domingo, 4 de agosto de 2019
A mulher do turbante vermelho
Na madrugada fria, entre os infinitos cinzas do inverno carioca, havia um único ponto de cor, por sobre a grama dos jardins do Aterro do flamengo. Bem na divisa, onde termina a zona sul e o centro da cidade, na praça coberta de folhas úmidas, amareladas pelo sol, um ponto vermelho, enrolado a um cobertor xadrez, ressonava, o movimento leve da respiração se tornando pouco a pouco mais lento, enquanto o sol nascia. Na esquina ao lado, a Kombi do jornal entregava os exemplares do dia e as primeiras bicicletas cortavam os trilhos do VLT. Foi justamente nesse momento quando, em um movimento brusco, o cobertor rolou ao chão, trazendo à luz do dia a mulher do turbante vermelho. Como conseguira dormir à noite toda com aquele artefato na cabeça, não era possível precisar. O fato é que, alheia aos movimentos da cidade que acordava, a mulher ergueu o corpo, esfregou os olhos e apreendeu o dia que se iniciava. Ato contínuo, levantou-se e dobrou o cobertor, jogando-o dentro de um velho carrinho de compras, amarrado ao banco e já lotado de outros pertences. Dali tirou uma caneca de folha, uma escova de dentes e um espelho pequeno, alaranjado, onde admirou o próprio rosto em um longo devaneio. No mesmo momento, o barulho do VLT chegando tirou-a da contemplação. Sem sentir, ergueu-se, observando o veículo avançar, com os primeiros passageiros do dia. Nunca cansara de observar cada rosto na janela, como uma forma de observar a si mesma. Os olhos voltados para lugar nenhum, ou presos à leitura do jornal, os ouvidos presos aos fones, ou a celulares cada vez maiores. Alguns rostos a encaravam também - mas que diabos era aquela mulher de turbante, com uma escova de dentes nas mãos, observando-os placidamente? Imóvel, ela parecia quase pertencer à paisagem, não fossem os olhos, que se moviam rapidamente, na intenção de capturar todos os detalhes e era quase como um filme que assistia, plano a plano, os personagens passando diante do seu rosto, cada um com seu drama particular. Subitamente, uma criança, ao colo da mãe, apontou:- mamãe, o que é isso? A mãe olhou a mulher de turbante que, envergonhada, retraiu-se, voltou as costas à janela. Esperou que o veículo passasse e foi até a padaria defronte, onde negociando, obteve um copo de plástico com agua e um café preto, dos de ontem. Usou o banheiro para escovar os dentes e, surpreendida pela garçonete, foi expulsa antes de poder terminar. Pão só tinha às segundas-feiras, quando a fornada de sábado sobrava. A mulher já sabia esperar o tempo certo das coisas e aguardar o que não podia mudar. O VLT, por exemplo. Antes dele podia dormir até mais tarde, aguardando somente o ruído da companhia de limpeza ou a presença de um ou outro agente de segurança. Tudo se movia mais depressa desde então. Passou diante da banca de jornais, assistindo à arrumação das revistas e jornais do dia. Parou diante da manchete, que alertava sobre os riscos do aumento do desemprego no pais. Refletiu sobre como era fácil falar sobre falta de emprego, estando empregado ou sobre a fome no mundo, diante de um prato de comida. Difícil era viver o desemprego e a fome todos os dias, enquanto se espera por uma oportunidade, uma estratégia, para chegar até o dia seguinte. Aí a dor na boca do estômago não virava texto, virava companheira constante. Cumprimentou o jornaleiro, que organizava as revistas na prateleira e perguntou dos fascículos de carros, sua antiga paixão. Todas as semanas admirava o modelo novo, exposto na banca e lia devagar, em êxtase, a descrição do modelo. O último publicado era um Chevy 1963 verde musgo, que ficou na banca por semanas, até ser finalmente arrematado por um rapaz jovem, de terno e gravata. A mulher acompanhou a negociação de longe, vendo o dinheiro ser passado entre os homens, observando o fascículo finalmente sendo retirado da banca e colocado na pasta de couro do moço, que seguiu seu caminho até o fórum. A mulher seguiu-o, à distância, enquanto atravessava as ruas, à tocaia. O que ela esperava, não saberia dizer. Talvez que ele voltasse atrás e oferece o fascículo recém-comprado. Mas nada disso aconteceu. Voltou para a praça em lágrimas. A partir daí passou a evitar as bancas, com medo de uma nova recaída. Até semana passada, quando descobriu um Lincoln 1950 azul cerúleo, no fascículo à venda. Uma vez vira um filme, já não sabia precisar onde nem como, em que a mulher ao volante percorria uma longa estrada perto do mar, o por do sol refletido nas lentes dos óculos, o lenço ao pescoço esvoaçando. Ela ia sozinha e a estrada parecia infinita. A mulher de turbante queria sentir a sensação do vento no rosto e da solidão da personagem e era quase como se a réplica azul guardasse em seu interior a experiência inusitada de uma estrada vazia a frente e todo o tempo do mundo. Ali na praça o tempo nunca estava nas suas mãos, mas era, ao contrário, fruto da ação de terceiros, de acontecimentos diversos que ela não conseguia controlar. Ainda assim, ela organizava, em meio ao caos, suas próprias tarefas e desejos. Estava ainda parada em frente à banca e o jornaleiro chamava-a, entregando os jornais da semana anterior, guardados para ela. Eles eram fogo, aquecimento, travesseiro e principalmente histórias, que degustava em meio ao café e, ocasionalmente o pão. Vez por outra a equipe de voluntárias da igreja de são Jose passava pela praça, oferecendo caramelos e cobertores, que ela dispensava. Uma única vez, uma das mais moças, deu-lhe um livro, que ela sorveu aos poucos, deixando que as palavras se derretessem aos poucos na memória e penetrassem sua carne. Um lápis vermelho marcava as palavras mais difíceis, que ela por vezes levava ao jornaleiro, para confirmar o significado que quase apreendia de todo. De resto, a mulher, porque era uma mulher que escrevera o livro, falava de aprendizagens e do dia a dia e do instante em que uma outra mulher, terceira nesse elo entre livro, leitor e autora, conhecera um cego, no caminho do bonde e teve a vida transformada pelo acontecimento. A laranja do cego, a paixão no corpo da mulher do bonde, eram tão reais que essa noite a mulher de turbante não conseguiu dormir. Ficou deitada no banco, olhando as cores do céu mudarem pouco a pouco, pensando no banal acontecimento de uma laranja mordida a tal ponto de afetar toda uma vida. E pensou na própria vida, tão intensamente que viu a si mesma ainda na porta do ônibus em direção ao Rio de Janeiro, fazia tantos anos. E voltou àquele instante presente, em que a única coisa que tinha estava dentro do carrinho de compras e no próprio peito. Mas curiosamente, pela primeira vez sentiu-se livre. Era um ponto vermelho em meio ao cinza, um corpo feminino que ousava fazer da rua seu lugar de existência. A intensidade dessa constatação trouxe lágrimas aos olhos. Buscou nos pertences a preciosa bolsinha amarela e de lá tirou o rímel e o batom vermelho. Gastou longos minutos na composição da maquiagem .Ao final, contemplou o próprio rosto por um longo tempo. Talvez hoje o segurança da Maison de France estivesse de bom humor e a deixasse penetrar a sala de cinema e assistir à exibição dos filmes de sexta à noite, escondida na sala de projeção. Ali acompanhara histórias estrangeiras, sofrera com desencontros, assassinatos, perseguições policiais, ali vira as ruas tomadas por protestos de estudantes de cidades distantes. E sonhara com o dia em que sua vida, que lhe parecia muito peculiar até para si mesma, fosse exibida entre as luzes e sombras do cinema. Quem sabe fosse capaz de escrever sua própria história, não mais como um fragmento da cabeça alheia, mas com suas próprias cores em vermelho vivo e assisti-la diante dos seus olhos, sem ousar interferir? Era tão mais poético quando a chuva fria atravessava a imagem e não chegava ao corpo, parecia tão mais bela a existência escrita em um pequeno quadrado luminoso? Difícil era resistir todos os dias, e ter que criar o próprio ponto de cor, em um cenário cinzento, ousando acordar e existir, sem audiência atenta ou trilha sonora. Difícil era enxergar-se como protagonista em uma trama tão confusa quanto a realidade. E sem pipoca para divertir-se nos momentos mais dramáticos. Difícil erra ser a mocinha da história, sem reviravolta na trama, sem herói que a resgatasse em um cavalo e sem música retumbante no final. Era afinal, uma questão de coragem ou de teimosia diária ousar sonhar com a estrada infinita, enquanto ouvia o eterno sacolejar do trem e ser a personagem involuntária em um enquadramento aleatório. E resistir, tentando resgatar no reflexo da janela o próprio rosto, em meio aos olhares da multidão. Os olhos marejaram diante dessa constatação. A mulher ajeitou o turbante, levantou-se e foi até o prédio da Maison, esperando mais um momento de mergulhar em uma história diferente da sua. O segurança, olhou-a de soslaio, fez um gesto imperceptível de cabeça e abriu uma pequena brecha na catraca, suficiente para que ela passasse. Espremeu-se ali, apressada e correu até as escadas do prédio, posto que, elevador para ela não havia. A sessão já havia começado há muito. Na tela, uma jovem corria, fugindo da polícia. A mulher do turbante penetrou a sala vazia de projeção, e posicionou-se na pequena janela próxima ao projetor. A jovem corria, atravessando esquinas de uma cidade cinzenta, enquanto os perseguidores iam nos seus calcanhares. A mulher acompanhava, tensa, as tentativas de escapar, os instantes de fuga, o semblante tenso da jovem. Em uma curva da cidade, os policiais quase alcançando-a, a jovem virou-se de repente para a tela, e olhou para o público. Naqueles segundos, a mulher de turbante sentiu-se tocada por uma força invisível, como se a personagem da história soubesse de sua existência. A jovem, então, em um movimento brusco, correu na direção contrária, em direção aos policiais. E parou diante deles, como em desafio. A mulher, que assistia a tudo, o coração opresso, pressentiu o que viria. Fechou os olhos, mas ainda assim, não pôde não ver a primeira bala, que acertou o peito da jovem e as outras que vieram, derrubando-a no chão. Sentiu –se atravessada por cada tiro, a boca seca, os olhos vidrados e quando o corpo da jovem atingiu o solo, não pôde evitar, o peito parecia explodir, a cabeça em vertigem. Sem poder controlar, viu o tapete da sala de projeção mais próxima, a cabeça girava e em segundos, foi ao chão. Ali o segurança a encontrou, finda a sessão e convidou-a a se retirar. Mas as balas, o sangue, a morte da mulher, estavam no seu corpo, definitivamente. Amanhã o dia seria mais cinza e o turbante pesaria mais. Amanhã o filme na janela do VLT seria o mesmo de todos os dias e a mulher restaria em silêncio, como um personagem de cinema mudo. Mas isso era só amanhã. Hoje, restava-lhe sobreviver.
Nenhum comentário:
Postar um comentário