quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Suddenly

De repente não havia mais quarto, as paredes escuras afastadas como mágica, no meio da noite. Da luz azulada do monitor, que dava contornos frios aos móveis, emanava uma espécie de brilho difuso, permeando cada superfície de uma textura única. De repente, cada acorde da música que insistia em tocar, se estendia em uma pausa infinita. Nas mãos o telefone, perdido entre os dedos, enquanto os olhos, fechados, absorviam cada segundo. Uma palavra. Seu nome. E o tempo já não era mais o mesmo. De repente, ao ouvir a voz que chamava, era como se descobrisse que era sua a espera também. Enquanto isso, as tintas descascadas, os quadros dispostos na parede, adquiriam um tom de azul peculiar. Era a luz da lua que entrava no quarto. E era como se cada parafuso, cada pedaço de metal das esquadrias, vibrasse, assim como ela .Chegou à janela. Nos prédios à frente, as luzes da tv coloriam a paisagem de pontos luminosos. Rostos, paisagens, instantaneamente misturados ao asfalto da rua.De repente sentiu-se parte de uma grande tela onde as tintas mesclavam-se em matizes distintas de luz e sombra, escrevendo fragmentos de tempo e espaço em tons de amarelo e azul. Sentia que mergulhava em um oceano profundo de sensações, como um banho morno depois da chuva, tirando da pele todo resquício de cotidiano ainda existente. Sentiu como se fosse parte de um grande musical, onde os elementos de cena, a um toque do diretor, começassem a funcionar, em um cadenciado balé de rostos e mãos. De repente via a rua como um grande palco iluminado pela luz da luz. E o peito se enchia de encantamento, como se assistisse a um filme. As pessoas sentadas no bar, o instante do brinde, os risos e as mãos e copos erguidos... A bicicleta cruzando a esquina, com dois grandes embrulhos amarrados. O letreiro da farmácia de frente. A senhora voltando para casa, com uma pequena bolsa de mão, o casaco fino e o olhar cansado. Até mesmo o velho, que se demorava na escada da padaria, contando dinheiro, enquanto alimentava seu cão. A um só tempo todos os personagens adquiriam uma cadência única e ritmada e seus gestos pareciam fluir em uníssono, com uma grande orquestra. Enquanto isso, o cachorro se desprendeu de seu dono, atravessou a rua, desviando do ônibus, apavorando os passantes, subindo na mesa e abocanhando os restos da refeição do jornaleiro, sentado na última mesa do bar. Ali, da janela, não pode conter as lágrimas, quando o velho senhor, correu a buscar o cachorro e acabou parando para tomar uma cerveja com seu novo amigo, recém conhecido. De repente, os dois velhos sentados e o cachorro, e o encontro e o afeto só eram possíveis porque ali, na escuridão do seu quarto alguém, a 3000 quilômetros de distância, telefonara pela primeira vez para ela e chamara seu nome. Aquela voz, pela primeira vez ouvida e mil vezes reconhecida, na pele, nos ossos e na memória, atravessara o tempo do não, quebrara as paredes da dúvida e estendera as mãos. Buscara ela. Somente ela. No intervalo do medo, ao antecipar-se à dor, invadira cada espaço seu. E ela já não se reconhecia mais ou ao mundo ao seu redor, como se tudo de recente ocupasse exatamente o lugar que deveria. Como se a luz e as cores e as formas sempre devessem estar ali, compondo imagens e sugerindo poemas, oferecendo histórias e tramas e antevendo trilhas sonoras possíveis, absolutamente outros porque ela certamente era e eternamente seria absolutamente outra a partir de então. O telefone nas mãos não esperava mais a resposta. A confirmação do nome. O sim já fora dado. Em instantes o silêncio invadira a vida, rompera o relógio, oferecia outra geografia e a única circunstância concreta de todo o encontro era o sorriso silencioso que restava nos rostos, de cada lado da linha telefônica. Que importava se não havia corpo, se não havia rosto, se a matemática e o calendário eram outros? Em cada lado do peito, de repente, o silêncio era a única resposta possível.
Trilha sonora para o texto https://www.youtube.com/watch?v=2BOjtM7iqzA

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