhas camadas de pele e certezas e ousando abrir as mãos e deixar caírem subitamente todos os meus planos. Em vão as tabelas e listas de afazeres começam a acumular poeira e aquela velha página do mesmo livro de poemas tantas vezes relida e marcada, com sangue e lágrimas, adormecida ao meu lado ao longo de tantos anos, hoje passa a habitar o meio do peito, apertando a garganta, aquecendo o corpo e convidando ao risco. E se já não é possível enxergar o final dessa tempestade, também não é possível precisar a extensão do mergulho do que me move hoje. Para além do roteiro de medo e morte, na terra batida de todos os dias, um rio inesperado subitamente toma força, rompe as comportas dos vividos e se torna mar, subindo pelas pernas, tirando o fôlego e me levando além das paredes fechadas do apartamento e dos muros altos dos discursos de morte alavancados pela imprensa. De repente tudo se torna um confuso vozerio sem sentido enquanto aqui dentro o que me toma é um silêncio interminável cheio de significados. E todas as dores de uma nova metáfora, inevitável, inesperada e que me leva irremediavelmente a prosseguir.

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