quarta-feira, 20 de março de 2019

A vendedora de poesias

- Senhor, aceita uma poesia? - Ao homem alto que passava, sobraçando processos jurídicos e que seguiu em frente, como se não ouvisse e visse nada além das folhas amareladas da justiça. - Senhora, aceita uma poesia? - à mulher que cruzou a esquina, em seus intermináveis saltos altos, as pernas tocando as faixas brancas do asfalto, como se deslizasse. A mulher olhou-a, como se uma girafa cruzasse seu caminho em plena avenida Primeiro de Março e o susto diminuiu sua marcha por alguns instantes, a ponto de franzir as sobrancelhas e e deslizar os olhos pela figura inusitada que a interpelava. Em segundos decidiu, não conseguiu definir o que seria, ouviu um pedido, devia ser dinheiro, recobrou a pose e o passo, virou a esquina próxima. - Senhora, uma poesia? - Senhor, um minuto de atenção, para oferecer poesia? - Moça, uma poesia, por favor? Moça, moço, senhoras e senhores, ninguém olhou. A vendedora foi caminhando devagar, desanimada, no braço uma cesta com vários rolos de papel presos com fita vermelha, a mochila nas costas, pesando além do possível, a vida toda estava ali. Eram três da tarde e o asfalto do centro do Rio de Janeiro ardia e ainda era outono. Aqui e ali, uma multidão de engravatados e engravatadas, suavam em suas gravatas e tailleurs, tentando alcançar a tal da meritocracia, correndo do Tribunal de Justiça até o Ministério do Trabalho e de lá de volta, no intervalo do semáforo. Por todo lado, os ambulantes com carregadores, pen-drives, fones, de todas as cores e formatos. Iam até o meio da calçada onde sempre alguém os alcançava, realizavam a venda e voltavam para a Praça XV, onde reabasteciam. E não parava nunca de circular os artefatos eletrônicos e a papelada da justiça, orquestrados pelo vermelho e verde de cada sinal. O trânsito, como coisa viva, seguia inacreditável, infinitamente, do final do Aterro do Flamengo até a rua Presidente Vargas, um ser vivo, feito de fumaça, carros, motos e ônibus, interrompido (brevemente) pela passagem do VLT. Em meio a tanta vida, movimentos rápidos e coisas e pessoas, a vendedora de poesia circulava, como um ser invisível, tentando oferecer sua mercadoria aos passantes. Seria a roupa, o gesto, a voz baixa ou a oferta inusitada que assustavam as pessoas? Houve quem, ouvindo a pergunta da vendedora, apressou o passo, pensando tratar-se de assalto. Ainda assim, ela insistia, porque não havia mais nada que ela pudesse oferecer. Apenas as palavras com que nascera para enfrentar o mundo e as mãos completamente vazias. Um percurso de silêncio e negativas, era preferível a nenhum percurso, ela acreditava. Imersa nesses pensamentos percebeu que estava na Praça XV. O calor ainda era infernal, mesmo no outono. E quando não seria? Mesmo na chuva, as pedras largas do calçamento colonial ferviam uma àgua a contento, se assim fosse necessário. A vendedora sentou-se por alguns instantes em frente ao chafariz do Mestre Valentim, deslizou a bolsa pelos ombros e depositou a cesta de poesias sobre as pedras do muro, tentando afastar os pombos que insistiam em bicar a mochila, atrás de farelo. Estava nessa empreitada quando sentiu que se aproximavam. Uma senhora, sobraçando várias sacolas, se aproximou e perguntou: - São doces? -Não. São textos, a vendedora respondeu, distraidamente. -Você está vendendo? A senhora, insistiu, curiosa. Surpresa com o interesse, a vendedora, olhou-a pela primeira vez. Era baixa, com os cabelos presos em um coque elegante e a roupinha bem passada e bem-posta, de casaquinho e saia, completando com sapatos da mesma cor. Uns óculos enormes, redondo, completava o conjunto. Além das intermináveis sacolas plásticas que carregava, havia uma bolsa vermelha, pequena e surrada, pendurada em um dos braços. A senhora insistiu na campanha: - Mas você vende mesmo? -Não senhora, são todos de graça, mas ninguém quer aceitar por aqui. A senhora gostaria de ver? -A vendedora, achou que valia a pena perguntar. -Se você quiser me mostrar, eu aceito. Estou esperando o horário do meu ônibus. Sentou-se alegremente, ao lado da vendedora, espalhando sua bagagem pelo muro. -São poesias que faço desde pequena, disse a vendedora, ofereço um canudo à mulher. São todos escritos, revisados e impressos por mim. Venho aqui todos os dias, mas ninguém aceita meus textos, alguns pensam que é assalto, outros acreditam que estou vendendo algo. A velha senhora riu, bondosamente, enquanto abria a bolsinha vermelha: - minha filha, fui professora de literatura, estive em sala por trinta anos e posso te dizer que textos fechados não chamam a tenção de ninguém. Quantas vezes fiz impressões do meu próprio bolso, mimeografei – sou do tempo do mimeógrafo- folhas de textos, letras de música, ninguém prestava atenção. Foi somente quando comecei a promover leituras em conjunto, a encenar as falas, a criar grupos para a leitura coletiva e interpretação de cada um é que consegui que me ouvissem. A escuta humana é muito limitada, não ouvimos aos outros e também não vemos uns aos outros. Às vezes é preciso gritar. -Mas e se alguém se incomodar com meu grito? A vendedora começava a achar a senhora um pouco insana. -Se há uma coisa que chama atenção dos sujeitos é a loucura, minha filha, você vai ter todos os ouvidos de que precisa. E se alguém se incomodar, ora, não podemos prever a reação da plateia, não é mesmo? Não é que talvez a senhora tivesse razão? A vendedora perguntou: - e a senhora gostaria de ouvir um poema? -Sim, por favor, ainda tenho tempo para dois poemas e até uma crônica, desde que seja das curtas. Meu ônibus demora ainda um bocado. A senhora suspirou. - Pois bem, então vejamos o que nos cabe hoje, disse a vendedora, resolutamente, sacando um rolo de texto da cesta. Tirou a fita, desenrolou-o, ia começar a ler. -Assim não, assim eu mesma leio. Você está lendo como se tivesse vergonha do que escreveu. A senhora protestou. -Mas se não assim, como? A vendedora ficou confusa. -O texto deve ser voz e corpo, deve ser cantado ou, ao menos, falado com energia, como se toda a sua vida dependesse disso, a senhora, agora abanava-se com um pequeno leque rendado. A vendedora pensou. Pensou e por fim decidiu-se. Deixou a cesta ao lado, subiu no muro e começou a ler. As primeiras palavras saíram a medo, a voz baixa de quem espera ser interrompida a cada momento. Mal podia respirar. A senhora, sorridente, ajeitou-se melhor para ouvir. Na quarta linha, já não sentia mais medo, entrou no texto, ganhou ritmo. Nem viu quando duas meninas, vindo das barcas, pararam para observar e nem mesmo quando o ambulante, curioso, interrompeu a venda e parou também. O engravatado, pensando tratar-se de protesto, cutucou a Guarda, que fazia sua ronda, mas ao chegarem e ouvirem a poesia, acabaram ficando por ali, sem saber o que fazer. O pipoqueiro, lentamente estacionou a carrocinha em frente ao muro, e quem chegava atrás do cheiro das pipocas doces, recebia de brinde uma ou outra frase do texto lido. A vendedora fechou os olhos e continuou a recitar, sabia a poesia de cor, afinal. Na última linha, parou a medo, pensando estar sozinha. Foi quando ouviu inacreditáveis aplausos ao seu redor. Abriu os olhos e havia uma pequena multidão de passantes sorrindo para ela. As meninas, comovidas, abraçaram a vendedora. A cesta circulava por ali e cada um que tirava um texto, deixava um trocado, uma moeda, houve que depositasse uma rosa e até um saquinho de pipoca foi encontrado. A vendedora, surpresa, voltou os olhos para a senhora, para agradecer. Não estava mais ali. Perguntou a todos, ao pipoqueiro, as meninas, ninguém tinha visto uma senhora magrinha, cheia de bolsas na mão. Finda a leitura, a Guarda tratou de dispersar os passantes, cada um voltou a seu caminho. A vendedora, a cesta nunca antes tão cheia, seguiu o seu também. Agora todas as tardes, em frente ao Paço Imperial, a pipoca das dezoito horas, as vendas de ambulantes passatempo de quem pega a barca, vem com um tempero de poesia, lida ou cantada, dependendo da ocasião. Há quem diga que até os pombos da praça param para ouvir. A cesta de vime continua no muro e mesmo quando não há público, a vendedora continua lá, todos os dias, oferecendo seus versos. Pela primeira vez, em muito tempo se sentia livre.

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