segunda-feira, 23 de dezembro de 2019
Sobre o natal
Sobre o natal..
A lembrança mais antiga que tenho do Natal era da família reunida em torno da grande mesa da minha avó materna e de passar a noite tentando imaginar quando é que o Papai Noel iria afinal realizar a magia de colocar meu presente na árvore depois da meia noite. Isso até um dos meus primos me contar, quase em segredo, a grande verdade de que eram meus pais que compravam meus brinquedos. E tudo mudou de significado, embora eu continuasse achando misterioso porque é que as pessoas mais velhas pareciam tão emocionadas quando se abraçavam e brindavam à meia noite e sempre havia alguém que deixava as lágrimas correrem à solta, sendo logo consolado pelos demais. Naquele tempo eu não podia imaginar a dor que uma perda deixava na gente e o enorme buraco que ficava dentro do peito em dias como o Natal. De repente, era como se, em uma fotografia familiar, ali bem diante de todos, as pessoas fossem pouco a pouco desaparecendo, como um truque de cinema. O tempo passou e o Natal continuou me provocando sentimentos controversos, como afeto e melancolia, enquanto a ceia ia pouco a pouco mudando de lugar, assim como as pessoas que me rodeavam na véspera de Natal. Até que um dia eu tinha um bebê nos braços e era protagonista da minha própria história, responsável por criar outras memórias naquela pequena menina de olhos bem escuros. E chorar meus mortos também. Enquanto me lembro dos nossos primeiros anos juntas, algumas memórias ficam mais esparsas e a mesma imagem da ceia vai se modificando aos poucos, alguns cabelos vão devagar embranquecendo e as manchas em algumas mãos aparecem pouco a pouco. E nunca deixa de desaparecer um rosto e de ter mais um instante de silêncio, quando fazemos o brinde natalino. Também vieram rostos novos e recentemente, uma nova menina de iguais olhos escuros ocupa o lugar que um dia era meu e de todas as mulheres que vieram antes de mim. Penso que a dor é proporcional ao número de fotos que acumulam na estante e na duração do silêncio no final do brinde, como se aos poucos acrescentássemos mais um ponto na longa trama de afetos e perdas que enreda a todos nós. E um dia chegou minha vez de fazer silêncio. Enquanto observo os rostos, ouço muitas vozes, de outros brindes, de crianças correndo, barulho de pratos e garfos, gente gritando, mesas cheias, cheiros diversos. Também ouço o intervalo das lágrimas e das histórias, a memória doída que fica no rosto, refletida nas mesmas bolas de natal, cada ano mais gastas. Mas é justamente aí, no intervalo das vozes, em que se encaixa o hoje, em múltiplas parcelas de dor e alegria, expectativa e cansaço. E sei que não vou deixar me emocionar ao ver o cortejo de famílias, braços cheios de comida cujo cheiro se mistura aos perfumes, os rostos pintados, a roupa nova, ou de olhar nas ruas, na solidão e desesperança alheia os lugares onde o espírito de natal não chegou, nem vai chegar. Os corpos na calçada, o barulho das armas, o som da cidade, tudo vai permanecer. E eu vou continuar aqui, por quantos natais ainda não sei, tentando enxergar nas mesmas canções algum fragmento inusitado de poesia. Enquanto reflito, um barulho me chama atenção, bem próximo à meia noite. Já são pés pequenos, decididos, mas ainda vacilantes, que desafiam o meu pessimismo em memórias, enchendo a casa de barulho, enfrentando o longo percurso da sala e insistindo em dar mais um passo, atravessando minha vida com força e encantamento em busca do novo. E eu que tantas horas parei a contemplar o vivido, me surpreendo diante do inevitável e imperioso curso do tempo de que são feitas as coisas humanas, me dizendo assim, como um desafio, que a única escolha possível é seguir...
Feliz Natal
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