quinta-feira, 18 de abril de 2019

Desacelera

De todas as coisas que aprendi a mais importante foi a entender a brevidade do tempo das coisas e das pessoas...Assim, mesmo bem pequena eu sempre soube ou intuí que cada momento era único e me dava angústia,sempre me deu, perceber que a configuração perfeita,de pessoas e lugares era muito muito breve...Isso porque eu sempre consegui enxergá-las em um fluxo constante. Jamais estiveram paradas. Durante um bom tempo eu tentei reter - pessoas e situações - por amor ou por medo de sentir dor. E percebi, mesmo que muito devagar,que não se pode reter o tempo. Foi assim que aprendi(ainda que - como dizia a minha vó -com muitos galos na testa,como são todas as coisas que a gente aprende de verdade) a maior declaração de amor que alguém pode fazer por você é compartilhar o seu tempo. Independente de grana, pressa, dores, distâncias... Porque dizer sim não tem lugar fora do intervalo do nós...Essa certeza veio desde a adolescência, quando eu passava horas jogando conversa fora nos pátios do CEFET, das resenhas inesquecíveis da faculdade, dos meus cafés salvadores,das muitas pessoas que conheci e conheço e que passam um tempo e depois se vão..Mas no momento em que ficam,nesse incrível e insubstituível intervalo entre o sim e o não, é que se faz a comunicação, onde a música pára e aquele que está do seu lado, amigo, amor ou as duas coisas juntas, consegue sentir a presença sutil do tempo ....Que não é feito de matéria, imagem ou máscaras ,mas de um sentir em comum,sem pressa ou razão,tão efêmero quanto exato.

segunda-feira, 1 de abril de 2019

Sobre o feminino e o flamenco

No espaço do palco, no jogo de luz e sombra, no movimento das mãos em direção ao céu, no giro vertiginoso dos ombros, no farfalhar das saias, nenhuma outra dança celebra tão profundamente o feminino em todas as suas nuances quanto o flamenco..Se no ballet o instante do ápice é um breve intervalo da juventude - ainda que infinito enquanto dure, posto que, logo o tempo vem, no distender dos músculos, na limitação do corpo - no flamenco, o tempo do corpo é o que torna o bailar mais belo. A mulher flamenca, quando pisa no palco, do alto dos seus grossos saltos, leva com ela toda sua história, de dores e perdas, entrega e paixão. Ali, enquanto baila, nada permanece na sombra, o peso de todos os dias, os instantes de desespero,as lágrimas e mãos fechadas e as palavras não ditas e tudo que não foi. Porque o flamenco se alimenta desse desesperar, o pranto difuso, a incerteza do instante seguinte, o longo e doloroso silêncio da espera, em vermelho e negro.Já é a carne viva, que se consome em cada passo, no correr dos anos. Já é a inevitabilidade da entrega.É saber-se parte de algo maior, que te convoca ao primeiro contato, do qual não se pode fugir, de um fogo que consome por dentro, que sabe ser dor, mas também êxtase e que sabe ser tempo, vivido no mais profundo do que o feminino pode ser. Mulher que não se faz em um dia, mas no passo dos anos, desde o primeiro aprendizado das palmas, desde as primeiras notas no taconeio dos pés...E as mãos que se erguem,jamais deixarão de girar.Elas sabem que o movimento perfeito só virá com o caminhar dos dias, com as rugas no rosto, com o cansaço das costas,com nascer e morrer, com o movimento que sempre pode ser o último, com o frio que entra por vezes, e pede que um xale cubra os ombros. Porque os joelhos que se erguem em direção ao céu, também doem e pesam e tremem muitas vezes.Mas no vibrar da guitarra, na cadencias das palmas, esse corpo se move, o rosto se ergue e é com segurança que essa mulher atravessa a roda em direção ao centro.Ali, ao riscar ao chão e se posicionar, em meio aos gritos e sons, essa mulher, geralmente mais experiente, carrega toda sua história e a oferece para cada um que a observa.Nesse momento, não há medo ou hesitação. Ela e o flamenco são uma coisa só.Algo que pulsa na mesma cadência das cordas da guitarra, de um ritmo que se sente no meio do peito,que corta e queima.Em vão tentarão limitar a dança ao som de um ou outro ritmo, ou palo. A dança esta ali, no corpo da mulher, enquanto ela gira suas saias, abre e fecha suas mãos,sente a melodia vibrar por toda a pele, como um toque -que se faz sem pressa,de si para si. E quando ela taconeia, não pode esconder um sorriso..Nesse intervalo de notas, de giros e palmas, é onde repousa o feminino,vermelho,intenso, rasgado de sentir e ser. E são todas Carmens e Saras e Marias e Esmeraldas, girando as saias e cortando o ar com as pernas. Não seria o mundo, em seus invariáveis tons de cinza, que as prenderiam.Não seriam os homens, em sua incompreensão,que as limitariam. Elas existem. Infninitas.Fortes. Perenes. Flamencas.

quarta-feira, 20 de março de 2019

A vendedora de poesias

- Senhor, aceita uma poesia? - Ao homem alto que passava, sobraçando processos jurídicos e que seguiu em frente, como se não ouvisse e visse nada além das folhas amareladas da justiça. - Senhora, aceita uma poesia? - à mulher que cruzou a esquina, em seus intermináveis saltos altos, as pernas tocando as faixas brancas do asfalto, como se deslizasse. A mulher olhou-a, como se uma girafa cruzasse seu caminho em plena avenida Primeiro de Março e o susto diminuiu sua marcha por alguns instantes, a ponto de franzir as sobrancelhas e e deslizar os olhos pela figura inusitada que a interpelava. Em segundos decidiu, não conseguiu definir o que seria, ouviu um pedido, devia ser dinheiro, recobrou a pose e o passo, virou a esquina próxima. - Senhora, uma poesia? - Senhor, um minuto de atenção, para oferecer poesia? - Moça, uma poesia, por favor? Moça, moço, senhoras e senhores, ninguém olhou. A vendedora foi caminhando devagar, desanimada, no braço uma cesta com vários rolos de papel presos com fita vermelha, a mochila nas costas, pesando além do possível, a vida toda estava ali. Eram três da tarde e o asfalto do centro do Rio de Janeiro ardia e ainda era outono. Aqui e ali, uma multidão de engravatados e engravatadas, suavam em suas gravatas e tailleurs, tentando alcançar a tal da meritocracia, correndo do Tribunal de Justiça até o Ministério do Trabalho e de lá de volta, no intervalo do semáforo. Por todo lado, os ambulantes com carregadores, pen-drives, fones, de todas as cores e formatos. Iam até o meio da calçada onde sempre alguém os alcançava, realizavam a venda e voltavam para a Praça XV, onde reabasteciam. E não parava nunca de circular os artefatos eletrônicos e a papelada da justiça, orquestrados pelo vermelho e verde de cada sinal. O trânsito, como coisa viva, seguia inacreditável, infinitamente, do final do Aterro do Flamengo até a rua Presidente Vargas, um ser vivo, feito de fumaça, carros, motos e ônibus, interrompido (brevemente) pela passagem do VLT. Em meio a tanta vida, movimentos rápidos e coisas e pessoas, a vendedora de poesia circulava, como um ser invisível, tentando oferecer sua mercadoria aos passantes. Seria a roupa, o gesto, a voz baixa ou a oferta inusitada que assustavam as pessoas? Houve quem, ouvindo a pergunta da vendedora, apressou o passo, pensando tratar-se de assalto. Ainda assim, ela insistia, porque não havia mais nada que ela pudesse oferecer. Apenas as palavras com que nascera para enfrentar o mundo e as mãos completamente vazias. Um percurso de silêncio e negativas, era preferível a nenhum percurso, ela acreditava. Imersa nesses pensamentos percebeu que estava na Praça XV. O calor ainda era infernal, mesmo no outono. E quando não seria? Mesmo na chuva, as pedras largas do calçamento colonial ferviam uma àgua a contento, se assim fosse necessário. A vendedora sentou-se por alguns instantes em frente ao chafariz do Mestre Valentim, deslizou a bolsa pelos ombros e depositou a cesta de poesias sobre as pedras do muro, tentando afastar os pombos que insistiam em bicar a mochila, atrás de farelo. Estava nessa empreitada quando sentiu que se aproximavam. Uma senhora, sobraçando várias sacolas, se aproximou e perguntou: - São doces? -Não. São textos, a vendedora respondeu, distraidamente. -Você está vendendo? A senhora, insistiu, curiosa. Surpresa com o interesse, a vendedora, olhou-a pela primeira vez. Era baixa, com os cabelos presos em um coque elegante e a roupinha bem passada e bem-posta, de casaquinho e saia, completando com sapatos da mesma cor. Uns óculos enormes, redondo, completava o conjunto. Além das intermináveis sacolas plásticas que carregava, havia uma bolsa vermelha, pequena e surrada, pendurada em um dos braços. A senhora insistiu na campanha: - Mas você vende mesmo? -Não senhora, são todos de graça, mas ninguém quer aceitar por aqui. A senhora gostaria de ver? -A vendedora, achou que valia a pena perguntar. -Se você quiser me mostrar, eu aceito. Estou esperando o horário do meu ônibus. Sentou-se alegremente, ao lado da vendedora, espalhando sua bagagem pelo muro. -São poesias que faço desde pequena, disse a vendedora, ofereço um canudo à mulher. São todos escritos, revisados e impressos por mim. Venho aqui todos os dias, mas ninguém aceita meus textos, alguns pensam que é assalto, outros acreditam que estou vendendo algo. A velha senhora riu, bondosamente, enquanto abria a bolsinha vermelha: - minha filha, fui professora de literatura, estive em sala por trinta anos e posso te dizer que textos fechados não chamam a tenção de ninguém. Quantas vezes fiz impressões do meu próprio bolso, mimeografei – sou do tempo do mimeógrafo- folhas de textos, letras de música, ninguém prestava atenção. Foi somente quando comecei a promover leituras em conjunto, a encenar as falas, a criar grupos para a leitura coletiva e interpretação de cada um é que consegui que me ouvissem. A escuta humana é muito limitada, não ouvimos aos outros e também não vemos uns aos outros. Às vezes é preciso gritar. -Mas e se alguém se incomodar com meu grito? A vendedora começava a achar a senhora um pouco insana. -Se há uma coisa que chama atenção dos sujeitos é a loucura, minha filha, você vai ter todos os ouvidos de que precisa. E se alguém se incomodar, ora, não podemos prever a reação da plateia, não é mesmo? Não é que talvez a senhora tivesse razão? A vendedora perguntou: - e a senhora gostaria de ouvir um poema? -Sim, por favor, ainda tenho tempo para dois poemas e até uma crônica, desde que seja das curtas. Meu ônibus demora ainda um bocado. A senhora suspirou. - Pois bem, então vejamos o que nos cabe hoje, disse a vendedora, resolutamente, sacando um rolo de texto da cesta. Tirou a fita, desenrolou-o, ia começar a ler. -Assim não, assim eu mesma leio. Você está lendo como se tivesse vergonha do que escreveu. A senhora protestou. -Mas se não assim, como? A vendedora ficou confusa. -O texto deve ser voz e corpo, deve ser cantado ou, ao menos, falado com energia, como se toda a sua vida dependesse disso, a senhora, agora abanava-se com um pequeno leque rendado. A vendedora pensou. Pensou e por fim decidiu-se. Deixou a cesta ao lado, subiu no muro e começou a ler. As primeiras palavras saíram a medo, a voz baixa de quem espera ser interrompida a cada momento. Mal podia respirar. A senhora, sorridente, ajeitou-se melhor para ouvir. Na quarta linha, já não sentia mais medo, entrou no texto, ganhou ritmo. Nem viu quando duas meninas, vindo das barcas, pararam para observar e nem mesmo quando o ambulante, curioso, interrompeu a venda e parou também. O engravatado, pensando tratar-se de protesto, cutucou a Guarda, que fazia sua ronda, mas ao chegarem e ouvirem a poesia, acabaram ficando por ali, sem saber o que fazer. O pipoqueiro, lentamente estacionou a carrocinha em frente ao muro, e quem chegava atrás do cheiro das pipocas doces, recebia de brinde uma ou outra frase do texto lido. A vendedora fechou os olhos e continuou a recitar, sabia a poesia de cor, afinal. Na última linha, parou a medo, pensando estar sozinha. Foi quando ouviu inacreditáveis aplausos ao seu redor. Abriu os olhos e havia uma pequena multidão de passantes sorrindo para ela. As meninas, comovidas, abraçaram a vendedora. A cesta circulava por ali e cada um que tirava um texto, deixava um trocado, uma moeda, houve que depositasse uma rosa e até um saquinho de pipoca foi encontrado. A vendedora, surpresa, voltou os olhos para a senhora, para agradecer. Não estava mais ali. Perguntou a todos, ao pipoqueiro, as meninas, ninguém tinha visto uma senhora magrinha, cheia de bolsas na mão. Finda a leitura, a Guarda tratou de dispersar os passantes, cada um voltou a seu caminho. A vendedora, a cesta nunca antes tão cheia, seguiu o seu também. Agora todas as tardes, em frente ao Paço Imperial, a pipoca das dezoito horas, as vendas de ambulantes passatempo de quem pega a barca, vem com um tempero de poesia, lida ou cantada, dependendo da ocasião. Há quem diga que até os pombos da praça param para ouvir. A cesta de vime continua no muro e mesmo quando não há público, a vendedora continua lá, todos os dias, oferecendo seus versos. Pela primeira vez, em muito tempo se sentia livre.

segunda-feira, 11 de março de 2019

A máquina

Era uma máquina velha, marca Singer, daquelas grandes, de madeira escura, com pedal de ferro negro. Subiu pelo elevador e foi depositada no meio da casa. A mulher chegou, contemplou o objeto por alguns instantes e sentou-se no chão da sala, sem saber o que fazer. Duas da manhã e se coragem de dormir, ela fez um chá e então, na volta para o quarto, se deparou com a máquina, ocupando metade da sala de estar. Aproximou-se devagar, quase respeitosamente. A cada passo ia se sentindo mais jovem, como se os anos fossem, passo a passo, fugindo pela ponta dos pés. Quando se sentou no chão era quase uma menina, vendo o pedal da máquina trabalhar incessantemente. Vez em quando ela pedia: - Vó, me deixa pregar um botão? A vó deixava. -Vó, me deixa usar a tesoura de picotar? A vó deixava. Ia deixando tudo, no tempo certo das coisas. Enquanto isso, no intervalo do almoço e do jantar, a vó cosia e cortava tecidos e pregava botões, sem esquecer dos suspiros da tarde e o pão do lanche, comprados na padaria da rua de cima. Todos os dias. Aos domingos, depois do almoço, banho tomado, a menina sentava no muro de pedra e esperava o bonde, que sempre atrasava. Eram duas horas, até a composição amarela atravessar a rua Araão Reis e os passageiros saltarem. No balanço do trilho, o bonde atravessava os arcos da Lapa, sacolejando até o Largo da Carioca. A avó ia do lado, contando causos, falando das ruas e das pessoas que passavam. Falava muito dela também, da infância no Lins de Vasconcelos, assim mesmo, com nome e sobrenome, como ela chamava o bairro onde tinha morado. Também falava do cinema, passatempo de sábado, que frequentava ainda menina. Na voz da avó a menina ouvia falar do Cine América, do Olinda, de velhas salas de projeção na Avenida Saens Pena, onde o cotidiano virava romance, suspense, terror, dependendo daquilo que estivesse em cartaz. Para a menina, as histórias contadas no balanço do bonde eram o melhor filme, desenrolando-se diariamente diante dos olhos dela, como a linha dos longos carreteis presos ao tubo da velha máquina de costurar. Nos pés firmemente plantados no chão, sempre manejando o pedal, a vó ia cosendo a vida de toda a família. E da menina, que se tornou mulher e se tornou mãe, as mãos presas ao pulso cada vez mais frágil da avó, que ganhava uma dobra, uma ruga a mais, a cada ano que passava. As histórias se repetiam, os pontos ficavam mais largos, a tesoura custava a cortar os tecidos. Um dia, no manejo do pedal, no girar da roldana, a linha partiu e a máquina silenciou. Ficaram no peito da mulher o som contínuo da costura, os fios coloridos sobrando na gaveta e a tesoura de picotar enferrujada.de repente, não restava nada, só a velha máquina de costura, com um fragmento concreto de memória diante dos olhos. A mulher ergueu-se, deslizou as mãos pela superfície carcomida de madeira, nas gavetas remanescentes. Experimentou a roldana, não soube manejar. Nunca chegara a pedir que a avó a ensinasse a costurar, como se acreditasse que ela sempre estaria ali, para coser as meias dos primeiros erros, para abrir casas onde não houvesse saída, para prender um a um os retalhos da sua história. A máquina persistiu, no meio da sala, em silêncio, para acabar de envelhecer junto à mulher, que a cada dia parecia mais cansada e mais triste. Mas os retalhos e linhas permanecem ocultos, aguardando outros olhos e mãos curiosas para aprender a fiar mais um pouco de histórias, na poesia dos dias.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Cartas a Helena III

Enquanto o mundo descobre outras e variadas formas de NÃO funcionar, constato (assombrada) que a cada dia você se torna outra. É sempre uma outra Helena,maior, mais inteligente e mais linda que me lança olhares compridos da beira do berço.Enquanto nós, os adultos, nos esforçamos em pensar estratégias de sobrevivência, você prepara um ser humano completo, feito de curiosidade e encantamento. Percebo nos seus olhos a fome pelo mundo e nada te escapa: já são as mãos que se erguem em direção ao novo e as pernas que fortalecem os músculos, se preparando para percorrer todas as estradas possíveis.. Vivemos em tempos sombrios, minha querida Lenuccia, onde os homens odeiam por ignorâncias e por costume e amar o outro passa a ser tarefa dos loucos e sonhadores.Aqui nesta casa somos todos um pouco dos dois.Meio loucos, meio sonhadores.Tua mãe, com seus azuis misturados em tinta, tua bisavó com a música na ponta dos dedos, seu avô Paulo com a capacidade de captar nas lentes fotográficas toda a beleza do mundo.A mim me coube senti-lo, em dores e alguma poesia, no ofício da escrita, com a qual respiro e vivencio cada dia. Nas fotos, na dança, nos filmes, a escrita me atravessa, constituindo tudo que sou. Somos todos mais ou menos atravessados pelas palavras, que nos ajudam a compor o que somos, nossas companheiras de viagem. De minha parte, escolhi ou fui escolhida, companhia desde que comecei a entender o significado:poesia. Do dicionário vem a explicação de daquilo que organiza harmoniosamente imagens e palavras? Assim, vivo de imagens e palavras que auxiliar na caminhada pelo mundo e me ajudam a sobreviver.ultimamente, contudo,minha poesia está atravessada por tua chega.Você,Helena é a poesia maior de todos nós, o encantamento vivo que nos faz perder a hora e as tarefas do dia, esquecidos, a contemplar teus pequenos gestos, teus constantes sorrisos, suas mudanças diárias.De repente, é como se tivéssemos em nossa casa uma poesia de pernas, braços e olhos muito vivos, que brilham em direção ao mundo.Também vão se revelar para você, tenho certeza, uma infinidade de palavras e imagens,que irão te tocar e te encantar com a magia de se combinarem e se tornarem poesia.Não deixe que o medo te impeça de mergulhar.Se entrega a elas e então poderá, definitivamente voar.

Sincretismos

Fui criada como todos os brasileiros (ou a maioria deles) em uma família onde o batizado era feijão com arroz,todo mundo tinha um pezinho no terreiro e outro no esoterismo..Como criança alérgica que fui, os patuás, misturinhas,ervas medicinais, pomadas e ungüentos sempre dividiram espaço com as caixas de antiflamatórios e analgésicos tradicionais, uns e outros usados com parcimônia pela minha mãe... Remédio mesmo era a barra de chocolate ao lado da vacina semanal, das que doíam, no braço e os olhos fechados para enganar a dor.Remédio mesmo era e é a reza da minha vó, feita com o terço e a receita embolada entre as mãos. E nunca deixamos de nos desejar boa noite, ao ouvir no rádio a Ave Maria..E de frequentar a igreja católica, às segundas-feiras, para rezar pelas almas... Cresci conhecendo muitas das celebrações e rituais da umbanda,as festas de crianças e suas cores e ruídos inacreditáveis, os cantos dos quais ainda me recordo e o cheiro de ervas misturado as velas..Já na escola me lembro de ver a imagem de Oxum, na representatividade da dança folclórica,rasgando o palco em ouro e amarelo e me emocionando até a alma. Eu já arriscava meus passos no carimbo e maxixe, mas foi no espelho de Oxum que deixei a minha alma e me prometi que um aprenderia essa mesma dança,bela entre as mais belas...A mesma reza dos orixás era a Reza da igreja e talvez por ter crescido sem uma religião definida eu tenha aprendido a respeitar todas..Ainda adolescente conheci o kardecismo e a religião messiânica ,que me aproximaram da ciência do toque,do sentir o outro e me fizeram crer em energia,das que a gente transmite entre si...A cura então não estava mais somente na palavra, mas na incrível capacidade do humano se tornar coletivo, criar um mesmo espaço de existência ao erguer suas mãos em direção a alguém. Talvez por isso, antes mesmo de entender o que seria um estado laico eu compreendia a instância do sagrado na vida de cada um eu tenha aprendido ainda em criança o momento certo do silêncio e do sujeito transcender, qualquer que fosse o objeto de sua adoração...Ao logo da vida conheci ateus mais progressistas que o mais erudito e aplicado dos religiosos e descobri que no ser em comum ou seja,em sociedade, não pode haver espaço para somente uma forma religiosa. Se aprendemos a respeitar todas, estamos dando mais espaço para a possibilidade de convivência do que ao afirmarmos que uma ou outra verdade deve ou não ser seguida. Porque verdades não podem nem devem ser seguidas, como os sujeitos, que nascem, apenas e somente para transcender

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

Queen e eu

O ano era 1992. Uma segunda-feira comum, especialmente para quem, como eu, ainda estava na escola. Naquele dia, porém, 20 de abril, havia algo diferente. A transmissão do Freddie Mercury Tribute Concert pela TV Bandeirantes, concerto para homenagear o cantor e líder do Queen, morto em 24 de novembro de 1991. Meu aniversário, aliás e infelizmente, data fatídica para perder o vocalista amor da sua vida toda. Ouvi a notícia sobre a morte de Mercury enquanto anotava a programação diária do Disk MTV, tarefa diária, bem como comentar as performances das bandas que eu amava, todas devidamente expostas em pôsteres nas paredes do meu quarto. Morria com ele meu sonho de ver um show do Queen ao vivo após perceber, ouvir falar, da mais incrível, fantástica, extraordinária performance da banda no Rock in Rio 1985. Eu tinha seis anos, mas já conhecia a voz inacreditável que levava músicas como Radio gaga e I want to break free. Ambas faziam sentido de uma forma inexplicável para mim e eu literalmente não fazia ideia do que queria dizer nenhuma das letras. Era apenas uma voz e ela me tomava completamente. Eu simplesmente precisava estar em um lugar onde essa música tocasse ao vivo, o que quer que fosse um show de rock com milhares de pessoas reunidas, mãos para o alto, em palmas ritmadas. Freddie Mercury era exatamente isso. O mergulho na profundidade musical de suas cordas vocais, na absoluta entrega do cantor e no imperativo de seguir cada um de seus comandos ao público. Em 1992 eu respirava música, mais precisamente a música que saia da transmissão da MTV ou do meu inseparável Walkman (favor consultar o Google, senhores, para saber do que se trata) do cheiro grunge dos adolescentes batedores de cabeça, flanela e cabelos ao vento, da absoluta solidão em preto e branco do Metallica, da rebeldia melódica do incontrolável e requebrante Axl Rose, sempre em busca da sua “cidade-paraíso”. Pouco me importava, à época, as drogas, as confusões, a atmosfera sombria que as mídias normalmente constroem à guisa de produto em torno dos astros de rock. Eu consumia, devorava, cada uma das revistas, dos pôsteres, da vida de todos eles, todos menos um, Freddie Mercury. Ao ouvir Queen, era a música que me consumia, em cada um dos acordes. Não por acaso a primeira escuta de Bohemian Rhapsody provocou um efeito devastador. Como era possível que aquele homem pudesse unir o lírico ao rock em uma obra inigualável, eu não podia compreender e acredito que nem hoje eu possivelmente conseguiria. À época, eu obviamente não poderia precisar a importância da obra, considerada a música mais executada do século XX . Posso dizer que fui responsável por parte considerável das execuções, pois não foram poucas as vezes em que me rendi ao refrão inescapável, ao coro absoluto e poderoso de Roger, Bryan, John e, claro, Freddie. Imaginem o frenesi quando, na divulgação do line up do Tributo a Freddie Mercury, ser Axl “my darling” Rose (o campeão absoluto de pôsteres no meu quarto) o responsável pela execução de Bohemian Rhapsody. Era consenso de que nem mesmo a melhor e mais preparada das gargantas poderia substituir Mercury com sucesso. Talvez por isso, o tributo tenha sido tão bem-sucedido, na minha opinião. Mais do que tudo, o show foi um marco da absoluta falta que Freddie faria ao mundo. Assisti ao show todo na casa de uma grande amiga, inseparáveis que éramos, na paixão musical, na audiência ao Disk MTV (um programa de televisão que computava votos aos melhores videoclipes) e no amor a Freddie Mercury. Costumávamos nos ligar (sim, crianças, aquela velha função dos telefones) e comentar os programas Disk MTV, Top Ten Europe e Top 20 EUA (ou assim me lembro dos nomes), além de anotar em nossas agendas os shows, clipes, execuções e ranking das bandas. Foi na casa dela em que ouvi pela primeira vez o álbum GNR Lies e tive nas mãos o premiado Apettite for Destruction, ambos do Guns ‘n Roses. E se uma coisa pode formar um ser humano ou, ao menos, fazê-lo feliz, é partilhar músicas com outras pessoas, particularmente se essa pessoa for sua melhor amiga na adolescência, aquele único ser que podia, sem dúvida, folhear cada linha da sua agenda e sabia de cor os nomes de todas as suas paixões, etapa memorável da minha vida. A quantidade de noites inesquecíveis que passei vendo shows e clipes, chorando por namorados perdidos, cozinhando nossas gororobas preferidas e rindo das nossas desventuras merecia um livro. A primeira vez em que provei uma bebida alcoólica também, um prosaico gole de licor de chocolate, nosso brinde à morte de Freddie, diga-se de passagem. Afinal, tínhamos espírito e corpos adolescentes, na ansiedade de nossas primeiras escolhas autônomas, de nossos primeiros ídolos, da formação de nosso senso crítico e das primeiras experiências inesquecíveis. O dia 20 de abril não foi diferente. Ao longo do show, Axl, Bowie, Extreme, Metallica passaram pelo palco do Wembley Stadium, enquanto nós, duas adolescentes brasileiras, chorávamos e riamos, criticando cada um dos cantores. Nenhum era maior do que o vocalista do Queen, para nós. O tempo se encarregou de reforçar essa opinião. Vi o senhor Freddie Mercury atravessar o palco com uma cantora lírica, entoar os mais pesados do rock n rolls e esvoaçar, deslumbrante, por entre os espelhos e escadarias de um palácio. Ao longo dos anos, chorei ao ouvir a performance do Live Aid 85, Wembley 86 e das performances do Queen no Rock in Rio, que só fui conhecer ao vivo muito tempo depois. Nenhum cantor, nenhuma performance poderia ser mais poderosa do que o Queen, embalando o êxtase de 250 mil pessoas, mãos para o alto, lágrimas nos olhos, ao som de Love of my life. Também eu estive ali, mesmo que em sonhos, ouvindo cada uma das músicas que amei ao longo da vida. Nenhuma música seria uma trilha sonora tão precisa quanto Under Pressure ou I want to break free, para meus anseios de liberdade. Nenhuma definição melhor do que os versos de Crazy little thing called love para explicar minha vida sentimental ou I want it all para explicar a necessidade de voar, ganhar o mundo, “spread my wings (esticar minhas asas). Ainda hoje, aos 40 anos, todas as vezes que ouvi Bohemian Rhapsody fui tomada por uma necessidade de levantar, cantar e dançar, a plenos pulmões e em todas, absolutamente todas as vezes a performance foi maior do que a vergonha, assim como Bryan, John, Roger e Freddie queriam, imagino eu. Não seria diferente em minha festa surpresa, quando fui presenteada com um momento realmente bom, ao som de Don´t stop me now, onde viajamos todos na velocidade da luz, pedindo apenas que ninguém nos parasse, ainda e sempre ao som de Queen. E hoje, após ver o filme, Bohemian Rhapsody e a performance incrível, extraordinária de Rami Malek, não sei quanto a vocês, mas eu estou “burnin' through the sky, yeah, two hundred degrees”. Thank you Freddie, Thank you for all.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

O café

Era um prédio na Rua do Ouvidor, onde as terças-feiras havia o baile dos idosos e os operários da fábrica todos os dias tomavam café. Cinco minutos e já partiam para o cartão de ponto, a manivela implacável computando horas e minutos na vida de cada um. Naquele dia partiram todos, menos um. Ao mexer o café, algo o alcançou, do outro lado da rua, para onde jamais havia olhado. Um movimento rápido, em uma construção aparentemente abandonada. Por entre as grades de ferro, retorcidas pelo tempo e a falta de uso, um vulto, uma luz diferente – seria um gato, um morador de rua? – Capturou a atenção do operário. Oito horas, de nove às seis, com uma folga semanal, exatamente às terças-feiras, quando comparecia ao baile exatamente na mesma rua onde costumava fazer o desjejum. Todos os movimentos em um mesmo circuito de tempo e espaço. Aquele dia, contudo, o movimento breve entre as grades o fez caminhar em direção inesperada. O café ficou na mesa, junto às moedas. O operário, Pedro era o nome, atravessou a rua. O prédio era centenário. Na fachada, quatro colunas de mármore sustentavam a custo a marquise, com uma longa rachadura em uma das bordas. Ao canto, uma janela de vidro, quebrada e uma faixa amarela, impedindo a passagem. Ali na porta do prédio, no entanto, não havia nada que o impedisse de entrar. As pessoas, quase todas, seguiam seu caminho. Pedro decidia-se se entrava ou não, quando um ruído de metal, tal e qual engrenagens girando, o assustou. Mas seria possível que houvesse alguma coisa funcionando ali? Olhou em volta. Ninguém parecia notar, nem Pedro, nem o Prédio. Decidiu-se. Ultrapassou a faixa de contenção, empurrou a grade, que cedeu facilmente em suas mãos, abrindo uma passagem. Pedro passou a cabeça, os ombros e entrou no grande saguão. Sobre o piso, um resto de tapete, de veludo vermelho. Aqui e ali moveis velhos, cadeiras empilhadas e vários metros de tecido em um rolo comprido, feito lona de caminhão, além de uma infinidade de caixas espalhadas, ocupando cada centímetro. Caminhou até uma delas, abriu a tampa e encontrou fotos e papeis, notas de compra e ingressos rasgados. Esquecido do horário, Pedro circulou entre as caixas, examinando seu conteúdo. Em cada caixa, fragmentos de histórias, imagens de um Rio de Janeiro de bondes e trilhos, de uma Cinelândia recém-inaugurada, chapéus e ternos cruzando as novíssimas avenidas. Ali dentro a atmosfera de mofo e poeira dominava o espaço como uma coisa viva, preservando os objetos em uma aura fantasmagórica. Pedro abriu uma caixa grande, esquecida sobre o balcão carcomido de cupins e de lá tirou vários canudos compridos, cada um contendo ilustrações de filmes antigos. Reconheceu o cartaz de um romance cuja história ouvira quando criança. Na trama a heroína, noiva do jovem cientista, desaparecera às vésperas do casamento, deixando a família consumida pela tristeza. O noivo, inconsolável, passara o restante dos seus dias no hotel onde aconteceria o casamento, esperando pela noiva que nunca voltou. A única coisa encontrada, muitos anos depois, foram os restos mortais do cientista, inacreditavelmente conservados, ainda sentado sobre uma cadeira, em frente a um velho projetor de imagens. Pedro ainda podia recordar a cena final, a sala em penumbra absoluta, a não ser pela luz do projetor, reproduzindo uma paisagem sombria de nuvens cinzentas e as aguas negras do mar. A memória ainda provocava calafrios. Perdido nesses pensamentos ele percebeu que, conforme caminhava para o interior do prédio, o barulho de engrenagens aumentava, parecendo vir do segundo andar. Seguiu até as escadas, experimentou o primeiro degrau. A madeira, envelhecida e úmida, fez um ruído grave. Apoiou-se no corrimão de mármore, esverdeado, surpreendentemente liso e brilhante, como se tivesse acabado de ser encerado. No patamar da escada, um vitral empoeirado de uma silhueta de mulher deixava entrar um facho de luz. Pedro venceu o segundo lance de escadas e chegou até o andar de cima. Alina penumbra, apenas as silhuetas dos objetos podiam ser vistas. Do corredor comprido vinha o mesmo som de engrenagens, parecendo ir além das pesadas cortinas no final do salão. O que exatamente Pedro ainda fazia naquele prédio ele não poderia responder. Talvez a curiosidade sobre o lugar. Mesmo tão abandonado, parecia conter uma espécie de engrenagem interna, como um velho relógio de parede. Imóvel, empoeirado, aguardando algo que o fizesse mover-se. Em que momento avançar na escuridão pareceu ser a única saída possível, em meio à infinidade de horas vazias que compunham o cotidiano? Seria tão mais fácil terminar o café, adentrar a fábrica, marcar o ponto de todos os dias, intermináveis, mas seguros, um igual ao outro? Houve, contudo, no intervalo entre os ponteiros do relógio de ponto um acontecimento qualquer, banal, um passo em falso e já um universo completamente novo se descortinava diante dos olhos. E já se sentia diferente do que fora no minuto anterior. O homem centrado em cada tarefa diária, no exercício cotidiano da sobrevivência, guardando apenas uma breve pausa para o respiro no café de todos os dias, subitamente perdera o prumo. Hesitara. E na hesitação residia uma vida inteira ainda por viver. Finalmente chegou até o final do corredor. Entrou, sentindo a atmosfera gelada do lugar. Parecia uma espécie de salão, com várias fileiras de cadeiras dispostas, tendo ao fundo um palco. Ao contrário do restante do prédio, o palco era iluminado por uma imagem, vinda do alto. Pedro reconheceu, o semblante iluminando-se diante da cena: um filme antigo, em preto e branco. Em meio à atmosfera isolada, onde o vento ondulava a vegetação de pequenas flores amarelas ao redor, um oceano de águas azuis, quase negras, intransponíveis. No cume da colina, um farol e ali, uma mulher. A câmera registrava suas mãos fechadas sobre o peito, os cabelos desalinhados, os olhos por entre lágrimas, de um choro profuso, enquanto Pedro, hipnotizado, observava sua agonia. Súbito a câmera afastou-se, como quem não quer interferir na cena. Isolou-se na confortável posição de plano geral. Como se adivinhasse, Pedro abriu a boca, inutilmente tentando gritar, mas a voz não saiu. O corpo leve da mulher voou por sobre as pedras, cortou as nuvens, sumiu nas águas escuras do mar. E o filme terminou. Enquanto os créditos se desenrolavam, Pedro, assustado, percebeu que não estava sozinho na sala. Havia um vulto, silencioso, sentado na primeira fila de cadeiras. Como se uma corrente elétrica atingisse seu corpo, Pedro sentiu as pernas paralisarem, os pelos da nuca eriçados. Pensou em sair correndo, pedir desculpas, voltar a seu café, ainda sobre a mesa. Mas assim como sabia que o passo à frente era a única saída possível, entendeu que, de alguma forma, precisava prosseguir. Avançou com delicadeza, para não assustar. A cada passo o pânico bloqueava sua garganta, atingia a boca do estomago. No final do corredor de cadeiras, entrou na fileira de trás de onde estava o vulto. O filme começava novamente na tela. Pedro então olhou para o ocupante da fileira da frente. Sentada à sua frente, uma mulher, às mãos postas sobre o peito, os cabelos em desalinho, sem parecer registrar a presença de mais alguém. Olhava diretamente para a tela, que projetava sua luz em seu rosto. Num impulso, Pedro ergueu-se, atravessou a fileira, sentou-se ao lado dela. A mulher não pareceu notá-lo. Ao contrário. Sem tirar os olhos da tela, deixava correr pelo rosto lágrimas grossas. Num segundo reconheceu-a: É você, a mulher no filme! A voz, rasgando o profundo silêncio do lugar, atravessou a penumbra, atravessou a mulher em cheio. O rosto adquiriu uma expressão carregada. Fechando os olhos, a mulher assentiu. Então, erguendo-se, caminhou até o final da sala e saiu. Pedro seguiu-a, mas, ao chegar até o corredor, ela já desaparecera. Procurou em vão por cada canto do prédio, mas a única coisa que encontrou foi um velho álbum de fotos. Demorou-se em uma em que a mulher, ainda jovem, posava diante do hall de entrada, usando um belo vestido. Passou pela grade, voltou à rua. Ninguém parecia ter notado sua aventura. Até mesmo o café seguia na mesa. A xícara branca, sobre a mesa, atingiu-o como um raio para o retorno ao cotidiano e o dia perdido de trabalho. Pedro voltou ao ponto de ônibus e esperou. O percurso até em casa nunca foi tão longo. A casa nunca fora tão silenciosa. Deitado sobre o lençol ele não conseguia dormir. Como pudera suspender o ordenamento natural dos acontecimentos? Perder o dia de trabalho, a certeza das pequenas coisas, o café amargo sobre a mesa? Em um passo, colocara em risco uma gama interminável de sons e imagens do cotidiano e penetrara sua própria escuridão. Ali, cada passo levara a um mergulho em um silencio perturbador, onde nenhum caminho era seguro e a enormidade de cada instante oprimia o peito dolorosamente. Há quanto tempo não tomava uma decisão sem se preocupar com o que viria a seguir. O café, o ônibus, os cartões de ponto pareciam tão banais visto desse novo ângulo, enquanto adentrava um universo novo de inesperado e perguntas não respondidas. Pedro levantou, sem conseguir pegar no sono e foi até a mesa da cozinha, onde o velho álbum de fotos permanecia. Virou novamente cada página, procurando respostas. Havia fotos de um pequeno bebe, agitando os punhos para o obturador, diante de sua família sorridente. Mais umas páginas e o bebe aparentemente crescia, sentava-se sobre uma banqueta e posava novamente. Nas páginas seguintes, uma menina morena, de pele pálida, ia pouco a pouco, em cada clique, diminuindo seu sorriso, se tornando mais séria. Na última página havia apenas uma leve ruga dos olhos que, contudo, pareciam brilhar. Virando pagina a pagina era possível acessar cada momento da vida e adivinhar os instantes de silencio, entre a imagem e o cotidiano, em cada clique do obturador. Quantas palavras teriam sido silenciadas, quantos instantes ficaram gravados na retina, quantas vezes os punhos se fecharam de ódio ou de prazer? Em poucas páginas, toda uma vida passava diante dos olhos, como um filme exibido diante de uma sala vazia, sem interesse para mais ninguém. Em que momento seria preciso pular, fugir à prisão de instantes intermináveis, adentrar a sala escura de suas memorias, atingir os desejos mais obscuros e enfrentar a dor do não vivido? Quem estaria ali na plateia para ver? A madrugada avançou. Os primeiros raios de sol encontraram o despertador, que tocava na cabeceira. Pedro levantou-se de um salto, atrasado, mal conseguindo trovar e roupa e alcançar o ônibus, que já ia na esquina. Desceu na mesma rua, pediu o mesmo café, aguardou. Na cabeça o cartão de ponto, computando todos os minutos da sua vida, um a um, esvaindo diante de um interminável silencio. O café ficou sobre a mesa. O garçom tentou, inutilmente chama-lo. Já corria em disparada para o outro lado da rua. Pedro não ouviu. Já adentrava o mesmo buraco da grade e seguia pelo mesmo corredor, subindo as escadas em desabalada carreira. Atingiu o segundo andar. Transpassou a cortina. A mesma velha sala de projeção. Ali não havia ninguém. Sentou-se na primeira fila e olhou para a tela. O mesmo mar Negra as mesmas nuvens espessas. O mesmo vento na vegetação. Contudo, há um homem na beira do precipício, com as mesmas mãos ao peito, chorando silenciosamente. Enquanto a câmera se aproxima, Pedro, sentado na sala escura, contém a custo um grito: É sua a imagem do homem, diante do precipício. A câmera começa a se afastar. Pedro sabe que esse é o momento, tantas vezes visto, inevitável. Ele não pode impedir. Vê o close no mar escuro, os próprios passos em aproximação vertiginosa em direção ao abismo. Sente o final se aproximando, o coração em descompasso. Conseguirá sobreviver? Quais são a chance de viver quando quando se abre mão da sobrevivência banal, mas segura, garantida pela regulação sutil de cada instante de vida? Ou seria de morte? A única certeza de Pedro é que não há resposta possível. Ele vê em desespero a câmera se afastar, se prepara para chegar ao final. É quando há um súbito corte. Um par de mãos que tocam a vegetação ondulante e pés que se dirigem ao precipício. A câmera baixa, para acompanhar os passos. Chega até o ponto onde Pedro aguarda, olhando fixamente o mar. Há alguém que entra no canto esquerdo do plano, sem escondido pela grama alta do lugar. Uma mulher, os pés alcançando o lugar onde Pedro está. Homem e mulher sem se olhar. Apenas lado a lado contemplando a imensidão do mar escuro, intransponível. Ambos choram, sem, contudo, se olharem. Em um segundo, homem e mulher mergulham juntos, diante da tela, cortam as nuvens cinzentas, mergulham no mar infinito. Atônito, Pedro sente a presença, adivinha antes mesmo de voltar o rosto. Na velha sala de projeção, sentada ao seu lado, a mulher, sentada silenciosamente ao seu lado, olhos pregados na tela, um leve sorriso na curva do rosto.

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

4.0

Nem isto nem aquilo Nem tanto ao sabor do vento Tão pouco em trajetória milimetricamente calculada. Nem tanto de sabedoria inafiançável tão pouco de inesperado. Ainda resta um tanto de alma a ser desvendada enquanto o corpo permanece em movimento contínuo tentando alcançar o céu.. Nem isto nem aquilo. Ainda cabe a poeira nas cartas guardadas no guarda-roupa mas o peito já se resguardada amiúde.E se o sorriso permanece no rosto ,em mudo convite, lá em cima resta a lua, inalcançável. ...Então dança, moça,por sobre a chuva..Molha teu corpo com todos os dias que ainda te restam e arrisca ter sempre um quê de esperança,como em desafio....Pula todas as poças, ri de todas as regras, só não te esquece que, no fim de tudo, seu único lugar intransponível é bem aí ,dentro de si e ama como se tua vida dependesse de cada instante de paixão... teu corpo.tuas regras mteu tempo...

sábado, 3 de novembro de 2018

Cartas a Helena II

Tenho a impressão de que passaram muitos anos desde que você nasceu... talvez porque o tempo, por aqui, tenha caminhado ao contrário. Sei que você ainda não conseguirá compreender, mas o fato é que, em poucos dias, tivemos uma eleição violenta, de todas as formas que uma coisa pode ser violenta e ainda hoje, uma semana depois, ainda tento encontrar explicação para tudo que vivemos. Em muitos níveis, nos tornamos uma sociedade mais cruel e perversa e temos medo do que ainda virá. A tristeza ainda habita em cada um de nós, e acredito que muitos vão demorar anos e talvez décadas para entender o que houve. Sei que você vai estranhar minha insistência em falar de política, isso quando você começa a descobrir o mundo.... Helena, o mundo é maravilhoso, mas dentro de tudo que há, preciso te dizer, Há os homens e as formas como se organizam para viver...E preciso te dizer também que há uns que acreditam terem mais razão do que outros e mais motivos para viver. Da mesma forma que você aprenderá a ver as emoções das pessoas e sua capacidade de conviverem, de criarem meios de se tornarem eternos, há aqueles que só sabem odiar, querida helena e infelizmente não podemos evitar que as encontre. O conselho que te dou é que saiba dosar uma pitada de coragem e um punhado de sabedoria para não se perder em disputas desnecessárias a quem só terá o ódio dentro de si... que tuas lutas sejam apenas para garantir que possas ser e que os demais também possam ser. E nesse espaço cabe toda uma vida... Estou confusa hoje e sei e entendo que levará muitos anos para que entenda minhas palavras. Mas se me comunico hoje é porque falo com tua essência, percebo que também irá se engajar no respeito a tudo que é humano e na afirmação da vida. Uma vida como a tua, absolutamente única e linda. Fruto de duas pessoas também engajadas no respeito e na afirmação de tudo que é belo e humano, teus pais...Daqui de onde estou vejo teu rosto refletir o amor que têm por você e vejo já no seu rostinho o início de um reconhecimento, de um afeto profundo, entre ocre e eles. E que lugar privilegiado esse meu, de poder assistir à construção do amor mais profundo, esse teu e de teus pais. E se posso te dizer uma coisa para que guarde com você, como um relicário, aberto quando o coração precisa de alento, é que teu pai tem amor profundo por tipo tua causa, cresceram e crescem a cada dia... E acalentam e amam e fazem planos...como cabe aos pais…enquanto eles tecem o afeto mais desmedido, você cresce a olhos vistos e seguimos todos, por entre tudo que acontece nesse país onde vivemos...

sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Cartas a Helena

Faz hoje três semanas que você chegou. E eu, que já me achava com os pés esticados, prontos para o voo, voltei meus olhos na sua direção e me perdi no tempo entre você, sua mãe e eu. Enquanto o mundo lá fora gira cada vez mais rápido, você cresce a olhos vistos. Já te vejo sustentar o pescoço, firmemente, como uma criança mais velha e por vezes nos encarar a todos, com a curiosidade de um recém-chegado. Estamos todos encantados com você, pequena Helena e eu me sinto a tal ponto apaixonada que chego a sentir uma dor física, cada vez que estou distante. Talvez sejam os 40 anos, que completo em menos de um mês...E, enquanto a vida me empurra em direção à maturidade, me vejo observar, encantada, teu crescimento, a cada dia. Teu pai e tua mãe parecem ter anos de experiência, tal a destreza com que te cuidam…Enquanto isso eu sigo, tentando ajudar aqui e ali, me perdendo nos teus pequenos gestos, acompanhando a direção do teu olhar, que se faz mais firme a cada dia e já te prepara para descobrir o mundo. Por aqui seguimos tentando sobreviver ao caos político. Não entrarei em detalhes, porque sei que ainda não é tempo de você saber dessas coisas... ainda há muito que ver e saber antes de tomar pé das vicissitudes do país. Por hora, fica com este relato de tua avó: os dias andam cinzentos, as pessoas, cabisbaixas. Estamos, nós progressistas, a um passo de enfrentarmos uma derrota eleitoral. Não pensa nisso. Pois há de passar. Por hora saiba que muitos se opõem; agora mesmo há estudantes nas ruas e pessoas com faixas e cartazes, brigando pelo direito à livre manifestação. Helena, na ânsia de proteger a liberdade, muitos foram às ruas, plantaram mesas e cadeiras, oferecem bolo e café e seguem a conversar, tentar mudar opiniões, sem briga. Sem ódio. Espero que tu cresças e ainda possa ver, nas esquinas da cidade, as praças ocupadas por gente que ainda tem esperança. Espero que você possa ter esperança e que conserve a coragem de acreditar na liberdade. Por hora essa é a única herança que te posso deixar...

sexta-feira, 5 de outubro de 2018

Eu escolho a vida

Eu vejo crescer em mim o medo de um iminente regime fascista com a mesma força que me invade a alma o encantamento de ver a minha vida e a minha história se enredarem em um minúsculo e miraculoso ser que tem meus olhos e os olhos da minha família.sao duas pulsões distintas.vida e morte..medo do provavel mergulho em um tempo de intolerância e luta e a esperança em ventos de afeto, traduzidos por minha própria carne reproduzida diante dos meus olhos..por hora, cedo ao impulso de mergulhar nesse amor profundo incondicional,que me faz enxergar cores e nuances e sentir o peito cheio de ar novamente..me perdoem os que preferem o ódio..hoje eu escolho a vida.

segunda-feira, 24 de setembro de 2018

Sobre todos os azuis do mundo

Sobre ser dois, gerar um ser que vai gerar outro ser e por esse viés,ser em conjunto e ser mais...sobre todos os instantes de espera, enquanto outra pessoa se forma dentro de nós...e ver crescer dia a dia o amor que se esperou,em carne, sangue e afeto...Ainda são recentes as memórias dos braços estendidos em busca de colo e já há um novo colo em novas e infinitas demandas...E a nossa história,lida nos livros,na beira da cama,ainda não terminou de ser contada.Ainda estamos aqui ,página a página, diariamente,com as mãos entrelaçadas pelo cotidiano,pelas horas de lágrimas e risos.Hoje ambas olhamos o mesmo ventre,de ângulos distintos,mas com amor igualmente profundo .Incondicional.. Lembra quando a gente ia de mãos dadas,admirar as pinturas na parede?Lembra quando te vi misturar tuas primeiras tintas,em teus inúmeros tons de azul?Hoje teu azul se expandiu , coloriu seu mundo e de quebra também atingiu o meu...Somos duas,somos três,somos muitas esperando o dia do primeiro choro,do primeiro olhar.E sei que teu amor pelo mundo que já é gigante,só ficará maior.. Como é possível que eu tenha gerado alguém como você,feita de sensibilidade e cores,mas também de curiosidade e precisão?De onde estou,os olhos ainda molhados de teu último pranto, teço em silêncio mais uma trama de nossas horas,com mais uma mulher que se apresenta ao mundo,para existir igualmente em azul e sonhos... Abençoada seja Helena... Abençoados sejamos nós que agradecemos a vinda dela..E sigamos,por entre as horas de afeto, infinitamente...

sábado, 15 de setembro de 2018

Sobre o peso das coisas

Em toda dor, em toda angústia, lembra de quem tu és.Lembra da estrada na tua frente, lembra que o único peso que deve carregar é aquele dos seus próprios ombros...Lembra do vento no rosto, esquece as lágrimas, a raiva e todo mal que te fizeram..Guarda a tristeza em lugar seguro, porque ainda há de fazer rimas com ela.Lembra que não és teus títulos, teus trabalhos, tuas obrigações, tua muda espera pelo afeto alheio..És muito maior do que isso.Aí dentro reside algo que ainda não foi tocado,material denso e imponderável de poesia, que as horas incertas do cotidiano e toda tua culpa e todo teu medo não permitiram acessar. Chega.Ja é hora.Lança-te ao mar, sem destino certo e busca finalmente o caminho que sempre soube ser o teu.Ousa.Leva apenas o peso das tuas mãos e a força dos teus sonhos....voa...

segunda-feira, 27 de agosto de 2018

Histórias à beira do rio- 2

Diz-se do medo que quem tem,que não mergulhe no Rio. Tive medo... Tremor nas pernas.Mão suadas. Peito em desalinho...Pensei em fugir.Mas o pôr de sol convidava. O leito do Rio era um espelho e o barco jaáesperava. Entrei. E as margens abriram-se para os olhos, douradas, silenciosas, enquanto a proa cortava as águas. Senti as ondas, o vento no rosto.O movimento suave .De uma margem à outra. Cheguei. Mergulhei meus pés na lama barrenta .Caminhei em terra, aeia e grama. Conheci a vegetação suave, dessas que resistem ao calor incessante dos trópicos...Continuei....A cada passo, o medo, a necessidade de voltar...Mas os pés não obedeceram.E seguiram até chegar ali, no meio do mato, em meio à terra. A curva do rio se erguia. De um lado o pôr do sol.Do outro, a lua crescente, refletida nas águas escuras.Sem pensar, mergulhei no rio. Senti o medo dissolver conforme a água me tomava...e assim,no momento que minhas mãos tocaram a água, com um movimento suave, senti sair dos dedos o anel, escorregando como se mão humana a puxasse, para sumir no infinito escuro e frio, como um tributo...em silêncio, concordei.


Histórias da beira do rio- 1



Era um vilarejo,na curva do rio... onde um dia o silêncio chegou... Nas ruas vazias, por sobre o muro das casas, enquanto se coava o café.. Ninguem sabe ao certo quando, enquanto muitos dormiam a sesta, na hora que o sol comecava a se pôr.. De repente, não havia mais música e os ponteiros do relógio paralisaram no mesmo lugar.. A moça na janela esperava em vão a carta que não chegou. A velha senhora, sentada na frente da casa, pitava seu cachimbo... Ninguém sabe quando os sinos da igreja pararam de tocar. As mães foram para a rua procurar as crianças. A roupa secou no varal, sem que ninguém fosse recolher. O vendedor de doces chegou até a praça e encontrou um jornal velho, de muitos anos, amassado ao lado do banco. Enquanto o medo crescia, as avós trancavam seus netos nos quartos e as professoras fechavam as portas da escola..O padre, benzendo-se, ajoelhou-se no chão e começou uma novena.E foi ali que o prefeito o encontrou, para comunicar que o relógio da prefeitura havia parado. Os funcionários foram dispensados de suas funções e mandados de volta para suas casas...Ajoelharam os dois, em muda oração,enquanto o silêncio se fazia cada vez maior...Já eram muitas as portas e janelas fechadas e ali adiante a vendedora de acarajé recolheu seu tabuleiro, deitando ao chão o conteúdo de suas panelas... No bar da esquina só restou o bêbado, dormindo sobre a mesa, enquanto o garcom fugia de bicicleta, deixando a pia aberta a escorrer a água por sobre o balcão...Todos buscavam a razão do silêncio, agora retumbante e infalível, atravessando as horas do dia, impondo-se a cada um. Dentro do peito a incerteza da espera, o medo do inesperado fizeram muita gente chorar....O velho banqueiro,aposentado, trancou as economias num cofre e enterrou num quintal...A viúva da esquina, prevendo um desastre,deitou sobre suas joias, embaixo do travesseiro.Portas e janelas fechadas, cada um cuidava de seu medo..Nem notaram quando, impondo-se ao silêncio, um homem magro, de chapéu na cabeça, atravessou devagar as ruas, em sua bicicleta..Parou na praça, caminhou até o centro, ali estendeu seu lencol em um varal..Tirou da garupa uma banqueta e uma maleta. Depositou no chão...De lá tirou um espelho e algumas tintas...Correu ao rio, mirou-se..Pintou o rosto....Voltou à praça e então, sem esperar convite, tirou do bolso uma pequena gaita e comecou a tocar... De início ninguem se apercebeu.Foi a velha senhora que, espantada, abriu a boca e deixou seu cachimbo cair....Ouvindo aquilo, a moça, que estava em casa correu para janela e viu o homem, que continuava a tocar.Sem demora, ela abriu a porta, correu ao jardim, colheu uma flor vermelha e foi para o meio da praça escutar.. Animado, o homem que tocava comecou a dançar ao redor da moça,que acompanhava a melodia com palmas,ainda timidas. Ali perto as crianças ouviram os dois e saíram de casa, pulando a janela, para espiar. Ao verem o homem e a moça que dancavam, fizeram uma roda ao redor do dois....Correu o garcom, veio a viúva, chegou-se o bêbado,já dançando no meio da rua.Fez-se barulho na frente da igreja e a porta se abriu....Cheegaram o padre e o prefeito. se viram em meio ao povo, correndo das casas, girando na praça, em palmas e risos..No meio de tudo a moça e sua rosa, giravam também, enquanto a gaita tocava...O vento chegou, a noite veio e o povo não parara de dançar... Em dada hora a vendedora de acarajé caminhou até a esquina e ali montou sua banca,apreciando a cantoria.ninguém notou quando foi,mas em algum momento os sinos recomecaram a tocar....E vieram os pescadores, da beira do rio, para admirar as moças que, sem parar de dancçr, puxavam pro centro da roda cada pessoa que vinha espiar..chegou a viúva, ergueu-se de sua cadeira, pediu licença aos dancarinos, tomou a rosa dos cabelos da moça, pendurou atras da orelha e, amarrando as saia,pôs-se tambem a dancar.A tarde caiu, veio o vento da noite, ninguem notou que era hora de dormir.....Passou-se um dia, mais dois e tres, uma semana inteira e ainda não havia quem voltasse para casa....O prefeito,precavido, decretou feriado de três dias, trancou a prefeitura e correu também a dancar....E a rosa, que passara de mão em mão, acabara ali, no leito do rio, levada pela correnteza até a outra margem onde o velho senhor,morador da tapera, veio a recolher depois...Ainda úmida,quase despetalada, foi replantada então, na frente da casa..Dizem que ainda hoje, quem chega, pode ouvir, se chegar bem perto, o som da gaita, na curva do Rio, em meio ao vento que bate ao pôr do sol...

quarta-feira, 1 de agosto de 2018

Siena






Mesmo nos dias mais cinzentos,
Te recorda das cores dos girassóis se erguendo em direção a luz..
O chão claro de pedra ancestral nas ruas sinuosas de paredes estreitas..
Por sobre as pequenas lojas,lembra do cheiro doce dos grandes merengues em exposição nas vitrines..
E as pessoas sentadas nas calçadas, dividindo espaço com as bicicletas e vespas coloridas.
Lembra de teu passo lento, caminhando sem rumo até a Grande Plaza de Marte, do chão de mosaisos desgastados pelo tempo e das pizzarias amareladas com grandes toalhas brancas ao redor.
Lembra do teu corpo estendido no chão por entre os pés alheios,com a única obrigação de contemplar a lua e existir,em surpresa e êxtase.
Nos teus dias mais escuros e tristes lembra do deslumbramento do sol de Siena e do amor no teu peito,tão impossível quanto certo... Tão distante quanto profundo, fazendo teus passos mais lentos e teu olhar mais luminoso. Lembra da música que te vinha à memória e do som de palavras que não foram ditas mas que enchiam teu peito de esperança..
Recorda de cada palavra dita,de cada imagem vista e que um dia,em um fragmento de tempo prosseguiste apenas e somente para existir ali,por entre os não ditos, sob o sol da Toscana..

segunda-feira, 9 de julho de 2018

Memória

Eu fui criada em uma família em que os almoços, desde a geração da minha avó, duravam horas. Depois da comida, vinha o prato principal, que eram as histórias da gente e de antes da gente, muitas repetidas infinitamente, repassadas por muitas vozes, cheias de detalhes novos, reinventadas a cada encontro. Eu me lembro de sentar perto dos adultos, pra tentar captar aquelas narrativas, ouvir os risos, a espera, o narrador da vez e os risos que vinham no final.Para mim, era como um número de circo, fantástico, desses que a gente não ousa interromper..E eu observava sempre as mesmas histórias, repassadas como um cálice de vinho que se sorve aos poucos..A gente grande bebia um pouco de memória e passava ao outro,que bebia também e assim cada um ia tomando um pouco mais, até que, no final,todos tinham experimentado um pedacinho daquela emoção.Boa ou ruim, nada era deixado de lado..Ria-se e chorava-se com a mesma vontade.Eu me lembro de ficar ali, do lado deles, ouvindo histórias de gente que tinha ido e observar os rostos, as vezes no frouxo de riso, outras contendo o choro,mas sem parar nunca de contar...O tempo passou e aos poucos eu fui me sentando cada vez mais perto, tomando meu lugar na roda, sem deixar nunca de me sentir ali,observando também..E aí chegou o tempo em que a memória era minha, em que me cabia contar, para diminuir a saudade e trazer pra perto tanta gente que eu amo e que já não está mais por aqui. Então foi aí que eu vi que ,bocadinho por bocadinho,cada história diminuía um pouco a dor, fazia com que se preenchesse a saudade com um tanto de presenca..E eu aprendi que a gente não deixa nunca de visitar as pessoas que ama,nem elas deixam de aparecer. A cada vez que nos juntamos para desfiar a trama das nossas horas compartilhadas, para contar um tanto de risos e mais um bocado de lágrimas, a gente vê abrir sem sentir a porta da memória e escapar pra dentro um monte de gente que ainda devia estar por aqui e assim, como mágica, no meio da roda, entre a emoção e o espanto, aparece sem avisar para dar um alento no peito e um pouco de coragem pra gente seguir..E a gente,seque - que jeito? -para vida de todo dia. Mas ali no rosto fica , silencioso, por um tempo indefinido, um sorriso discreto, meio dolorido, com gosto de saudade

terça-feira, 3 de julho de 2018

Cidade dos Anjos

Que todo afeto seja canto
que todo gesto seja reza
Que todo amor seja corpo
Que todo sim seja mergulho..
Que todo instante seja o último..
Que todo toque seja dois...
Porque quando os olhos fecham e onde ir não importa.
quando o peito se enche de ar como se fosse a primeira vez ..
nem uma palavra será capaz de explicar..
O instante em que o silêncio se faz ..e os braços se erguem para ir além
para subir mais alto.para ser, mais e intensamente.
Eu.Você.Nós.
trilha
https://www.youtube.com/watch?v=QaeALaGlLKs

segunda-feira, 25 de junho de 2018

Pelo outono que já passou

Pelo outono que já passou
E ainda restam um tanto de vermelhos e amarelos para registrar
Nem bem senti o vento frio e o calor perene dessa cidade
já convida à rua
E o café feito ainda não esfriou.
Ainda naã,eu digo,só mais um pouco. Mais alguns dias de reclusão e espera.
Que o pensar, assim como o sentir, ainda carecem de ordem.E ainda hã muito de Tons e Vinicius para ouvir
Só mais um pouco,mais alguns dias e receberemos juntos o inacreditável aumentar do termômetro..contrariando todas as regras.
Em vão jazem empilhados na mesa todas as Clarices e Josés e Manoeis...Do outro lado,magnânima, acinzentada, a indefectítvel pilha cientiíica das obrigações grita....
-já é hora...bastar de sonhar..
Mas ali ao fundo a paleta de cores aguarda, no papel em branco, o tempo exato de existir e dizer com urgência,
tudo aquilo que os métodos não conseguem abarcar..