quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

O café

Era um prédio na Rua do Ouvidor, onde as terças-feiras havia o baile dos idosos e os operários da fábrica todos os dias tomavam café. Cinco minutos e já partiam para o cartão de ponto, a manivela implacável computando horas e minutos na vida de cada um. Naquele dia partiram todos, menos um. Ao mexer o café, algo o alcançou, do outro lado da rua, para onde jamais havia olhado. Um movimento rápido, em uma construção aparentemente abandonada. Por entre as grades de ferro, retorcidas pelo tempo e a falta de uso, um vulto, uma luz diferente – seria um gato, um morador de rua? – Capturou a atenção do operário. Oito horas, de nove às seis, com uma folga semanal, exatamente às terças-feiras, quando comparecia ao baile exatamente na mesma rua onde costumava fazer o desjejum. Todos os movimentos em um mesmo circuito de tempo e espaço. Aquele dia, contudo, o movimento breve entre as grades o fez caminhar em direção inesperada. O café ficou na mesa, junto às moedas. O operário, Pedro era o nome, atravessou a rua. O prédio era centenário. Na fachada, quatro colunas de mármore sustentavam a custo a marquise, com uma longa rachadura em uma das bordas. Ao canto, uma janela de vidro, quebrada e uma faixa amarela, impedindo a passagem. Ali na porta do prédio, no entanto, não havia nada que o impedisse de entrar. As pessoas, quase todas, seguiam seu caminho. Pedro decidia-se se entrava ou não, quando um ruído de metal, tal e qual engrenagens girando, o assustou. Mas seria possível que houvesse alguma coisa funcionando ali? Olhou em volta. Ninguém parecia notar, nem Pedro, nem o Prédio. Decidiu-se. Ultrapassou a faixa de contenção, empurrou a grade, que cedeu facilmente em suas mãos, abrindo uma passagem. Pedro passou a cabeça, os ombros e entrou no grande saguão. Sobre o piso, um resto de tapete, de veludo vermelho. Aqui e ali moveis velhos, cadeiras empilhadas e vários metros de tecido em um rolo comprido, feito lona de caminhão, além de uma infinidade de caixas espalhadas, ocupando cada centímetro. Caminhou até uma delas, abriu a tampa e encontrou fotos e papeis, notas de compra e ingressos rasgados. Esquecido do horário, Pedro circulou entre as caixas, examinando seu conteúdo. Em cada caixa, fragmentos de histórias, imagens de um Rio de Janeiro de bondes e trilhos, de uma Cinelândia recém-inaugurada, chapéus e ternos cruzando as novíssimas avenidas. Ali dentro a atmosfera de mofo e poeira dominava o espaço como uma coisa viva, preservando os objetos em uma aura fantasmagórica. Pedro abriu uma caixa grande, esquecida sobre o balcão carcomido de cupins e de lá tirou vários canudos compridos, cada um contendo ilustrações de filmes antigos. Reconheceu o cartaz de um romance cuja história ouvira quando criança. Na trama a heroína, noiva do jovem cientista, desaparecera às vésperas do casamento, deixando a família consumida pela tristeza. O noivo, inconsolável, passara o restante dos seus dias no hotel onde aconteceria o casamento, esperando pela noiva que nunca voltou. A única coisa encontrada, muitos anos depois, foram os restos mortais do cientista, inacreditavelmente conservados, ainda sentado sobre uma cadeira, em frente a um velho projetor de imagens. Pedro ainda podia recordar a cena final, a sala em penumbra absoluta, a não ser pela luz do projetor, reproduzindo uma paisagem sombria de nuvens cinzentas e as aguas negras do mar. A memória ainda provocava calafrios. Perdido nesses pensamentos ele percebeu que, conforme caminhava para o interior do prédio, o barulho de engrenagens aumentava, parecendo vir do segundo andar. Seguiu até as escadas, experimentou o primeiro degrau. A madeira, envelhecida e úmida, fez um ruído grave. Apoiou-se no corrimão de mármore, esverdeado, surpreendentemente liso e brilhante, como se tivesse acabado de ser encerado. No patamar da escada, um vitral empoeirado de uma silhueta de mulher deixava entrar um facho de luz. Pedro venceu o segundo lance de escadas e chegou até o andar de cima. Alina penumbra, apenas as silhuetas dos objetos podiam ser vistas. Do corredor comprido vinha o mesmo som de engrenagens, parecendo ir além das pesadas cortinas no final do salão. O que exatamente Pedro ainda fazia naquele prédio ele não poderia responder. Talvez a curiosidade sobre o lugar. Mesmo tão abandonado, parecia conter uma espécie de engrenagem interna, como um velho relógio de parede. Imóvel, empoeirado, aguardando algo que o fizesse mover-se. Em que momento avançar na escuridão pareceu ser a única saída possível, em meio à infinidade de horas vazias que compunham o cotidiano? Seria tão mais fácil terminar o café, adentrar a fábrica, marcar o ponto de todos os dias, intermináveis, mas seguros, um igual ao outro? Houve, contudo, no intervalo entre os ponteiros do relógio de ponto um acontecimento qualquer, banal, um passo em falso e já um universo completamente novo se descortinava diante dos olhos. E já se sentia diferente do que fora no minuto anterior. O homem centrado em cada tarefa diária, no exercício cotidiano da sobrevivência, guardando apenas uma breve pausa para o respiro no café de todos os dias, subitamente perdera o prumo. Hesitara. E na hesitação residia uma vida inteira ainda por viver. Finalmente chegou até o final do corredor. Entrou, sentindo a atmosfera gelada do lugar. Parecia uma espécie de salão, com várias fileiras de cadeiras dispostas, tendo ao fundo um palco. Ao contrário do restante do prédio, o palco era iluminado por uma imagem, vinda do alto. Pedro reconheceu, o semblante iluminando-se diante da cena: um filme antigo, em preto e branco. Em meio à atmosfera isolada, onde o vento ondulava a vegetação de pequenas flores amarelas ao redor, um oceano de águas azuis, quase negras, intransponíveis. No cume da colina, um farol e ali, uma mulher. A câmera registrava suas mãos fechadas sobre o peito, os cabelos desalinhados, os olhos por entre lágrimas, de um choro profuso, enquanto Pedro, hipnotizado, observava sua agonia. Súbito a câmera afastou-se, como quem não quer interferir na cena. Isolou-se na confortável posição de plano geral. Como se adivinhasse, Pedro abriu a boca, inutilmente tentando gritar, mas a voz não saiu. O corpo leve da mulher voou por sobre as pedras, cortou as nuvens, sumiu nas águas escuras do mar. E o filme terminou. Enquanto os créditos se desenrolavam, Pedro, assustado, percebeu que não estava sozinho na sala. Havia um vulto, silencioso, sentado na primeira fila de cadeiras. Como se uma corrente elétrica atingisse seu corpo, Pedro sentiu as pernas paralisarem, os pelos da nuca eriçados. Pensou em sair correndo, pedir desculpas, voltar a seu café, ainda sobre a mesa. Mas assim como sabia que o passo à frente era a única saída possível, entendeu que, de alguma forma, precisava prosseguir. Avançou com delicadeza, para não assustar. A cada passo o pânico bloqueava sua garganta, atingia a boca do estomago. No final do corredor de cadeiras, entrou na fileira de trás de onde estava o vulto. O filme começava novamente na tela. Pedro então olhou para o ocupante da fileira da frente. Sentada à sua frente, uma mulher, às mãos postas sobre o peito, os cabelos em desalinho, sem parecer registrar a presença de mais alguém. Olhava diretamente para a tela, que projetava sua luz em seu rosto. Num impulso, Pedro ergueu-se, atravessou a fileira, sentou-se ao lado dela. A mulher não pareceu notá-lo. Ao contrário. Sem tirar os olhos da tela, deixava correr pelo rosto lágrimas grossas. Num segundo reconheceu-a: É você, a mulher no filme! A voz, rasgando o profundo silêncio do lugar, atravessou a penumbra, atravessou a mulher em cheio. O rosto adquiriu uma expressão carregada. Fechando os olhos, a mulher assentiu. Então, erguendo-se, caminhou até o final da sala e saiu. Pedro seguiu-a, mas, ao chegar até o corredor, ela já desaparecera. Procurou em vão por cada canto do prédio, mas a única coisa que encontrou foi um velho álbum de fotos. Demorou-se em uma em que a mulher, ainda jovem, posava diante do hall de entrada, usando um belo vestido. Passou pela grade, voltou à rua. Ninguém parecia ter notado sua aventura. Até mesmo o café seguia na mesa. A xícara branca, sobre a mesa, atingiu-o como um raio para o retorno ao cotidiano e o dia perdido de trabalho. Pedro voltou ao ponto de ônibus e esperou. O percurso até em casa nunca foi tão longo. A casa nunca fora tão silenciosa. Deitado sobre o lençol ele não conseguia dormir. Como pudera suspender o ordenamento natural dos acontecimentos? Perder o dia de trabalho, a certeza das pequenas coisas, o café amargo sobre a mesa? Em um passo, colocara em risco uma gama interminável de sons e imagens do cotidiano e penetrara sua própria escuridão. Ali, cada passo levara a um mergulho em um silencio perturbador, onde nenhum caminho era seguro e a enormidade de cada instante oprimia o peito dolorosamente. Há quanto tempo não tomava uma decisão sem se preocupar com o que viria a seguir. O café, o ônibus, os cartões de ponto pareciam tão banais visto desse novo ângulo, enquanto adentrava um universo novo de inesperado e perguntas não respondidas. Pedro levantou, sem conseguir pegar no sono e foi até a mesa da cozinha, onde o velho álbum de fotos permanecia. Virou novamente cada página, procurando respostas. Havia fotos de um pequeno bebe, agitando os punhos para o obturador, diante de sua família sorridente. Mais umas páginas e o bebe aparentemente crescia, sentava-se sobre uma banqueta e posava novamente. Nas páginas seguintes, uma menina morena, de pele pálida, ia pouco a pouco, em cada clique, diminuindo seu sorriso, se tornando mais séria. Na última página havia apenas uma leve ruga dos olhos que, contudo, pareciam brilhar. Virando pagina a pagina era possível acessar cada momento da vida e adivinhar os instantes de silencio, entre a imagem e o cotidiano, em cada clique do obturador. Quantas palavras teriam sido silenciadas, quantos instantes ficaram gravados na retina, quantas vezes os punhos se fecharam de ódio ou de prazer? Em poucas páginas, toda uma vida passava diante dos olhos, como um filme exibido diante de uma sala vazia, sem interesse para mais ninguém. Em que momento seria preciso pular, fugir à prisão de instantes intermináveis, adentrar a sala escura de suas memorias, atingir os desejos mais obscuros e enfrentar a dor do não vivido? Quem estaria ali na plateia para ver? A madrugada avançou. Os primeiros raios de sol encontraram o despertador, que tocava na cabeceira. Pedro levantou-se de um salto, atrasado, mal conseguindo trovar e roupa e alcançar o ônibus, que já ia na esquina. Desceu na mesma rua, pediu o mesmo café, aguardou. Na cabeça o cartão de ponto, computando todos os minutos da sua vida, um a um, esvaindo diante de um interminável silencio. O café ficou sobre a mesa. O garçom tentou, inutilmente chama-lo. Já corria em disparada para o outro lado da rua. Pedro não ouviu. Já adentrava o mesmo buraco da grade e seguia pelo mesmo corredor, subindo as escadas em desabalada carreira. Atingiu o segundo andar. Transpassou a cortina. A mesma velha sala de projeção. Ali não havia ninguém. Sentou-se na primeira fila e olhou para a tela. O mesmo mar Negra as mesmas nuvens espessas. O mesmo vento na vegetação. Contudo, há um homem na beira do precipício, com as mesmas mãos ao peito, chorando silenciosamente. Enquanto a câmera se aproxima, Pedro, sentado na sala escura, contém a custo um grito: É sua a imagem do homem, diante do precipício. A câmera começa a se afastar. Pedro sabe que esse é o momento, tantas vezes visto, inevitável. Ele não pode impedir. Vê o close no mar escuro, os próprios passos em aproximação vertiginosa em direção ao abismo. Sente o final se aproximando, o coração em descompasso. Conseguirá sobreviver? Quais são a chance de viver quando quando se abre mão da sobrevivência banal, mas segura, garantida pela regulação sutil de cada instante de vida? Ou seria de morte? A única certeza de Pedro é que não há resposta possível. Ele vê em desespero a câmera se afastar, se prepara para chegar ao final. É quando há um súbito corte. Um par de mãos que tocam a vegetação ondulante e pés que se dirigem ao precipício. A câmera baixa, para acompanhar os passos. Chega até o ponto onde Pedro aguarda, olhando fixamente o mar. Há alguém que entra no canto esquerdo do plano, sem escondido pela grama alta do lugar. Uma mulher, os pés alcançando o lugar onde Pedro está. Homem e mulher sem se olhar. Apenas lado a lado contemplando a imensidão do mar escuro, intransponível. Ambos choram, sem, contudo, se olharem. Em um segundo, homem e mulher mergulham juntos, diante da tela, cortam as nuvens cinzentas, mergulham no mar infinito. Atônito, Pedro sente a presença, adivinha antes mesmo de voltar o rosto. Na velha sala de projeção, sentada ao seu lado, a mulher, sentada silenciosamente ao seu lado, olhos pregados na tela, um leve sorriso na curva do rosto.

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