sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

O piano

Quando eu nasci, ela já fazia música com os dedos.Em muitas tardes,na casa de minha vó, ela compunha exercícios nas teclas brancas e pretas de um piano escuro,atemporal,no canto da sala... Eu não entendia o porquê dela quedar em silêncio,quando terminava,como se olhasse pra dentro de si mesma.Mas aprendi a a amar as notas de La Cumparsita ao mesmo tempo que entedia que jamais iria conseguir ler aqueles símbolos impressos nas folhas velhas que ela deixava em cima do piano.Partituras, ela dizia..Mais tarde, o piano foi levado para minha casa e mais espaçadamente ouvíamos seus dedos correrem pela escala, tentando não fazer muito barulho,afinal morávamos em um prédio de muitos apartamentos.Era impossível. O som das notas,magicamente ampliadas pelos pedais, atravessava as paredes,corria os corredores, ganhava as outras casas. Ainda assim, não me lembro de haver reclamações. Um dia ela me chamou. Botou sentada do seu lado. Começou a explicar as escalas.Senti medo daquele monte de teclas, que minhas mãos não podiam alcançar. Aqui dentro do peito a música já existia mas não dava conta de chegar até as pontas dos dedos. Ainda tentei algum tempo. Batucava constantemente na mesa,onde me pilhasse sozinha. Acabei desistindo. O piano encontrou outra morada e hoje permanece fechado . Nas minhas memórias,porém, minha mãe ainda toca,todas as tardes,suas peças de Chopin. Quanto a mim,preferi compor com as palavras,que desde sempre me saltavam do peito, martelando continuamente até serem escritas. Enquanto a música fluia livremente pelos dedos de minha mãe,as palavras brotavam na minha cabeça,em frases inteiras,até que eu as conseguisse expulsar. Mas há um lugar, destinado à poesia, onde os sons e palavras se encontram,todas as tardes, para juntos criarem uma nota familiar,de memória e saudade.

Um comentário:

Paulo Cruz disse...

Amor, suas palavras são como música que vc compõe naturalmente. Lindo seu texto, mais uma vez ...te amo