sexta-feira, 8 de agosto de 2014

O que mais em nome do amor?A legitimação da violência a partir da cobertura midiática dos conflitos de Gaza

Em 1948, ano da criação dos direitos universais do homem e do Estado de Israel, Mahatma Gandhi, líder indiano defensor da política da não violência, foi assassinado com três tiros por um fanático hindu. Vinte anos depois, Martin Luther king, pastor protestante e ativista norte-americano, defensor dos direitos dos negros e da não violência morria, vítima de um único tiro, que atingiu seu pescoço e o arremessou contra uma parede.A imprensa,como de praxe,deu ampla cobertura aos eventos, que causaram imensa comoção mundial.O que há de comum nos dois fatos,de triste memória e o conglomerado de notícias que tem como tema os mais recentes ataques à faixa de Gaza, também de ampla cobertura? Afora a escalada de terror que permeia o imaginário acerca dos anos 60 com a repressão aos movimentos sociais, ou a lembrança recente do terror da Segunda Guerra Mundial, nos anos 40, o que une não só esses como dezenas de outros assassinatos, são a convicção por parcelas consideráveis da sociedade, de que tais atos são, em alguma medida, justificáveis e o posicionamento isento de grande parte da mídia interacional, de que as atitudes dos Estados e de indivíduos são legitimas porque defendem uma crença ou uma ideologia. Nesse viés, não é difícil encontrar na análise de articulistas sobre o conflito palestino-israelense, a crença de que, por acompanharem o desenrolar dos fatos desde há muito, lhes cabe o direito de legitimar a violência sistemática contra um ou outro lado. Além disso, talvez sobre alguma inocência(ou decerto uma certa irresponsabilidade), em crer que exista de fato uma “Faixa de Gaza” dividindo ambos os lados do conflito,sem que exista nenhum tipo de relação entre o Estado de Israel e o Hamas. São aliás as relações e a proximidade as responsáveis por agravar cada conflito, como o último,quando três jovens israelenses foram sequestrados e mortos sem que o Hamas assumisse ou negasse a autoria dos assassinatos. Começava a escalada de uma violência sem precedentes e, quase simultaneamente, as análises midiáticas favoráveis a “árabes ou judeus”, dividindo-se em um "fla-flu" sinistro, onde de um lado há o grupo pró-palestina e do outro, os sionistas. No meio disso tudo, direitos humanos são expurgados, sob a defesa de que Gaza é um território há muito conflagrado, ou que cabe, por direito à defesa, a emissão de mísseis Shell em casas, hospitais e escolas da região. Bem se sabe, mas por vezes é bom lembrar que mísseis não têm alma. São enviados sem amor a qualquer causa . Apenas explodem e é tudo. Do lado emissor, estão sempre homens, cuja justificativa apaixonada os leva a legitimar suas ações sob a certeza de que combatem o inimigo ou defendem a própria vida. Assim também parece pensar a grande imprensa internacional.Como se assistisse a uma sinistra partida de futebol, veículos de comunicação voltam seus rostos a cada lado beligerante como se aguardando o próximo ato, sem questionar em profundidade o simples fato de que as ações,per se, são criminosas e não se justificam, seja qual for o motivo, mesmo que sua defesa seja apaixonada e impulsionada pela fé mais renitente. Por amor a um credo ou a uma ideia,a violência não pode ser justificada ou combatida a golpes na mesma intensidade.Pelo amor a um modelo de governo, ou um Estado(que deveria em tese ser formado da vontade geral de todos seus cidadãos),não pode se justificar o terrorismo e o assassinato, seja de militares,seja de civis.A epopeia da guerra, tão covardemente alardeada como meio de defesa não pode mais servir de mascaramento para crimes de lesa humanidade com o beneplácito da imprensa, que parece encarar com costumeira naturalidade de abutre, a mutilação,o desmembramento , a queima e a explosão de corpos(palavras que por si já deveriam ser impregnadas do terror que representam),aguardando,como se assistisse a um espetáculo, quem será o vencedor da rodada.Cabe-nos como jornalistas,divulgar os acontecimentos em Gaza, com as exatas cores que tem.Sob a justificativa do ataque, o Estado de Israel e o Hamas assassinam pessoas,mulheres e crianças em maioria, condenados pelo simples fato de morarem em território “santo”.Impossível não lembrar, nesse caso, da maravilhosa obra de Arjun Appadurai,antropólogo italiano, “O medo ao pequeno número”, onde o autor busca analisar a incerteza social e as manifestações da violência étnica na globalização, provocadas pela acentuação das diferenças entre grupos socais e do medo relativo à desordem e ao fim da pureza na unidade nacional. Consubstanciando essa afirmação, Appadurai conceitua que a ansiedade da incompletude, ou seja, a angústia em relação ao pequeno número que falta para a maioria absoluta pode ser a causa de grande parte dos conflitos étnicos na atualidade, quando a certeza de um ethos nacional foi atravessada pelos fluxos globais do capital e a acentuação das diferenças entre ricos e pobres, além de borrar as fronteiras entre inimigos internos e externos. Nesse viés, a distensão dos horizontes sobre a multiculturalidade acentuou a preocupação sobre a identidade nacional e favoreceu o aparecimento de identidades majoritárias, predatórias, cuja mobilização e construção social requerem a extinção de outras categorias sociais tidas como ameaças (APPADURAI, 2009:46). Nesse cenário de incertezas a violência torna-se exorcismo do outro tomando como alvos ideias, costumes e grupos, na pratica do ideocídio ou civicídio pelas mãos da maioria ameaçada com a aproximação da minoria e o temor de que possa ocorrer uma inversão de papeis na estrutura social. A única certeza torna-se então, para o autor, a da violência, de forma cotidiana, nas guerras internas entre grupos étnicos, afirmando uma nova geografia política, a geografia da raiva. Appadurai (2009) afirma que a raiva é estimulada pela diferença (p.19), estopim da violência e causa do terror.O terrorismo, para o intelectual, não é um ato irracional, mas a transmutação das minorias atemorizadas para aterrorizantes, capazes de se erguer contra a ameaça através do medo ao outro o desejo de limpeza étnica. Por consequência da violência crescente, o terror é o fantasma que assombra os Estados, borrando os limites entre espaços e tempos de guerra e paz (APPADURAI, 2009:33). É uma espécie de metástase da guerra que a separa da ideia de nação pelo extermínio da ordem e a disseminação da ideia de que qualquer um pode ser um terrorista em potencial. Por conseguinte, é na mídia que Appadurai vai reconhecer a difusão asséptica do terror, pelo apoio de uma ideia, uma paixão, uma ideologia e a consequente divulgação dos atos realizados em beneficio deste ou daquele modo de vida,em detrimento do que consideram diferente,ou menos legítimo.Esquecem-se de que o terror quase sempre vem como consequência de um ato passional,cuja intensidade costuma justificar as mais deslavadas arbitrariedades. Cumpre-nos como comunicadores, ampliar nosso senso crítico em nome da defesa da vida,seja ela qual for, dando os nomes exatos a todos os atos cuja consequência for a ameaça a outro ser humano. a mídia, em sua infinita extensão e complexidade,não tem o direito de ser somente espectadora enquanto desenrola-se a tragédia da vez.Cabe-lhe escolher seu lado:o lado que proteja a vida,em qualquer medida,sob qualquer circunstância, repudiando com veemência qualquer tipo de violência.

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