terça-feira, 21 de julho de 2020

do caminho de volta

ao 16 de julho Pisando suave no chão da casa, caminho até o corredor vazio, de paredes brancas. Ainda não amanheceu e ainda há um silêncio que nos alcança, nas roupas jogadas no chão e a delicada poeira que restou nos cantos. E ali, no fim do corredor, nós dois, cada um em uma ponta da cama, um arremedo de lençol esticado às pressas, para conter nosso sono. No meio de nós, a vida e o atravessar do tempo, fragmentos de sim e de não no correr dos dias, dores que acumulam no compasso das dúvidas. Existir. Real. Para além do sonho, mas no cotidiano sutil e desgovernado de ser dois em meio às incertezas e ao caos. De tudo ficou um pouco e já são outras as músicas que ouvimos e nossas horas se multiplicam aos poucos, aprofundando o laço no intervalo das nossas mãos, que se esticam e alcançam uma à outra, mesmo quando tudo diz não. Quantos instantes de medo tivemos, em tão pouco tempo? Quantas vezes entre o eu e você, mil palavras não ditas, correções de rota, olhos que encaram o espelho, dias de dor. Às vezes, cada um do seu lado, sem saber onde guardar o afeto que construímos juntos, em tantos modos de ser talvez. Por que nós, justamente nós dois, depois de tanto tempo? Justamente agora? Quem sou eu ou você, depois de tantos dias, de reinventar a si enquanto o mundo gira e nada resta no lugar? Fora isso a vida, o instante de pausa da humanidade, as mortes nos jornais, a incerteza e o caos? Nós dois? Como? Enquanto dedilhas tuas notas, meu corpo gira, tentando encontrar o equilíbrio, o peito rasgado. A dúvida e a dor. O que fazer com esse amor enorme, desmedido, inesperado que surpreendentemente me atravessou, no momento em que minhas pernas se esticavam para alçar voo solo? Como ignorar esse insistente raio de sol que atravessou o café para pousar em cima da mesa, no meio do papel branco dobrado, que trocou de mãos e ali já havia uma vida inteira? E o percurso do táxi para casa nunca foi tão longo. Porque a única palavra que eu não ousava dizer era justamente a única possível: Sim. Para o amor, para mãos dadas, para o constante desassossego e a espera. Para a vida que me chegava completamente diferente do que eu pensei. Mesmo que eu não dissesse, na pele, olhos e até nos ossos eu dizia sim. E não deixei mais de dizer até o momento da primeira dor. E se? E se de repente confundimos nossas rotas e o mapa de nossas vidas precisasse ser reorientado? Eu, você. Nós? Por quê? E nossas metáforas, silêncios, mãos dadas, onde guardar tudo isso? Como sonhar de novo esticar as asas, quando havia um fogo novo no peito e ele invariavelmente passava por você? Melhor fugir, fazer de conta que não tinha passado de um sonho, dos que nos chegam de madrugada, sem que posamos controlar. Melhor seguir. Cada um do seu lado. Mas foi no primeiro movimento contrário, ponteiros do relógio ousando retroceder até o instante do encontro, que caminhei, corri, até o primeiro momento da gente, das primeiras músicas, o toque da pele e foi então que me reconheci no reflexo dos seus olhos, no abraço apertado, nas lágrimas, na espera e nos sonhos. Não mais meus ou seus apenas. Nossos. De ser e viver. E percebi, não sem uma pontada de dor, que estava tudo ali, exatamente como eu deixara. E que saudade eu tinha, porque sempre estivera ali, parada em frente ao mesmo café, esperando a carta dobrada chegar até mim, procurando tuas mãos, em meio aos lençóis, contando as horas para te ouvir e os dias para sentir você por perto. Ousando acreditar em meio à escuridão da tempestade que passou sem que soubéssemos nomeá-la. Nossos risos, as primeiras fotos, o café pronto, os joelhos juntos na varanda, o pôr do sol e a luz do meio dia sobre nossos corpos. Na metáfora que eu nunca esperei, a vida que atravessou a minha vida e me convidou a ousar voltar a sonhar, dessa vez, com a consciência plena de ser a um só tempo mente, corpo e espirito. E da dor que viria e veio, porque sempre vem quando se está à flor da pele, ao contato da essência, como tem que ser. Ao menor movimento, o medo..o retroceder e todas as defesas de novo. Por que? E me vi ali, naquele mesmo táxi, faz quatro meses, ousando sair na tempestade pra te encontrar na chuva e perceber quando te vi, naquela sexta-feira de fevereiro, o que eu já sabia, desde o instante em que aquele pedaço de papel dobrado trocou de mãos: um passo dado à frente e eu já não tinha para onde voltar e que o amor não era uma promessa, utopia irrealizável das minhas madrugadas insones, mas a dura e incontrolável realidade de ousar ser, eu, você, nós e acreditar no imponderável, sem garantias ou certezas. E a certeza do constante mover-se do nós - que me atravessa - por vezes rio, outras vezes mar, onda que me leva distante do que imaginei, vento que arranca as páginas dos meus livros, que emudece minha voz e me paralisa, alcança minha casa, vidros que se partem no chão, inevitavelmente. Existir para ousar ser e sentir, pele que arde, boca que cala, não ditos, atravessamentos. Amor. Vida que se quer cotidiano, presença de pernas que se embolam, de tramas que se amarram e desamarram, ao sabor dos dias, nós dois. E o mesmo encantamento de tantas horas, trilhas e sons, imagens e gestos acumulados aqui e ali, vida da gente, para viver sem medo, porque nada mais me resta do que a certeza do amor na palma da minha mão, no cheiro que resta na minha pele, instante de encontro e entrega em meio ao caos. Me ensinando a agradecer ao universo pelas respostas dadas e pelas perguntas que não ouso fazer e a me convencer a acreditar no silêncio - e como é difícil as vezes acreditar - e nas sombras, me perder para me encontrar naquele mesmo corredor, na casa vazia de paredes brancas, nossos sons e imagens, memória profunda de ser. Vida. Minha. Sua. Nossa. Infinita e inevitavelmente. Poesia que eu nunca escrevi, mas que me atravessa e me faz ser e viver. Fé. Proteção. Lágrimas que escorrem. Rio que segue. Mar Revolto. Tempestade. Entrega. Amor. Nós.

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