segunda-feira, 1 de abril de 2019
Sobre o feminino e o flamenco
No espaço do palco, no jogo de luz e sombra, no movimento das mãos em direção ao céu, no giro vertiginoso dos ombros, no farfalhar das saias, nenhuma outra dança celebra tão profundamente o feminino em todas as suas nuances quanto o flamenco..Se no ballet o instante do ápice é um breve intervalo da juventude - ainda que infinito enquanto dure, posto que, logo o tempo vem, no distender dos músculos, na limitação do corpo - no flamenco, o tempo do corpo é o que torna o bailar mais belo. A mulher flamenca, quando pisa no palco, do alto dos seus grossos saltos, leva com ela toda sua história, de dores e perdas, entrega e paixão. Ali, enquanto baila, nada permanece na sombra, o peso de todos os dias, os instantes de desespero,as lágrimas e mãos fechadas e as palavras não ditas e tudo que não foi. Porque o flamenco se alimenta desse desesperar, o pranto difuso, a incerteza do instante seguinte, o longo e doloroso silêncio da espera, em vermelho e negro.Já é a carne viva, que se consome em cada passo, no correr dos anos. Já é a inevitabilidade da entrega.É saber-se parte de algo maior, que te convoca ao primeiro contato, do qual não se pode fugir, de um fogo que consome por dentro, que sabe ser dor, mas também êxtase e que sabe ser tempo, vivido no mais profundo do que o feminino pode ser. Mulher que não se faz em um dia, mas no passo dos anos, desde o primeiro aprendizado das palmas, desde as primeiras notas no taconeio dos pés...E as mãos que se erguem,jamais deixarão de girar.Elas sabem que o movimento perfeito só virá com o caminhar dos dias, com as rugas no rosto, com o cansaço das costas,com nascer e morrer, com o movimento que sempre pode ser o último, com o frio que entra por vezes, e pede que um xale cubra os ombros. Porque os joelhos que se erguem em direção ao céu, também doem e pesam e tremem muitas vezes.Mas no vibrar da guitarra, na cadencias das palmas, esse corpo se move, o rosto se ergue e é com segurança que essa mulher atravessa a roda em direção ao centro.Ali, ao riscar ao chão e se posicionar, em meio aos gritos e sons, essa mulher, geralmente mais experiente, carrega toda sua história e a oferece para cada um que a observa.Nesse momento, não há medo ou hesitação. Ela e o flamenco são uma coisa só.Algo que pulsa na mesma cadência das cordas da guitarra, de um ritmo que se sente no meio do peito,que corta e queima.Em vão tentarão limitar a dança ao som de um ou outro ritmo, ou palo. A dança esta ali, no corpo da mulher, enquanto ela gira suas saias, abre e fecha suas mãos,sente a melodia vibrar por toda a pele, como um toque -que se faz sem pressa,de si para si. E quando ela taconeia, não pode esconder um sorriso..Nesse intervalo de notas, de giros e palmas, é onde repousa o feminino,vermelho,intenso, rasgado de sentir e ser. E são todas Carmens e Saras e Marias e Esmeraldas, girando as saias e cortando o ar com as pernas. Não seria o mundo, em seus invariáveis tons de cinza, que as prenderiam.Não seriam os homens, em sua incompreensão,que as limitariam. Elas existem. Infninitas.Fortes. Perenes. Flamencas.
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