segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Costuras

Ontem eu,fora de costume, remendava umas roupas demasiadamente estragadas...A cada ponto,parecia que ouvia tua voz, no movimento da agulha, no cruzar da linha, em cada ponto dado.Você nunca entendeu porque eu usava linha dobrada para costurar. "- Linha dobrada é só para pregar botão,minha filha", ela dizia,abanando a cabeça, como em todas as poucas vezes em que me via costurando. Como quase sempre acontecia ela perdia a paciência de me observar embolar a linha, perder a agulha dezenas de vezes, me dizia: " Deixe, me dê aqui, deixa que eu faço" e pegava minha costura, tirava os terríveis pontos desencontrados, em linha colorida, que eu dava, me pedia a tesourinha - "não tem tesoura,vó, perdi a minha. Usa a sua". E ela abria a bolsa, pegava no saquinho os apetrechos,ia cosendo cada parte do tecido,contando causos. A saudade que me dão essas pequenas coisas, talvez seja maior do que a tristeza por saber que daqui a pouco faz um ano sem você. Queria te ter ao lado só mais um pouquinho, deitar no teu colo e chorar minhas dores mais uma vez, como sempre fiz. Queria te ouvir dizer "que coração,minha filha,é terra que ninguém pisa", quando eu vinha quebrada - e eu sempre vinha" chorar todos os incompreensíveis da vida. Queria te ver tomar meus erros,desmanchar tudo e dar teus pontos, emendando todas as partes separadas, o sim e o não, o silêncio e o caos, dor e alegria, unidos de novo, para não soltar mais. Queria poder apagar as memórias recentes da tua partida e do imenso silêncio que ficou. Olhar pro sofá e te ver ali, a linha e a costura. E só mais uma vez te ouvir dizer:"- me dê,minha filha, me deixa fazer", emendando a minha vida, do jeito que tem que ser..

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