segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Sobre o natal

Sobre o natal.. A lembrança mais antiga que tenho do Natal era da família reunida em torno da grande mesa da minha avó materna e de passar a noite tentando imaginar quando é que o Papai Noel iria afinal realizar a magia de colocar meu presente na árvore depois da meia noite. Isso até um dos meus primos me contar, quase em segredo, a grande verdade de que eram meus pais que compravam meus brinquedos. E tudo mudou de significado, embora eu continuasse achando misterioso porque é que as pessoas mais velhas pareciam tão emocionadas quando se abraçavam e brindavam à meia noite e sempre havia alguém que deixava as lágrimas correrem à solta, sendo logo consolado pelos demais. Naquele tempo eu não podia imaginar a dor que uma perda deixava na gente e o enorme buraco que ficava dentro do peito em dias como o Natal. De repente, era como se, em uma fotografia familiar, ali bem diante de todos, as pessoas fossem pouco a pouco desaparecendo, como um truque de cinema. O tempo passou e o Natal continuou me provocando sentimentos controversos, como afeto e melancolia, enquanto a ceia ia pouco a pouco mudando de lugar, assim como as pessoas que me rodeavam na véspera de Natal. Até que um dia eu tinha um bebê nos braços e era protagonista da minha própria história, responsável por criar outras memórias naquela pequena menina de olhos bem escuros. E chorar meus mortos também. Enquanto me lembro dos nossos primeiros anos juntas, algumas memórias ficam mais esparsas e a mesma imagem da ceia vai se modificando aos poucos, alguns cabelos vão devagar embranquecendo e as manchas em algumas mãos aparecem pouco a pouco. E nunca deixa de desaparecer um rosto e de ter mais um instante de silêncio, quando fazemos o brinde natalino. Também vieram rostos novos e recentemente, uma nova menina de iguais olhos escuros ocupa o lugar que um dia era meu e de todas as mulheres que vieram antes de mim. Penso que a dor é proporcional ao número de fotos que acumulam na estante e na duração do silêncio no final do brinde, como se aos poucos acrescentássemos mais um ponto na longa trama de afetos e perdas que enreda a todos nós. E um dia chegou minha vez de fazer silêncio. Enquanto observo os rostos, ouço muitas vozes, de outros brindes, de crianças correndo, barulho de pratos e garfos, gente gritando, mesas cheias, cheiros diversos. Também ouço o intervalo das lágrimas e das histórias, a memória doída que fica no rosto, refletida nas mesmas bolas de natal, cada ano mais gastas. Mas é justamente aí, no intervalo das vozes, em que se encaixa o hoje, em múltiplas parcelas de dor e alegria, expectativa e cansaço. E sei que não vou deixar me emocionar ao ver o cortejo de famílias, braços cheios de comida cujo cheiro se mistura aos perfumes, os rostos pintados, a roupa nova, ou de olhar nas ruas, na solidão e desesperança alheia os lugares onde o espírito de natal não chegou, nem vai chegar. Os corpos na calçada, o barulho das armas, o som da cidade, tudo vai permanecer. E eu vou continuar aqui, por quantos natais ainda não sei, tentando enxergar nas mesmas canções algum fragmento inusitado de poesia. Enquanto reflito, um barulho me chama atenção, bem próximo à meia noite. Já são pés pequenos, decididos, mas ainda vacilantes, que desafiam o meu pessimismo em memórias, enchendo a casa de barulho, enfrentando o longo percurso da sala e insistindo em dar mais um passo, atravessando minha vida com força e encantamento em busca do novo. E eu que tantas horas parei a contemplar o vivido, me surpreendo diante do inevitável e imperioso curso do tempo de que são feitas as coisas humanas, me dizendo assim, como um desafio, que a única escolha possível é seguir... Feliz Natal

terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Que liberdade é essa?

Que liberdade é essa, densa,calma, dura,que me sufoca a garganta e me rasga o peito?Que liberdade é essa urgente, impositiva,cruel,que não respeita as marcas que ainda restam no meu corpo e o tanto de sangue que se espalha no chão?Que liberdade é essa, dolorosa, perversa, sutil, que percorre a minha pele, em um convite, delineando curvas, propondo caminhos, arrepiando a nuca?Que liberdade é essa,que não tem um nome, um rosto, uma razão além de mim mesma, dos pés descalços que pisam o chão frio, das mãos vazias, que tentam tocar o novo, das lágrimas que insistem em cair, por todas as dolorosas memórias cotidianas?Como eu queria não ter que escolher ,como eu queria a paz que cega, o conforto doloroso das horas diárias, a certeza de não poder?Acontece que eu posso, e é por poder que o peito pesa, é por poder que as mãos tremem..Súbito, já não importa onde, mas apenas ir..Além .Infinito.Adiante.E estar só. Assustadoramente só.Desmesuradamente incômodo. Porque,diante de tudo e de todas as pessoas,os joelhos ainda estão no chão,antes os golpes,que foram muitos e rápidos e indefensáveis. Mas foi ali,rente ao chão,a cabeça vergada, que se fez ouvir o silêncio. Amplo. Infinito.Quente. Como um sopro de vida por sobre todas as coisas.E a voz que vem do fundo peito:esse é o teu destino.de sangrar, dia a dia, sem ter remédio ou consolo.Por que? Para ter a liberdade de renascer todos os dias e morrer ao final, com a certeza de que esse era o único caminho possível.

segunda-feira, 11 de novembro de 2019

apenas mais uma canção

A duas semanas de mais um ano. E os quarenta anos já instalados por aqui .E todas as certezas indo embora no mesmo passo que os trinta anos seguiram, na curva da estrada.. E as mãos ainda vazias e todo os sonhos do mundo a martelar a cabeça. E a necessidade de amar.e mudar as coisas.. e encher os pés de poeira do chão e deixar correrem as lágrimas por tudo que não foi.E aliviar o peito aprendendo uma nova canção,que faça chorar e sorrir...E ainda os mesmos pés com vontade de voar....E um corpo novo que se abre para o mundo e para todos os "sim" que ainda quero dizer.sem esperar eu sigo..E deixo um beijo para quando você voltar....Mas talvez eu não espere aquela ligação...porque o tempo urge e o apito do trem já soa..Me deixe ir. Que já é tarde e a estrada é escura....E eu tenho apenas esse momento. Me dê um beijo se puder, mas me deixe ir, mundo adentro,vida fora e se puder se lembre de mim quando te sobrar silêncio ou quando você vir aquele filme ou ouvir aquela canção...Apenas siga.que eu também por aí vou..

Não dances, não dances pelo caminho Ou não vou-me embora não
Trilha sonora Princesa do meu lugar (ao vivo) // Belchior

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

da bailarina



Era uma vez uma menina que queria ser bailarina...Os outros diziam que era um sonho gigante, daqueles que não cabem em caixinhas e sobram para os lados, quando os tentamos aprisionar.A menina insistiu,bateu o pé, chorou.teimou..As vozes riram...voltaram a dizer que não, que não cabia na vida de quem precisa caminhar uma estrada tão longa, o descanso de estar apenas na ponta dos pés..(ou assim eles achavam). A menina enfezou. - Então não podia querer? Queriam mandar na estrada que escolhera?Mas calou e foi cuidar da vida, exatamente como eles tinham dito.Obedeceu.Calou.Deixou o tempo passar. As sapatilhas, guardadas em uma caixa, ficaram no armário,ao alcance das mãos, enquanto a menina crescia e o tempo arrancava com rapidez folha a folha do calendário. E o tempo passou. A menina cresceu,tanto que dentro dela surgiu,num piscar de olhos,uma outra menina igualzinha a ela. Mas o sonho ainda estava ali. E era tão grande,tão real, tão maior do que ela mesma que sua menina nasceu como ela, com os pés esticados nas pernas,os braços sempre erguidos e as mãos sempre a girar. A menina,que agora era mãe, achou que bastava. Afinal não era fruto dela mesma essa bailarina que crescia diante dos seus olhos, linda de não poder mais, sempre a rodopiar aqui e acolá? E o tempo passou novamente e a vida engrenou e desengrenou tantas vezes, como sempre acontece quando a gente se distrai. Um dia, no arrumar das coisas, a caixa do sonho caiu,assim no meio do quarto, fazendo barulho no chão e acordando os cachorros da vizinhança. A menina levou um susto.Passara um longo tempo,tanto de não contar. Ela já nem se lembrava mais quanto..As sapatilhas, contudo,não tinham nem um grama de pó. Parecia que não tinha passado tempo algum. A menina se aproximou,examinou uma a uma. Respirou fundo e experimentou. Cabiam exatamente no tamanho dos seus pés...Surpresa, encantada, ela foi até o espelho e contemplou a própria imagem. Estava ali,diante dos seus olhos o sonho imaginado, exatamente como era.Uma bailarina que olhava pra ela e sorria, do tamanho que tinha que ser....com todo o tempo do mundo e a pressa de girar e esticar seus pés ao infinito... com o suor nas mãos e a teimosia de continuar apenas e sempre buscando a alegria de ser, na ponta dos pés, no giro das pernas continua e infinitamente bailarina.

quinta-feira, 24 de outubro de 2019

silêncios

Ontem me lembrei de quando eu era pequena e passava uma temporada em Santa, que naquela época tinha um ritmo bem diferente do de hoje... Não faz tanto tempo assim e as coisas todas eram reguladas pelo soar do bonde, de hora em hora.Aos domingos, de duas em duas horas...Naquele tempo a casa da minha vó ficava de frente para o Catumbi e o Túnel Santa Bárbara e eu gostava de ficar na janela da varanda admirando os carros que passavam... Criança tem que brincar, era o pensamento geral e eu costumeiramente era mandada procurar o que fazer, um amigo,uma brincadeira.Ficar só ,sem nada para fazer não era coisa que se fizesse... Mas eu gostava mesmo era do silêncio, das horas perdidas na contemplação do mundo, onde os ecos das palavras e das pessoas faziam mais sentido. Para mim, era como mergulhar na piscina, de olhos abertos e de repente sentir que o silêncio ia tomando o peito, como se uma substância viscosa e quente, me abraçasse por dentro, diminuindo a dor e me fazendo pertencer a algo. De fato,eu sempre pertenci ao silêncio e sempre busquei, em todos os meus dias, um instante em que pudesse abrir essa porta e me colocar ali, em contato comigo. Deus sabe quantas coisas me disseram sobre o silêncio,tantas que em algum momento ficar sozinha era minha maior tortura. Eu simplesmente não dava mais conta de todas as palavras que me surgiam e precisava desesperadamente de alguém que legitimasse tudo que eu sentia.Eu já não me sentia capaz de me ouvir e temia o instante de mergulhar. Quem sabe eu pudesse perder o pé, quem sabe o que poderia acontecer? No compasso do tempo muitas e muitas vezes perdi o pé, sem que a vida desse conta de me explicar o porquê das coisas....E nunca mais ouvi a voz da minha vó, me surpreendendo de novo na janela contemplando a vida e me dizendo:vai minha filha,vai brincar...

domingo, 6 de outubro de 2019

Cartas para Helena.

Cartas para Helena Um ano dos teus passos por aqui..E a cada dia é um bebê novo que me recebe, quando vou te dar bom dia...Até que hoje, quando fui te ver, no meio do caminho já era uma pequena menina que me olhou bem do alto,como você olha a todos, uma força da natureza, um espanto, uma alegria..Tua intensidade vem em todos os teus gestos..Seja pelas mãos tentando alcançar o mundo, as pernas que não cabem na ânsia de ir sempre em frente, os olhos rasgadinhos de cílios longos, absorvendo em segundos tudo a sua volta..Enquanto corremos para te acompanhar, cada movimento e mudança,você já segue no extremo oposto de tuas grandes descobertas,que nós não sabemos alcançar.E corremos dali para cá,tentando te decifrar. Teu tempo é para ontem, não espera nem pede licença, o novo é uma premissa para tua pressa..Helena,como és bela...Conviver com teu crescimento é conviver com um tempo que escorre, passa entre os dedos, na premissa do enquanto..Te ver sorrir enquanto embola as pernas no compasso das nossas, tentando descobrir seu próprio ritmo..Ou acenar, enquanto escalar o mundo,sem medo ou dor,você segue e atrás de você vamos todos,enquanto o mundo lá fora gira cada vez mais rápido.. Por aqui muita coisa anda de ponta a cabeça e todos os jornais andam a silenciar o óbvio:já avançamos diante do precipício. Nosso lugar,o pais em que você nasceu,anda em um ritmo frenético de destruições muitas e diárias.Ainda bem que você não pode ver... Parece incrível que no mesmo mês em que eu me tornei avó uma pesada nuvem caiu sobre nós e tanta coisa ainda virá..eu sei.e me entristece pensar que país deixamos para você, o que foi afinal que deixamos de fazer ou ver ou sentir. Logo tu vais a escola,Helena e vai conhecer teus professores,que andam tristes, sem ânimo,um silêncio só...Mas na escola há muito o que ver,muitas magias que ainda vão te alcançar..E com a mesma certeza que tenho que viverás entre as páginas de um livro pelo amor que tens por todos os livros que vês, eu sei que fará muitas descobertas interessantes...você vai amar a escola,Helena..Na escola tem muitos amigos, música,tintas, uma festa a cada dia...Algumas incompreensíveis...Outras maravilhosas..Com fantasias variadas..de bombeiro.de médico.de índio...E tenho esperança de que no teu tempo ainda tenhamos índios para contar e lugares onde se formam os médicos.e professores..Tu nem sabes o que planejam esses homens que mandam por aqui hoje em dia ..E não quero te assustar,não é tempo ainda...Da minha janela vejo os gritos.. A dor...as perseguições...Mas sossega tua cabeça ,hoje não é dia de falar dessas coisas..Sei que será das que lutam pela justiça e a liberdade mas hoje ainda não...Hoje tens o teu mundo ao alcance da mão. Tua família é de sonhadores,minha Helena,teu pai,tua mãe são do tipo de seres humanos que seguem palavras e buscam estrelas .Gente de letras e cores e arte E você também vai, no meio de tantos possíveis, descobrir um jeito de encontrar sua própria estrela...Helena, tua carta está longa, mas o dia pede. Queria te dizer que estamos ainda aprendendo e eu sou a que mais demora, porque me perco em reminiscências, quando te vejo aqui, no colo da minha filha, eu que ainda ando precisando tanto de colo.. Ainda estou tentando me encaixar em todos os títulos e papeis que me vem com tua vinda...Como a todos nós.Tuas demandas sempre vão além ..Tuas mãos sempre almejam mais longe...E a única coisa que podemos fazer é ter a força para te erguer cada vez mais alto, para alcançar tuas estrelas. Voa,Helena.. sempre.. Tua avó que te ama...

segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Costuras

Ontem eu,fora de costume, remendava umas roupas demasiadamente estragadas...A cada ponto,parecia que ouvia tua voz, no movimento da agulha, no cruzar da linha, em cada ponto dado.Você nunca entendeu porque eu usava linha dobrada para costurar. "- Linha dobrada é só para pregar botão,minha filha", ela dizia,abanando a cabeça, como em todas as poucas vezes em que me via costurando. Como quase sempre acontecia ela perdia a paciência de me observar embolar a linha, perder a agulha dezenas de vezes, me dizia: " Deixe, me dê aqui, deixa que eu faço" e pegava minha costura, tirava os terríveis pontos desencontrados, em linha colorida, que eu dava, me pedia a tesourinha - "não tem tesoura,vó, perdi a minha. Usa a sua". E ela abria a bolsa, pegava no saquinho os apetrechos,ia cosendo cada parte do tecido,contando causos. A saudade que me dão essas pequenas coisas, talvez seja maior do que a tristeza por saber que daqui a pouco faz um ano sem você. Queria te ter ao lado só mais um pouquinho, deitar no teu colo e chorar minhas dores mais uma vez, como sempre fiz. Queria te ouvir dizer "que coração,minha filha,é terra que ninguém pisa", quando eu vinha quebrada - e eu sempre vinha" chorar todos os incompreensíveis da vida. Queria te ver tomar meus erros,desmanchar tudo e dar teus pontos, emendando todas as partes separadas, o sim e o não, o silêncio e o caos, dor e alegria, unidos de novo, para não soltar mais. Queria poder apagar as memórias recentes da tua partida e do imenso silêncio que ficou. Olhar pro sofá e te ver ali, a linha e a costura. E só mais uma vez te ouvir dizer:"- me dê,minha filha, me deixa fazer", emendando a minha vida, do jeito que tem que ser..

domingo, 29 de setembro de 2019

Leve

Do corpo estendido na cama,misturado aos lençois... Os olhos fechados, dos restos de sonho pelos cantos do quarto,enquanto as primeiras luzes do dia tentam alcançar a cama.. As pernas emboladas, as mãos espalhadas aqui e ali..Agora era um silêncio denso, fragmento de bruma, onde antes foi grito, morte e vida.Momentos antes, ou seculos? duas bocas, mãos que rasgavam,percorriam, descobriam curvas. Já era o inevitável, o movimento confuso de duas descobertas, o desejo se impondo ao medo, a pele rompendo ao toque.O gosto do novo, pela força de dizer sim... Pela coragem de ser nós.. dedos,entrelaçando nos cabelos, cores que se mesclam em um só tom, texturas diversas.suave. denso.profundo. e um constante revolver-se, sem saber onde começava um ou outro...Boca. Pele.Olhos.Tudo ao mesmo tempo...Agora, restam no chão os fragmentos do caos e um último som reverberando pelas paredes frias... Agora resta um corpo, em duas partes, misturado à poeira leve que paira no ar, respirando as primeiras horas do sol, estendendo por alguns instantes mais o momento de abrir os olhos e viver..por hora, resta uma só respiração,as marcas do corpo e um resquício da noite, que ainda não se pôde romper...

sexta-feira, 27 de setembro de 2019


Sobre os três Santos e o dia 27 Já fazia parte do calendário, todos os anos ,na casa das minhas avós, os sacos enormes de balas, pirulitos, paçocas,doce de abóbora.Eu sempre detestei doce de abóbora,mas achava maravilhoso aquela farta distribuição de açúcar,mesmo que o meu preferido,o suspiro, sempre fosse o último a entrar na jogada ..Corria-se sempre o risco de estragar a caixa toda, diante de um movimento brusco...Havia as gelatinas coloridas,em pedaços pequenos,,as marias-moles brancas e rosadas,os pés de moleque caramelizados e os saquinhos de amendoim e bananada.Sem esquecer os inacreditaveis doces chamados por nós, de " cocô de rato"..Nas ruas era a festa do descontrole e da alegria, famílias inteiras correndo dos carros, simpáticas vovós debruçadas nos muros, crianças acumuladas nas esquinas...Em Santa Teresa,onde vivia a minha vó, havia uma grande festa com bolo e guaraná pelas esquinas. E senha... Quem chegava já era direcionado para a fila,de bolo, brinquedos, refrigerante e ,claro, os saquinhos de doce.. Sempre havia um retardatário que, chegando no lugar onde se fazia a distribuição, recebia somente pirulito, quando havia...Anos mais tarde soube pela minha filha que as festas de Santa Teresa nem sequer se comparavam com o desbunde de Bento Ribeiro....Onde devia haver um prosaico saquinho de seus 20cm,sacolas de mercado lotadas,mais a pipoca vermelhinha, que vinha por fora.e brinquedos.E ainda o luxo de chocolate, coisas que,para quem tem mais de 30 anos, sabe que era uma novidade à época..Um desparrame de gente.e açúcar. Hoje fico pensando nasn recomendações nutricionais para os dias de Cosme e Damião, algo como "comer duas bananadas e um suspiro",para não ultrapassar o limite de glicose diário.Ou talvez não haja mais..O fato é que as festas de crianças ,que movimentavam famílias inteiras antigamente,foram perdendo espaço para a insegurança das ruas,os condomínios fechados, a falta de quem levasse os pequenos para pegar doce.Foram também diminuindo as famílias que distribuíam doces.A gente devia ter imaginado,quando os saquinhos de papel começaram gradativamente a serem substituídos pelos de plástico,que algo estranho começava a acontecer...Em um dia ou outro uma família, geralmente por razões religiosas,proibia os filhos de receberem os saquinhos,que antes disputávamos quase(quase?)a tapa.Daí passamos ao medo,mais recente,quando alguém arriscava levar para o trabalho ou para a vizinhança. De disputados,os saquinhos passaram a ser camuflados, escondidos.Ficaram envergonhados.Nunca se sabe o que se podia receber em resposta..Hoje poucas famílias ainda se movimentam no dia 27.... notadamente nos bairros do subúrbio...Ainda temos os descomunais sacos de doce de Bento Ribeiro,mas o preconceito só aumenta, travestido de zelo ou crença...Nesses dias penso na minha avó,já bem idosa,parada na vila onde morava, distribuindo seus saquinhos, normalmente feitos pela minha tia e minha mãe...Impossível não pensar o quanto regredimos, enquanto sociedade,se inventamos desculpas,quase sempre religiosas,para justificar nossa intolerância com o outro....Do alto de nossas verdades não vemos a reunião das famílias na sala,os pacotes de doces na mesa,os risos,as balas roubadas pelos sobrinhos, os saquinhos mais recheados para os menores, as reservas para este ou aquele... De onde estou, não vejo mal algum nesse ritual, familiar e profundamente afetivo,que remonta às avos de nossas avos... Não se enganem: não há nada além de tardes divertidas em cada doce, passadas de geração para geração.... Tudo o mais,só nossa triste capacidade de tornar ruim algo desconhecido,do alto de nossas pequenas convicções e mediocridades.... Enquanto isso, tenho certeza, há senhores,ali perto, irmãos,ao que parece, não sei precisar se são dois ou três, que guardam o movimento dos doces chegando até as crianças,para mais uma vez renovarem a fé na humanidade através do ruidoso movimento dos eres...e para quem ainda duvida, fica a pergunta:vai um saquinho de doce aí?

segunda-feira, 23 de setembro de 2019

segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Sobre máscaras

Quase tão fácil quanto morrer. Finalmente a verdade dita, vívida e dolorosa, aparente no corpo que latejava. Porque não se tratava não apenas de dizer, mas de viver a verdade na própria carne. Por isso a escolha, o desnudamento que as palavras exatas, que somente as palavras exatas podiam conferir. Finalmente recusara-se a participar do teatro das pequenas verdades, tão convenientes quanto supérfluas, necessárias (necessárias?) à convivência rasa entre adultos. Nos interstícios do cotidiano, contudo, meias verdades e intenções escondem todos os nãos ditos, as lágrimas não choradas, as mãos retorcidas em agonia e a espera por um instante de silêncio em que o sentido se revelasse como por encanto, mas não, não era suficiente a espera do encontro, era preciso agir, erguer-se em meio ao vozerio abafado, plantar-se no meio de um salão lotado de possibilidades, fechar os olhos e deixar que as palavras saíssem do meio do peito, como um corte profundo que sangra a vista de todos. E então, no silêncio que se ergue, diante da insuspeitada nudez do sentir, a suave constatação das mãos surpreendentemente vazias, e a pele exposta ao escrutínio alheio, à espera de uma resposta que, sabe-se, não virá.. Em silêncio sairá da sala, tentando não esbarrar nas mesas, tropeçar nas pernas, percorrendo o corredor e tomando a porta de saída, quase em fuga. E o que se ganhou – é a pergunta que grita, por entre os lábios cerrados. No fundo a resposta estava ali, no centro do espelho. Ganhaste a ti mesma. Na coragem de retirar suas próprias máscaras, tantos anos depois, tantas batalhas perdidas, jogar teus medos pelo chão e ir a uma a uma pontuando tuas fragilidades. Independente da resposta, não há mais nada entre tu e ti mesma. Finalmente. Teu corpo e tua alma te pertencem, não mais para preencher vazios alheios ou ocupar lugares pré-estabelecidos. Finalmente, ocupas o lugar dentro de si mesma, que o medo e a raiva sempre te impediram de ocupar. A mais transparente combinação entre poesia e intensidade, a mulher que sempre esperou para ser, um existir que não te faz presa, mas ao contrário, te libertam da ilusão de não escolha. Finalmente és livre.

sábado, 17 de agosto de 2019

Escrita

Há no processo da escrita qualquer coisa que por vezes me embriaga.Outras vezes me sufoca.uma circunstância de silêncio,um instante de cansaço, um nó na garganta.Porque,de há muito que compreendi a sentença de vida e morte que me impus: jamais repousar,jamais adormecer, estar sempre a um passo da dor mais sufocante e do desespero mais absoluto.E esta solidão,como coisa viva, em uma intimidade de amantes e essa necessidade de silêncio,esse desejo que me divide ao meio,essa embriaguez.E sempre,sobre todas as coisas,as palavras que me atravessam, que sinto apertarem a garganta,que me acordam pela madrugada e me sussurram coisas e me impedem de dormir.E o corpo se revira,na inquietude da cama.E a alma arrefece,no calar das vozes, que me gritam,que seguem meus passos noite adentro,em busca de um instante de paz.Mas será isso, definitivamente: os sussurros que queimam a pele,o silêncio que corta o peito, a dor sempre latente.E as folhas de papel, riscadas à caneta, preenchendo com fragmentos de desejo o vazio das horas.

sábado, 10 de agosto de 2019

Goiaba vermelha

Minha vó dizia que a melhor goiaba era a a vermelha.Das que faziam o melhor doce .Ela mesma ia escolher na feira,no freguês que cortava pedaços da fruta verde se abrindo em polpa vermelha, suculenta,pra senhora de olhar exigente e sorriso fácil provar."-Doce pros meus netos"...ela dizia,1kg ou mais de goiaba na sacola de listras.Doce bom, vermelho, forte,mexendo no fogo da panela de alumínio antiga de tampa vermelha, no fogão da cozinha de paredes de pedra,ainda em Santa Teresa....Na peneira,as sementes separavam da fruta,a casca virava doce,ia direto ao pote, os pedaços da casca caramelados,em meio às flores de cravo,"pra dar gosto",ela dizia..O que sobrava da operação virava geleia, das que se comia com biscoito no pote de tampa verde e que se tomava com café.Eu,que não tomava café,assistia os adultos rodearem o bule e as xícaras de vidro, que passara de geração em geração e hoje enfeitava a mesa dos domingos,no pós-almoço .Eu rezava também pelo milagre mais ou menos rotineiro da transformação da geleia de goiaba no rocambole.A massa enrolada em pano de prato umedecido e polvilhado de açúcar..Sempre me pareceu que em algum momento a massa ia se partir, mas ela sempre conseguia dar jeito de fazer dar certo, no tempo exato das coisas...Cabiam muitas coisas no girar da massa amarela, no mexer da colher de geleia,a fumaça subindo devagar pelo fogão,penetrando a casa..Cabia o afeto doce, profundo,do colo e das mãos,cada dia mais velhas, cozinhando e costurando aqui e ali as tramas da família.. Cabia o abraço das tardes da minha infância e a certeza de que,entre as páginas do meus livros, era só espichar o rosto e você estaria sempre ali.. E era só esperar mais um pouco pra ver as frutas em pedaços virarem geleia vermelha e translúcida, acumulando em potes sobre a mesa.Basta fechar os olhos e a sua imagem ainda está ali,no fogão,na mesa,na mesma toalha que eu te vi estender por toda a minha vida.. O cheiro de geleia, contudo,ficou entre as folhas do calendário e já faz um tempo que procuro e espero, nas panelas vazias,nos potes acumulados nas prateleiras,o momento em que você vai cruzar o corredor da cozinha e me dizer: -prova, minha filha, acabei de fazer....

domingo, 4 de agosto de 2019

A mulher do turbante vermelho

Na madrugada fria, entre os infinitos cinzas do inverno carioca, havia um único ponto de cor, por sobre a grama dos jardins do Aterro do flamengo. Bem na divisa, onde termina a zona sul e o centro da cidade, na praça coberta de folhas úmidas, amareladas pelo sol, um ponto vermelho, enrolado a um cobertor xadrez, ressonava, o movimento leve da respiração se tornando pouco a pouco mais lento, enquanto o sol nascia. Na esquina ao lado, a Kombi do jornal entregava os exemplares do dia e as primeiras bicicletas cortavam os trilhos do VLT. Foi justamente nesse momento quando, em um movimento brusco, o cobertor rolou ao chão, trazendo à luz do dia a mulher do turbante vermelho. Como conseguira dormir à noite toda com aquele artefato na cabeça, não era possível precisar. O fato é que, alheia aos movimentos da cidade que acordava, a mulher ergueu o corpo, esfregou os olhos e apreendeu o dia que se iniciava. Ato contínuo, levantou-se e dobrou o cobertor, jogando-o dentro de um velho carrinho de compras, amarrado ao banco e já lotado de outros pertences. Dali tirou uma caneca de folha, uma escova de dentes e um espelho pequeno, alaranjado, onde admirou o próprio rosto em um longo devaneio. No mesmo momento, o barulho do VLT chegando tirou-a da contemplação. Sem sentir, ergueu-se, observando o veículo avançar, com os primeiros passageiros do dia. Nunca cansara de observar cada rosto na janela, como uma forma de observar a si mesma. Os olhos voltados para lugar nenhum, ou presos à leitura do jornal, os ouvidos presos aos fones, ou a celulares cada vez maiores. Alguns rostos a encaravam também - mas que diabos era aquela mulher de turbante, com uma escova de dentes nas mãos, observando-os placidamente? Imóvel, ela parecia quase pertencer à paisagem, não fossem os olhos, que se moviam rapidamente, na intenção de capturar todos os detalhes e era quase como um filme que assistia, plano a plano, os personagens passando diante do seu rosto, cada um com seu drama particular. Subitamente, uma criança, ao colo da mãe, apontou:- mamãe, o que é isso? A mãe olhou a mulher de turbante que, envergonhada, retraiu-se, voltou as costas à janela. Esperou que o veículo passasse e foi até a padaria defronte, onde negociando, obteve um copo de plástico com agua e um café preto, dos de ontem. Usou o banheiro para escovar os dentes e, surpreendida pela garçonete, foi expulsa antes de poder terminar. Pão só tinha às segundas-feiras, quando a fornada de sábado sobrava. A mulher já sabia esperar o tempo certo das coisas e aguardar o que não podia mudar. O VLT, por exemplo. Antes dele podia dormir até mais tarde, aguardando somente o ruído da companhia de limpeza ou a presença de um ou outro agente de segurança. Tudo se movia mais depressa desde então. Passou diante da banca de jornais, assistindo à arrumação das revistas e jornais do dia. Parou diante da manchete, que alertava sobre os riscos do aumento do desemprego no pais. Refletiu sobre como era fácil falar sobre falta de emprego, estando empregado ou sobre a fome no mundo, diante de um prato de comida. Difícil era viver o desemprego e a fome todos os dias, enquanto se espera por uma oportunidade, uma estratégia, para chegar até o dia seguinte. Aí a dor na boca do estômago não virava texto, virava companheira constante. Cumprimentou o jornaleiro, que organizava as revistas na prateleira e perguntou dos fascículos de carros, sua antiga paixão. Todas as semanas admirava o modelo novo, exposto na banca e lia devagar, em êxtase, a descrição do modelo. O último publicado era um Chevy 1963 verde musgo, que ficou na banca por semanas, até ser finalmente arrematado por um rapaz jovem, de terno e gravata. A mulher acompanhou a negociação de longe, vendo o dinheiro ser passado entre os homens, observando o fascículo finalmente sendo retirado da banca e colocado na pasta de couro do moço, que seguiu seu caminho até o fórum. A mulher seguiu-o, à distância, enquanto atravessava as ruas, à tocaia. O que ela esperava, não saberia dizer. Talvez que ele voltasse atrás e oferece o fascículo recém-comprado. Mas nada disso aconteceu. Voltou para a praça em lágrimas. A partir daí passou a evitar as bancas, com medo de uma nova recaída. Até semana passada, quando descobriu um Lincoln 1950 azul cerúleo, no fascículo à venda. Uma vez vira um filme, já não sabia precisar onde nem como, em que a mulher ao volante percorria uma longa estrada perto do mar, o por do sol refletido nas lentes dos óculos, o lenço ao pescoço esvoaçando. Ela ia sozinha e a estrada parecia infinita. A mulher de turbante queria sentir a sensação do vento no rosto e da solidão da personagem e era quase como se a réplica azul guardasse em seu interior a experiência inusitada de uma estrada vazia a frente e todo o tempo do mundo. Ali na praça o tempo nunca estava nas suas mãos, mas era, ao contrário, fruto da ação de terceiros, de acontecimentos diversos que ela não conseguia controlar. Ainda assim, ela organizava, em meio ao caos, suas próprias tarefas e desejos. Estava ainda parada em frente à banca e o jornaleiro chamava-a, entregando os jornais da semana anterior, guardados para ela. Eles eram fogo, aquecimento, travesseiro e principalmente histórias, que degustava em meio ao café e, ocasionalmente o pão. Vez por outra a equipe de voluntárias da igreja de são Jose passava pela praça, oferecendo caramelos e cobertores, que ela dispensava. Uma única vez, uma das mais moças, deu-lhe um livro, que ela sorveu aos poucos, deixando que as palavras se derretessem aos poucos na memória e penetrassem sua carne. Um lápis vermelho marcava as palavras mais difíceis, que ela por vezes levava ao jornaleiro, para confirmar o significado que quase apreendia de todo. De resto, a mulher, porque era uma mulher que escrevera o livro, falava de aprendizagens e do dia a dia e do instante em que uma outra mulher, terceira nesse elo entre livro, leitor e autora, conhecera um cego, no caminho do bonde e teve a vida transformada pelo acontecimento. A laranja do cego, a paixão no corpo da mulher do bonde, eram tão reais que essa noite a mulher de turbante não conseguiu dormir. Ficou deitada no banco, olhando as cores do céu mudarem pouco a pouco, pensando no banal acontecimento de uma laranja mordida a tal ponto de afetar toda uma vida. E pensou na própria vida, tão intensamente que viu a si mesma ainda na porta do ônibus em direção ao Rio de Janeiro, fazia tantos anos. E voltou àquele instante presente, em que a única coisa que tinha estava dentro do carrinho de compras e no próprio peito. Mas curiosamente, pela primeira vez sentiu-se livre. Era um ponto vermelho em meio ao cinza, um corpo feminino que ousava fazer da rua seu lugar de existência. A intensidade dessa constatação trouxe lágrimas aos olhos. Buscou nos pertences a preciosa bolsinha amarela e de lá tirou o rímel e o batom vermelho. Gastou longos minutos na composição da maquiagem .Ao final, contemplou o próprio rosto por um longo tempo. Talvez hoje o segurança da Maison de France estivesse de bom humor e a deixasse penetrar a sala de cinema e assistir à exibição dos filmes de sexta à noite, escondida na sala de projeção. Ali acompanhara histórias estrangeiras, sofrera com desencontros, assassinatos, perseguições policiais, ali vira as ruas tomadas por protestos de estudantes de cidades distantes. E sonhara com o dia em que sua vida, que lhe parecia muito peculiar até para si mesma, fosse exibida entre as luzes e sombras do cinema. Quem sabe fosse capaz de escrever sua própria história, não mais como um fragmento da cabeça alheia, mas com suas próprias cores em vermelho vivo e assisti-la diante dos seus olhos, sem ousar interferir? Era tão mais poético quando a chuva fria atravessava a imagem e não chegava ao corpo, parecia tão mais bela a existência escrita em um pequeno quadrado luminoso? Difícil era resistir todos os dias, e ter que criar o próprio ponto de cor, em um cenário cinzento, ousando acordar e existir, sem audiência atenta ou trilha sonora. Difícil era enxergar-se como protagonista em uma trama tão confusa quanto a realidade. E sem pipoca para divertir-se nos momentos mais dramáticos. Difícil erra ser a mocinha da história, sem reviravolta na trama, sem herói que a resgatasse em um cavalo e sem música retumbante no final. Era afinal, uma questão de coragem ou de teimosia diária ousar sonhar com a estrada infinita, enquanto ouvia o eterno sacolejar do trem e ser a personagem involuntária em um enquadramento aleatório. E resistir, tentando resgatar no reflexo da janela o próprio rosto, em meio aos olhares da multidão. Os olhos marejaram diante dessa constatação. A mulher ajeitou o turbante, levantou-se e foi até o prédio da Maison, esperando mais um momento de mergulhar em uma história diferente da sua. O segurança, olhou-a de soslaio, fez um gesto imperceptível de cabeça e abriu uma pequena brecha na catraca, suficiente para que ela passasse. Espremeu-se ali, apressada e correu até as escadas do prédio, posto que, elevador para ela não havia. A sessão já havia começado há muito. Na tela, uma jovem corria, fugindo da polícia. A mulher do turbante penetrou a sala vazia de projeção, e posicionou-se na pequena janela próxima ao projetor. A jovem corria, atravessando esquinas de uma cidade cinzenta, enquanto os perseguidores iam nos seus calcanhares. A mulher acompanhava, tensa, as tentativas de escapar, os instantes de fuga, o semblante tenso da jovem. Em uma curva da cidade, os policiais quase alcançando-a, a jovem virou-se de repente para a tela, e olhou para o público. Naqueles segundos, a mulher de turbante sentiu-se tocada por uma força invisível, como se a personagem da história soubesse de sua existência. A jovem, então, em um movimento brusco, correu na direção contrária, em direção aos policiais. E parou diante deles, como em desafio. A mulher, que assistia a tudo, o coração opresso, pressentiu o que viria. Fechou os olhos, mas ainda assim, não pôde não ver a primeira bala, que acertou o peito da jovem e as outras que vieram, derrubando-a no chão. Sentiu –se atravessada por cada tiro, a boca seca, os olhos vidrados e quando o corpo da jovem atingiu o solo, não pôde evitar, o peito parecia explodir, a cabeça em vertigem. Sem poder controlar, viu o tapete da sala de projeção mais próxima, a cabeça girava e em segundos, foi ao chão. Ali o segurança a encontrou, finda a sessão e convidou-a a se retirar. Mas as balas, o sangue, a morte da mulher, estavam no seu corpo, definitivamente. Amanhã o dia seria mais cinza e o turbante pesaria mais. Amanhã o filme na janela do VLT seria o mesmo de todos os dias e a mulher restaria em silêncio, como um personagem de cinema mudo. Mas isso era só amanhã. Hoje, restava-lhe sobreviver.

quarta-feira, 24 de julho de 2019

E agora,José?

E agora,José? E agora,José? Foi-se a democracia, esgotou-se a previdência, extingui-se o FGTS.Rasgaram a Constituição. Desabam as universidades, agoniza a saúde pública, morrem as farmácias populares. E agora,José?E agora,você? Não foste para rua, não tentaste qualquer reação, te entrincheiraste em tuas pequenas certezas, acreditaste que nada ia te alcançar?Do fundo do teu sofá,onde ergueste teus punhos contra a corrupção, não te alcançaste o desemprego, a desigualdade na tua esquina, a violência atingindo teus vizinhos, o sangue escorrendo no teu bairro? Acaso não ouviste o grito dos estudantes, professores e artistas, te chamando a lutar, a proteger as liberdades, pensaste que eram comunistas?Comunistas,José? Enquanto jantavas teus preconceitos, em teu prato 237 agrotóxicos a mais,acabaram os debates, fecharam as porta dos jornais, expulsaram os dissidentes, e tu, José, digerindo tuas verdades falsas, tuas informações truncadas, teu vasto manancial de pequenos ódios e mesquinharias, esforçando-se para não ver o óbvio?Que tua revolta nunca fora contra a corrupção, nunca fora por um projeto de país,mas apenas para estar certo e apontar o dedo aos que divergem de ti. E agora José?Sozinho na sala, não tem mais namorada, não tem mais amigos, não tem mais samba na esquina, não tem mais cinema.O teatro fechou. Nem mesmo trabalho há. Quer fugir não pode, quer dormir não consegue, quer cultura, não há mais cultura. Quer caminhar na floresta,não ha mais floresta, não só um silêncio incômodo nas ruas vazias.Há somente a dura constatação de que está só,andando em círculos no conforto de tua varanda , admirando os inúmeros helicópteros com miras telescópicas, que fazem todos os dias dez corpos no chão. José, até quando?

quinta-feira, 18 de julho de 2019

Há um poeta na praça

Há um poeta na praça No viaduto do Maracanã,perto da praça Xavier de Brito, mora um sujeito que eu sempre quis ser.Um escritor, um poeta, com livros publicados, professor de literatura e filosofia. Perto dos carros que passam, das ruas eternamente engarrafadas da Tijuca, vive um homem que chegou ao único lugar em que almejei chegar um dia: ter meus textos impressos, ver minhas palavras escritas e lidas por pessoas e, quem sabe, encontrar a mim mesma em uma prateleira qualquer, escondida na livraria que frequento, em meio à fumaça do café e de tantas histórias que costumam atravessar os ambientes permeados por livros. Fico repassando continuamente a história, relendo tudo que foi publicado, tentando não pensar que, próximo ao Rio Maracanã, nesse úmido inverno carioca, há uma pessoa que não conheço e que, por depressão, descuido ou infelicidade perdeu o rumo das coisas certas, como costumamos chamar todos aqueles que conseguiram preencher a ficha de itens fundamentais no formulário da vida, esse mesmo que gostamos de exibir aos parentes e amigos, em uma conversa amena (ou, mais recentemente, nas redes sociais): me formei em engenharia, comprei um carro novo, visitei a Noruega pela terceira vez. Enquanto isso os desejos mais profundos e inclassificáveis continuam guardados para outra oportunidade, até conseguirmos alcançar aquilo que chamamos estabilidade - o que quer que signifique isso- e possamos chamar nossas paixões confortavelmente de hobby , lugar aceitável onde enquadramos tudo aquilo que nos faz viver mas, aparentemente, não tem função alguma. Também eu ousei preencher essa ficha, o formulário implacável de afazeres com que nos defendemos do mundo... Faculdade, cursos, certificações, competências, livros, livros, livros, etiquetas, diplomas. Palavras e mais palavras sem sentido preenchendo todas as horas do dia. Contudo, no fundo do quarto as palavras que eu realmente queria dizer ficaram na caixa do lado do armário, esperando o momento certo de sair.. Às vezes, por desespero ou descuido, um tropeço e pronto. Lá ia a caixa ao chão, espalhando a verdade para todo lado: eu simplesmente não queria preencher todos os itens do formulário. Tudo o que eu queria era contar histórias, botar no papel todos os dramas que me chegassem aos ouvidos. Um dia me disseram que havia profissões reconhecidas e respeitadas onde eu poderia exercer minha paixão. Professor. Jornalista. Revisor. Pesquisador. Caminhei então, os passos acelerados, o coração descompassado, para o confortável mundo das pequenas certezas. Me tornei jornalista e passei a buscar nas minhas palavras o tom certo para o sofrimento humano e aprendi, ao longo dos anos, a me equilibrar entre o espanto e o registro, de braços dados com a história. Mas ainda não era isso, eu sabia. No meio do espelho, em muitas madrugadas perdidas, a verdade inescapável: as palavras que me surgiam no meio do peito não cabiam na realidade. Iam muito longe dela...E, por vezes, em vez de relatar com objetividade e técnica um acidente, ou a disputa eleitoral, eu preferia descrever, em duas ou três páginas o ultimo pôr do sol que vi, uma mulher que passara por mim no metrô, o casal que se encontrou na esquina defronte, um gesto, uma palavra solta, um segredo, entreouvido por aí, no circular pela cidade, no intervalo de uma notícia. Era tudo que eu sabia ser...Escrever sentimentos, silêncios, pausas, cores escondidas entre os ponteiros do relógio...Um lugar nada confortável esse de sufocar com as palavras, de querer dizer e não encontrar formato ou espaço...Poucas pessoas querem ouvir, atualmente, sobre os tons de rosa que riscam o céu quando o sol se põe, ou do beija-flor que pousou na janela a noite passada, quase ninguém vê a mulher que dorme na praça, de turbante, no canto mais escondido do Aterro do Flamengo e já há poucos que possam perceber quando é outono e as ruas mudam de cor, ganhando um tom dourado...Todos tem pressa e propósito. Inclusive eu. Ao meu lado, no momento, sobram folhas, tarefas e livros, todos com destino e prazo de validade certos.. Mas há um silêncio dentro do peito que as palavras exatas não conseguem preencher e não há técnica ou formato que vá conter, quando tudo que se quer é que as mãos ajam, à revelia da vontade e preencham o papel com tudo que ficou por dizer. Enquanto isso os boletos acumulam, as pequenas obrigações cotidianas e a inevitável obrigação de sobreviver. E todos ou quase todos continuamos sobrevivendo mais ou menos desesperados, em graus maiores ou menores de sofrimento. Por isso a história do escritor que mora na rua me tocou. Porque ele sou eu, porque também permaneço à margem da minha própria vida, quando insisto em criar formatos e técnicas para algo que não pode ser enquadrado, palavras que talvez nunca vão caber em uma frase, preencher um texto e - suprema glória- serem publicadas e circularem por aí. No entanto, essa espera, essa esperança é tudo que sou e nada mais me resta do que deixar enfim que o fluxo de histórias finalmente tome conta das minhas mãos e olhos, se aproprie da minha existência e chegue até os dedos, preenchendo o espaço entre mim e o mundo. Não sei, infelizmente, a história do escritor. Depressão, dizem os especialistas. Dificuldades financeiras, prega a jornalista que o entrevistou. Desilusão amorosa, arriscam outros. Nesse mundo de muitos diagnósticos, sobram as definições. Enquanto muitos lamentam-no por sabê-lo mestre, eu sofro por entendê-lo poeta, ofício amaldiçoado, sem função ou justificativa, mas tão fundamental quanto inevitável. Eu sigo acreditando que um dia ele não coube dentro do espaço pré-determinado de existência que lhe cabia e escapou, resolveu encontrar um lugar onde pudesse enfim respirar. Queria poder encontrá-lo e dizer o quanto eu sinto, lhe oferecer um café, um abraço, um cigarro. Queria poder mudar esse estado de coisas que desloca as prioridades, refuta a poesia, sufoca as palavras e deixa ao abandono tudo que é subjetivo. Em tempos de ódio ao conhecimento e à criação, como falar de silêncios e cores sem parecer piegas, inútil, cafona, deslocado ou, muito pior, alienado? Melhor seria sucumbir à tristeza geral e calar-se. Mas ainda assim, por mais distante que se vá, não se pode sufocar por muito tempo as palavras que, ao menor descuido, saem sem pedir licença pela ponta dos dedos, em um maremoto difuso de sentidos, encontrando a primeira superfície disponível para existir. E a única coisa que podemos fazer nesse caso é segurar firme e tentar sobreviver, enquanto a tempestade nos atravessa. Então o que eu posso fazer é rezar para que o poeta, que permanece na praça, se mantenha seguro, que siga sendo amparado pela rede de apoio que o protege todos dias, que consiga sobreviver à tempestade e encontrar o caminho de volta... E que um dia possamos considerar um caso de saúde pública, uma calamidade nacional, quando um poeta não encontra lugar na sociedade em que vivemos. trilha sonora: https://www.youtube.com/watch?v=QpA7qPeP7q4 https://www.youtube.com/watch?v=sX7fd8uQles https://www.youtube.com/watch?v=RsVLIiI8Vfo

terça-feira, 16 de julho de 2019

Naturalmente

Naturalmente Entre as tramas dos nossos dias, nos corredores das nossas vidas,outras vozes se somam às nossas...Outros pés começam a seguir nossos percurso, cada vez mais longo, deixando pegadas menores sobre os nossos pés, reinventando nossas rotas.Tudo no seu tempo, de existir e reexistir,tempo de lágrimas e risos.De fragmentos e plenitude.Enquanto contemplávamos o pôr de sol, naquele intervalo de silêncio, sem que percebêssemos, algo mudou.Não estamos mais sozinhas, mas ainda somos as mesmas, reinventando a poesia do cotidiano,ensaiando outras existências, buscando estrelas e nos perdendo em palavras,as mesmas meninas de antes....Quantas curvas, nesse tempo, quantas pausas, enquanto ainda tentamos mergulhar no espelho, e perdendo tantas vezes o pé, diante de nossas sombras e medos, entre desencontros e dor...Enquanto caminho até o espelho, examinando as primeiras rugas se desmanchando na curva dos olhos,tentando me reencontrar no caminho, guio novas mãozinhas que aprendem a andar,minha filha, sua filha, tantos úteros e esperas, enquanto o tempo passa feito areia, por entre nossas mãos, traçando outros caminhos,de sim e não, de reinvenções e poesias, no sutil costurar das nossas vidas.. Enquanto o tempo paira como a poeira dos dias sobre os móveis, os ecos de ontem se somam às vozes que nos chegam, por entre o caos do cotidiano.. Somos ainda feitas de pausas e nós, das mesmas notas, em canções distintas, que insistimos em ouvir.. Das três que fomos, nos multiplicamos em outras mulheres, novos úteros,outros papeis e infinitas sensibilidades ... E ainda seguimos juntas para a mesma praia, para molhar nossos pés nas nossas águas internas, mães, avós, mulheres... Naturalmente....

domingo, 16 de junho de 2019

Sodade




Deixarei que me atravessem todos os tons de azul que ainda restam do outono....Desse outono de partidas e chegadas..De desencontro e silêncio..De caminhar em círculos em torno de mim mesma.E de me alcançar e me perder em múltiplas tentativas de poesia, enquanto o sol brilha lá fora..De me fechar em vão ante a tela ,o cursor piscando..Sem nada a dizer..Sem conseguir evitar que as últimas notas de uma canção longínqua chegue ao meu Ouvido..."sodade.. sodade...quem mostra o caminho longe",na voz de cesaria...e da voz dela somo a minha..sodade sodade... Enquanto a luz vai pouco a pouco cruzando todos os azuis no correr do dia.. Trilha:https://youtu.be/wXLUbWZnYvM

quinta-feira, 18 de abril de 2019

Desacelera

De todas as coisas que aprendi a mais importante foi a entender a brevidade do tempo das coisas e das pessoas...Assim, mesmo bem pequena eu sempre soube ou intuí que cada momento era único e me dava angústia,sempre me deu, perceber que a configuração perfeita,de pessoas e lugares era muito muito breve...Isso porque eu sempre consegui enxergá-las em um fluxo constante. Jamais estiveram paradas. Durante um bom tempo eu tentei reter - pessoas e situações - por amor ou por medo de sentir dor. E percebi, mesmo que muito devagar,que não se pode reter o tempo. Foi assim que aprendi(ainda que - como dizia a minha vó -com muitos galos na testa,como são todas as coisas que a gente aprende de verdade) a maior declaração de amor que alguém pode fazer por você é compartilhar o seu tempo. Independente de grana, pressa, dores, distâncias... Porque dizer sim não tem lugar fora do intervalo do nós...Essa certeza veio desde a adolescência, quando eu passava horas jogando conversa fora nos pátios do CEFET, das resenhas inesquecíveis da faculdade, dos meus cafés salvadores,das muitas pessoas que conheci e conheço e que passam um tempo e depois se vão..Mas no momento em que ficam,nesse incrível e insubstituível intervalo entre o sim e o não, é que se faz a comunicação, onde a música pára e aquele que está do seu lado, amigo, amor ou as duas coisas juntas, consegue sentir a presença sutil do tempo ....Que não é feito de matéria, imagem ou máscaras ,mas de um sentir em comum,sem pressa ou razão,tão efêmero quanto exato.

segunda-feira, 1 de abril de 2019

Sobre o feminino e o flamenco

No espaço do palco, no jogo de luz e sombra, no movimento das mãos em direção ao céu, no giro vertiginoso dos ombros, no farfalhar das saias, nenhuma outra dança celebra tão profundamente o feminino em todas as suas nuances quanto o flamenco..Se no ballet o instante do ápice é um breve intervalo da juventude - ainda que infinito enquanto dure, posto que, logo o tempo vem, no distender dos músculos, na limitação do corpo - no flamenco, o tempo do corpo é o que torna o bailar mais belo. A mulher flamenca, quando pisa no palco, do alto dos seus grossos saltos, leva com ela toda sua história, de dores e perdas, entrega e paixão. Ali, enquanto baila, nada permanece na sombra, o peso de todos os dias, os instantes de desespero,as lágrimas e mãos fechadas e as palavras não ditas e tudo que não foi. Porque o flamenco se alimenta desse desesperar, o pranto difuso, a incerteza do instante seguinte, o longo e doloroso silêncio da espera, em vermelho e negro.Já é a carne viva, que se consome em cada passo, no correr dos anos. Já é a inevitabilidade da entrega.É saber-se parte de algo maior, que te convoca ao primeiro contato, do qual não se pode fugir, de um fogo que consome por dentro, que sabe ser dor, mas também êxtase e que sabe ser tempo, vivido no mais profundo do que o feminino pode ser. Mulher que não se faz em um dia, mas no passo dos anos, desde o primeiro aprendizado das palmas, desde as primeiras notas no taconeio dos pés...E as mãos que se erguem,jamais deixarão de girar.Elas sabem que o movimento perfeito só virá com o caminhar dos dias, com as rugas no rosto, com o cansaço das costas,com nascer e morrer, com o movimento que sempre pode ser o último, com o frio que entra por vezes, e pede que um xale cubra os ombros. Porque os joelhos que se erguem em direção ao céu, também doem e pesam e tremem muitas vezes.Mas no vibrar da guitarra, na cadencias das palmas, esse corpo se move, o rosto se ergue e é com segurança que essa mulher atravessa a roda em direção ao centro.Ali, ao riscar ao chão e se posicionar, em meio aos gritos e sons, essa mulher, geralmente mais experiente, carrega toda sua história e a oferece para cada um que a observa.Nesse momento, não há medo ou hesitação. Ela e o flamenco são uma coisa só.Algo que pulsa na mesma cadência das cordas da guitarra, de um ritmo que se sente no meio do peito,que corta e queima.Em vão tentarão limitar a dança ao som de um ou outro ritmo, ou palo. A dança esta ali, no corpo da mulher, enquanto ela gira suas saias, abre e fecha suas mãos,sente a melodia vibrar por toda a pele, como um toque -que se faz sem pressa,de si para si. E quando ela taconeia, não pode esconder um sorriso..Nesse intervalo de notas, de giros e palmas, é onde repousa o feminino,vermelho,intenso, rasgado de sentir e ser. E são todas Carmens e Saras e Marias e Esmeraldas, girando as saias e cortando o ar com as pernas. Não seria o mundo, em seus invariáveis tons de cinza, que as prenderiam.Não seriam os homens, em sua incompreensão,que as limitariam. Elas existem. Infninitas.Fortes. Perenes. Flamencas.