domingo, 23 de julho de 2017

Santa Teresa

Minha memória não abarca números de ruas, placas,cpfs,CEPS. Com frequência, esqueço nomes, rostos,o título de um filme cuja história me marcou.Vez por outra, as historias se fundem, se mesclam, o epílogo de uma enveredando no clímax alheio. Misturo nomes, invento tramas, me esqueço dos finais. O que não esqueço é o cheiro das ruas,úmidas de chuva, quando o sol da tarde insiste em sair.O aroma de doce mexido no tacho, enquanto alguém aviva o velho fogão de lenha.O barulho seco da ferraria, vizinha à casa da minha avó, logo depois do almoço.Eu nunca cheguei a entender porque as tardes de Santa Teresa eram tão silenciosas, depois do alvoroço do almoço. Pratos, talheres, panelas,tudo parecia convergir nas casas, enquanto eu deitava o meu rosto na pedra fria que separava os quartos da varanda.Me parecia que pulsava como coisa viva, um pedaço de mundo ali no chão.No meio da pedra tinha uma rachadura e eu me lembro de percorrê-la com os dedos todos os dias,tentando adivinhar o momento da ruptura. Também eu rompera um dia, enquanto esperava ser criança para sempre e esperar da vida apenas a hora certa de buscar os suspiros para o lanche da tarde.Um dia alguém mediu meu tamanho e me classificou.A partir daquele momento nada mais de momentos vazios à espera do silêncio da tarde e de perder os meus dias descobrindo o mundo.Agora, era tratar de vivê-lo. No dia em que ouvi a sentença, me ergui de súbito. Corri ao espelho do grande armário da minha avó.Abri a porta, que rangeu.Estava tudo lá.A marca de ferrugem da moldura, as pequenas rachaduras da bora e até os santinhos presos à madeira velha do móvel. “E eu?”.Já não estava mais lá.Do pouco que ficava enquanto me buscava no espelho,os olhos já não tinham mais prazer na contemplação.Só medo. Ao redor, estava tudo como antes.O cheiro do refogado, o barulho dos talheres,a conversa cotidiana das minhas tias e o cheiro frio da pedra no rosto.Qual tinha sido a ruptura afinal?Talvez o olhar externo, intermediado pelos ponteiros do relógio.Mas eu?Continuava ali,no mesmo lugar,esperando a hora certa de subir a rua atrás dos suspiros, que nunca mais estariam no mesmo lugar.

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