segunda-feira, 11 de março de 2019
A máquina
Era uma máquina velha, marca Singer, daquelas grandes, de madeira escura, com pedal de ferro negro. Subiu pelo elevador e foi depositada no meio da casa. A mulher chegou, contemplou o objeto por alguns instantes e sentou-se no chão da sala, sem saber o que fazer. Duas da manhã e se coragem de dormir, ela fez um chá e então, na volta para o quarto, se deparou com a máquina, ocupando metade da sala de estar. Aproximou-se devagar, quase respeitosamente. A cada passo ia se sentindo mais jovem, como se os anos fossem, passo a passo, fugindo pela ponta dos pés. Quando se sentou no chão era quase uma menina, vendo o pedal da máquina trabalhar incessantemente. Vez em quando ela pedia:
- Vó, me deixa pregar um botão?
A vó deixava.
-Vó, me deixa usar a tesoura de picotar?
A vó deixava. Ia deixando tudo, no tempo certo das coisas. Enquanto isso, no intervalo do almoço e do jantar, a vó cosia e cortava tecidos e pregava botões, sem esquecer dos suspiros da tarde e o pão do lanche, comprados na padaria da rua de cima. Todos os dias. Aos domingos, depois do almoço, banho tomado, a menina sentava no muro de pedra e esperava o bonde, que sempre atrasava. Eram duas horas, até a composição amarela atravessar a rua Araão Reis e os passageiros saltarem. No balanço do trilho, o bonde atravessava os arcos da Lapa, sacolejando até o Largo da Carioca. A avó ia do lado, contando causos, falando das ruas e das pessoas que passavam. Falava muito dela também, da infância no Lins de Vasconcelos, assim mesmo, com nome e sobrenome, como ela chamava o bairro onde tinha morado. Também falava do cinema, passatempo de sábado, que frequentava ainda menina. Na voz da avó a menina ouvia falar do Cine América, do Olinda, de velhas salas de projeção na Avenida Saens Pena, onde o cotidiano virava romance, suspense, terror, dependendo daquilo que estivesse em cartaz. Para a menina, as histórias contadas no balanço do bonde eram o melhor filme, desenrolando-se diariamente diante dos olhos dela, como a linha dos longos carreteis presos ao tubo da velha máquina de costurar. Nos pés firmemente plantados no chão, sempre manejando o pedal, a vó ia cosendo a vida de toda a família. E da menina, que se tornou mulher e se tornou mãe, as mãos presas ao pulso cada vez mais frágil da avó, que ganhava uma dobra, uma ruga a mais, a cada ano que passava. As histórias se repetiam, os pontos ficavam mais largos, a tesoura custava a cortar os tecidos. Um dia, no manejo do pedal, no girar da roldana, a linha partiu e a máquina silenciou. Ficaram no peito da mulher o som contínuo da costura, os fios coloridos sobrando na gaveta e a tesoura de picotar enferrujada.de repente, não restava nada, só a velha máquina de costura, com um fragmento concreto de memória diante dos olhos.
A mulher ergueu-se, deslizou as mãos pela superfície carcomida de madeira, nas gavetas remanescentes. Experimentou a roldana, não soube manejar. Nunca chegara a pedir que a avó a ensinasse a costurar, como se acreditasse que ela sempre estaria ali, para coser as meias dos primeiros erros, para abrir casas onde não houvesse saída, para prender um a um os retalhos da sua história.
A máquina persistiu, no meio da sala, em silêncio, para acabar de envelhecer junto à mulher, que a cada dia parecia mais cansada e mais triste. Mas os retalhos e linhas permanecem ocultos, aguardando outros olhos e mãos curiosas para aprender a fiar mais um pouco de histórias, na poesia dos dias.
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