terça-feira, 15 de agosto de 2017

A metáfora do trem ou a metáfora do cinema

No cinema, como na vida, o movimento é o que nos conduz além, às vezes em afeto e encantamento, outras em dor e angústia. Se, por um lado, as paisagens que passam diante de nossos olhos convidam a descer em cada estação, lá no fundo, permanece a vontade de permanecer no vagão ainda mais um pouco e descobrir de que forma mesmo esse filme (ou essa viagem) vai terminar...Não é que não saibamos para onde ir. Sabemos, quase sempre. Se alguém nos perguntar diremos, sem pestanejar, todos os nossos objetivos. Diante do nosso interlocutor, palavras sólidas como trabalho, sucesso, relacionamentos, desfilarão, inúmeras, demonstrando nossa total materialidade e apego às metas que tão laboriosamente traçamos para nós. No fundo, porém, a cada palavra dita, sobrevém o pânico. Afinal de contas, o que quer dizer isso?Sucesso?Felicidade?Amor?Significa que, uma vez parado na estação correta, deixarei de observar o movimento constante das pessoas que vão e vem, de me sentir tentando a virar meu rosto diante do mais ínfimo ruído e, ao ver o trem passar, não me sentir tentado a embarcar tambem?Diante da impossível resposta, ao menos entre nós, os vivos, seguimos em frente, escolhemos uma parada ( por vezes provisória)e tocamos a vida, mais ou menos como planejamos. Vez por outra, em um intervalo das horas, enquanto coamos o café o lemos o jornal, ouvimos longe o som do apito do trem...O susto é tal que abala profundamente nossas certezas. Onde estava esse trem até agora, que nunca o tínhamos ouvido? O apito chama, convida ao movimento, exerce sobre nossas pernas a mais tentadora atração...Mas é o café, o jornal, a vida? A partir desse momento, onde abrirmos a porta, ficará tudo como está. Sem olhar para trás, seguiremos em frente, em busca da estação, sem malas, sem casaco, sem guarda-chuva. Nas mãos apenas nossos sonhos e a vontade de embarcar. Enquanto pomos nosso pé no estribo, muitos serão os que nos chamarão de volta, temerosos de nossas decisões, saudosos de nossa presença...De nada adiantará...em silêncio sopraremos um beijo, viraremos de costas e tomaremos nosso lugar. Caminhando sobre a cabine ferroviária, o peso das nossas decisões fará ranger o assoalho, tremerá sob nossos pés. O rosto na janela, o vento frio, temos diante de nossos olhos a paisagem que escolhemos. E então estamos sós. Começa nesse momento o filme que escolhemos ver, ou dele participar. Em cada curva, em cada pedra do chão, lembraremos sempre do momento em que embarcamos no trem...Em muitas estacoes, as mãos suadas de angústia, o rosto molhado de lágrimas, sangraremos em dor e dúvida, tentando entender por que afinal não descemos antes, outras, nos penitenciaremos por nunca termos voltado atrás. Enquanto refletimos as paisagens, na janela, não cansam de passar, enquadrando sempre uma outra história, dentre tantas possíveis.. Infeliz daquele que, ao sentir o chamado do trem, por medo ou cansaço, não consegue se mover...em silêncio vai até a estação todas as tardes, senta-se no banco antigo, de pedra carcomida pelo tempo e, por horas, assiste ao movimento de pessoas e coisas, até o completo carregamento da mala. Com uma profunda dor, que atravessa o peito, acompanha cada subida no vagão com dores lancinantes no peito. Mas não se move jamais. O apito final do trem entra-lhe pelos ossos. Cerra os dentes de desespero. Mas não se move. Os olhos, entretanto acompanham o seguir do trem até sumir na curva da estrada. Então ele se levanta, toma seu guarda-chuva e segue seu passo, miudamente, até encontrar de novo o caminho de casa. Em seus sonhos, contudo, o movimento do trem não cessará jamais. Cenas, cortes, sons, falas, preencherão cada segundo de sono, fazendo tremer o corpo e escorrer lágrimas dos olhos. Ao acordar, o rosto banhado em suor, pensará que foi a febre noturna e então não pensará mais nisso. Entretanto, todos os dias irá ao mesmo velho cinema, da mesma praça da cidade, na mesma sessão vazia, onde verá sempre o mesmo filme, buscando sempre a mesma cena, que nunca esteve (nem poderia estar) na película exibida diariamente. A profusão de sons e cores está dentro dele mesmo, em uma intensidade só alcançada quando o mecanismo das pequenas certezas se suaviza durante o sonho…É ali onde suas mãos corajosamente tomam o estribo e o rosto recebe o toque frio do vento …Em vão continuará, vida afora, a entrar na mesma sala, do mesmo filme e a procurar enquanto o trem, lá na estação, anuncia, inadvertidamente, o apito final.

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