sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

Areia

Feito areia que o vento toca
E desmancha as marcas dos pés, no molhar das águas.
Lágrimas. Suor. Sangue.
Feito o tempo que acumula nas gretas dos móveis, nas dobras da cortina.
Das fotos que persistem na estante, onde sorrisos, vozes, abraços acumulam ainda na retina e se misturam ao duro silêncio da sala vazia.
Porque é de ausências que se faz o dia e todos os ponteiros do relógio.
E são as mesmas mãos entrelaçadas de antes? As mesmas juras ou o mesmo sentir, ou já é outro tempo que se cristaliza nesse instante, da luz amarelada que incide sobre o vermelho xadrez do tecido, sobre a pele, seria a mesma? São as mesmas águas, o mesmo sentir, a mesma dor? Mas não.
Porque é outro corpo que surge, diante do caos, da dor e ousando ir além da morte e caminhar novamente. E há um encantamento novo, que ousa paralisar o tempo enquanto sobe no ar a fumaça do café. E são múltiplas dimensões do sentir, carne, sons e poesia, presos em canções ainda a aprender, com muito de medo e outro tanto de desejo.

Feito areia, escorrendo nas mãos abertas, porque a única certeza que se tem é que tudo flui e que todo rio corre para perder-se no infinito profundo desse mar que ainda não ouso tocar, mas que já amo, na silenciosa admiração de suas formas e que me dói não ser mais forte, não ainda, para mergulhar. Como eu queria não ter sangrado tanto tempo e estar mais forte para te ser na intensidade devida, mas não. Tudo o que eu consigo é reter um pouco mais a respiração e conter o impulso desenfreado de correr para bem longe, enquanto é tempo.
Mais um segundo, apenas mais um segundo e já será tarde demais.
Por isso me detenho ainda mais um pouco, na escuta silenciosa de tuas cores.
E me perdoa se minhas palavras sempre tem lacunas. É porque adivinho o profundo de tuas águas e me antecipo na dor de sua ausência, porque o fim sempre virá.
Mas é nesse segundo de distração, enquanto ouso te olhar, que súbito percebo que já sobem pelas pernas as ondas incontroláveis do tempo que corre e desse mar incontornável que me toma e que se mistura às lagrimas que eu ainda choro.
Só mais um segundo, eu peço, me deixa te olhar mais um instante, sem que nenhum movimento seja feito.
Porque é nesse segundo infinito em que percebo que não há controle, porque mesmo onde se trancam as portas e se corre a chave, a poesia se esconde nas lacunas e o silêncio espera no escuro do quarto. Nada mais me resta do que oferecer o pouco que tenho, essa dor infinita, esse desespero, essa vontade de te tocar e te descobrir, esse medo infinito da dor que eu já sinto, esses poucos fragmentos, palavras e sangue que ainda me cortam a carne, as mãos completamente vazias e uma ou outra metáfora que sobreviveu ao tempo e que já me toma por completo, à minha revelia, por mais me esforce.
E Deus, como me esforço.
Mas é em vão.
Sobre todas as palavras e esforços, sobre toda a liberdade pleiteada e garantida, sobre todas as estradas que ainda vou percorrer, há sempre uma luz dourada que incide sobre o dia e um silêncio que me invade, do cheiro da tua pele e de um tempo ainda desfocado que eu já antevejo e que me apavora e convida em igual medida e onde nada mais me resta do que seguir.

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