sexta-feira, 8 de maio de 2020
Então Alice chegou ao inferno.
Então Alice chegou ao inferno.
Finalmente, depois de dias sentindo-o aos poucos se aproximar.
Era quase como um nó invisível, subindo ao peito, enroscando-se no pescoço, aumentando a pulsação, oprimindo o meio das costelas.
E um tremor inesperado, tomando pouco a pouco a pele, descendo na base da coluna e provocando ondas incontroláveis de calafrios.
E então, em meio à luz do sol que aquecia a varanda dourada do Outono, uma nuvem cinzenta, descendo aos poucos pelo morro à frente, fazendo-a sufocar. A dor, pelo inesperado, fê-la cair de joelhos ao chão. E sentia o tremor do corpo, subitamente, impedindo-a de gritar. Medo. Dor. Náusea.
Respira. Por favor, respira. Sentia a própria voz, tentando dominar o pânico, fazendo-a voltar a si.
Escuridão.
E então ouviu dentro do peito um silêncio como nunca houve.
Estava só e parecia-lhe que, subitamente, o irremediável atingia-a como um tapa, em meio à face.
Estava só, encolhida em silêncio no chão tentando capturar os últimos resquícios de luz solar. Sentindo os músculos retesarem e o pulmão inutilmente buscar todo o ar do ambiente.
Sufocaria. Inevitavelmente sufocaria e teria como testemunha apenas a nuvem escura que agora já bloqueava toda a luz do sol, fazendo-a tremer.
Medo.
Solidão.
Em um esforço desmedido, começou a tentar mover as próprias mãos, tocando a pele, em uma tentativa de aquecer. Sentiu os contornos dos ossos, a curva das pernas. Encolhida como estava, abraçou os joelhos. E fechou os olhos. E ouviu os sons descompassados vindos do peito, no tremor que vinha de dentro de si. E sentiu, como um golpe certeiro, a dor aguda no meio do estômago, fazendo-a gritar.
Dor.
Demasiadamente.
E sentiu a mãos se retesarem, involuntariamente. E ouviu a própria voz, dentro da cabeça, tentando expulsar os sons de dentro do peito.
Inutilmente.
O silêncio espesso imobilizava-a.
Então sentiu que vinha, de dentro do útero, contraindo-o como um espasmo, um sufocamento, como se a abrisse ao meio.
Dor.
Sentiu o corpo todo vibrar como se morresse naquele momento.
E as lágrimas saltarem dos olhos, enquanto ali do fundo da garganta, um ruído profundo, tal e qual um animal selvagem tentando escapar à morte. E gritou, como se a chicoteassem na pele, que se rompia ao toque.
E chorou, retesando às mãos no peito, contendo a custo os movimentos involuntários do peito. Sentia que seu ventre sangrava, gota a gota.
Antes morrer.
Como poderia viver apenas mais um segundo, sentindo como se todo o ar lhe faltasse, as unhas arranhando a pele, o peito tentando absorver o último fragmento de ar?
Antes morrer.
A intensidade oprimia. Sufocava. Fazia desejar a morte como se apenas ela pudesse dar fim à dor.
Antes morrer.
Em um esforço sobre-humano, conseguiu ajoelhar-se. Abriu os olhos e sentiu o rosto molhado, o suor frio que escorria pelo corpo. E a intensa solidão que vinha dentro de si.
Vivia?
Seria vida aquela agonia sobressaltada que atravessava o corpo, ventre, ossos, fazendo-a desejar mergulhar cada vez mais profundo, sem medo?
Antes morrer.
Porque naquele momento a vida lhe parecia um fardo impossível de carregar, na absurda constatação de que estava só e a dor de sentir era demasiada, quase insuportável.
Antes morrer a atravessar esse oceano profundo de sensações desconhecidas, o desejo fazendo-a a tremer. Preferia a normalidade conhecida dos mesmos dias, as caixas organizadas diante da sala clara, onde tudo tinha um lugar. Agora via, diante de si, o caos. O conteúdo de uma vida espalhado ao chão, papeis queimados, fotos, flores, fragmentos e memorias. Tudo restava ao chão. Levantou-se com dificuldade e parecia que passeava pela própria vida, ao contemplar os pedaços de papel, misturando as distintas etapas de tempo, conforme o mover do vento na sala. Percorreu devagar cada um dos fragmentos e parecia que ouvia os secos das vozes, os risos, os gestos, o sol que batia no pôr do sol. Quando foi que a paisagem inútil na janela deixara de fazer sentido? Quando foi que a suave normalidade das horas a jogou pela primeira vez de joelhos ao chão? Em vez de calmaria. Uma tempestade profunda, interminável, que subitamente arrancara-lhe a pele e deixara-a nua, exposta, em meio ao caos.
Dor.
Antes morrer a desejar tão profundamente um instante, o mergulho no fragmento de sensações para o que cada momento era irremediável, profundo, irresistível.
Antes morrer a vivenciar apenas mais um segundo de espera.
E gritava, pedindo ajuda, para que alguém, fosse pessoa viva ou morta, colocasse tudo de novo no lugar.
Porque sentir tão intenso e apaixonadamente era uma prisão profunda, inescapável, que rompia a pele e atingia o ventre. Porque não havia luz do sol ou metáfora que desse conta da urgência de ser. E já não podia esperar.
Antes morrer a sentir-se romper em pedaços que jamais iriam se juntar novamente.
Porque agora inutilmente a compreensão da dor paralisava seu movimento. Fazia-a sentir as paredes que a cercavam, as grades profundamente instaladas, o caos e a imobilidade dos instantes. Ali sentir era uma maldição irremediável diante do conforto cinzento de não ser.
Antes morrer a desejar tão profundamente.
Porque afinal descera ao inferno, buscando mergulhar profundamente no silêncio que ouvia dentro do peito? Porque afinal não permanecera na superfície? Agora, a insensatez da espera, as inevitabilidades do tempo faziam-na tremer. E uma raiva profunda crispava as mãos. De si e da audácia de ousar sentir.
Antes morrer.
Quando não havia rima ou mantra que trouxesse a paz que tanto buscara.
E no final das horas intermináveis de percurso, que a levaram exatamente ao instante onde sentira a terrível dor, alguns momentos atrás, a verdade atingira-a como um soco na boca do estômago: jamais buscara a paz, a calmaria das horas suaves, a luz dourada aquecendo-a suavemente, antes do fim do dia.
O que buscara era o caminho oposto, de ter diante de si o inferno do próprio silêncio, da irremediável fragilidade de ser, penetrar sem medida na escuridão na busca de um instante de êxtase e oferecer para isso a própria vida em tributo.
Antes morrer. Porque a vida, desmedida, intensa, expandida até o limite das pernas esticadas em direção ao infinito, parecia-lhe subitamente demais.
Antes morrer. Porque a verdade de si, a absurda constatação de que não haveria paz, oprimia o peito e colocava-a novamente nua, sem defesa, sozinha em meio ao caos.
Antes morrer, porque a poesia de ser doí-a como um golpe de morte e não havia remédio para quem entende que o único caminho possível é mergulhar.
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