quarta-feira, 10 de junho de 2015

Breno

Pense num publicitário cujo job do dia consistia na criação de uma campanha para divulgar em amplas mídias o lançamento da nova coleção da marca de tênis XYZ. Durante toda a semana foram realizadas diversas reuniões exaustivas e hoje, com o material impresso e os veículos escolhidos, o publicitário se sente feliz por ter feito um bom trabalho. Próximo dele, o vendedor de sapatos volta hoje para casa com as costas e pernas cansadas de andar para cima e para baixo na loja, carregando caixas e caixas de tênis. Principalmente depois da divulgação da nova campanha da marca XYZ, ficou difícil ter um momento de descanso, quando clientes adentram constantemente à loja, munidos de seus cartões e muita vontade de levar para casa o novo tênis da XYZ. Com isso, apesar de toda correria, o vendedor se sente bem ao sair do trabalho, consciente de que fez o seu trabalho o melhor possível e, talvez no fim do mês, consiga ele também levar para casa um par de tênis XYZ. Um dos clientes mais costumeiros do vendedor é um estudante de engenharia de produção, cuja semana foi totalmente preenchida com um projeto que visa reduzir o desperdício de tempo nas linhas de produção de empresas de tênis, visando aperfeiçoar custos humanos e de materiais. Após uma serie de cálculos, o grupo de estudos conseguiu reduzir os postos de trabalho em 35% e o tempo de produção em 45%,um feito! Por essa razão, o estudante se sente feliz e pensa passar no shopping para comprar dois pares de tênis, para ele e para o irmão, porque os dois adoraram a última campanha da XYZ e todos os amigos já compraram o seu. Consciente de que fez um bom trabalho, o estudante vai até a loja adquirir seu par. Assim como esses profissionais, muitas outras pessoas, no exercício pleno de suas funções, fizeram um bom trabalho para que a campanha de tênis da marca XYZ utilizasse amplamente os veículos de mídia e atingisse grande parte da população, novos e velhos, pobres e ricos, mulheres, homens e crianças. Entre eles está Breno, um menino de seus oito anos, cuja tarefa neste dia era ficar sentado, na porta de uma grande pizzaria do shopping, munido de um copo vazio de mate cheio de moedas, as quais ele conta e reconta repetidamente. Apesar da barriga vazia, o que Breno deseja não é um prato de comida. Longe disso. O que o menino quer é um tênis XYZ. Por essa razão ele empilha uma a uma moedas no chão, contando-as para ver se consegue chegar ao valor do produto desejado. Quem passa por ele dificilmente o enxerga, tão pequeno é. Alguns, poucos, param para conversar e saber por que afinal um garoto tão pequeno está no meio da rua a essa hora. Talvez mesmo o publicitário, o vendedor e o estudante tenham-no visto, no seu caminho de ida ou volta da loja. Também Breno viu a campanha da marca XYZ e tais foram os efeitos da mensagem em sua cabeça que esqueceu a fome, esqueceu o valor do produto,esqueceu que provavelmente o segurança do shopping vai rapidamente convidá-lo a se retirar assim que o vir e que o vendedor talvez não o deixe entrar na loja mesmo que ele tenha conseguido acumular em moedas o espantoso valor do tênis. Se Breno estivesse portando uma faca, entretanto, muita gente passaria a vê-lo, com medo e raiva, pedindo que fosse preso, clamando por uma punição mesmo que o crime não tenha sido cometido. Afinal, qual é o trabalho de Breno, qual sua função numa sociedade pautada no quanto se pode consumir?Sua função é desejar, é sonhar com o que vê e acreditar que em algum momento vai conseguir materializar seu sonho através do seu trabalho. E quanto a nós, o que podemos fazer a não ser não enxergá-lo, não perguntar o que faz na rua, nem sequer perguntar seu nome ou então,quando o fazemos,cheios de culpa e lágrimas nos olhos, esvaziamos os bolsos em busca de todo dinheiro possível, como se aquelas poucas notas pudessem minimizar o fato de que Breno, para muitos de nós, não existe, em suas ações e desejos?Não enxergamos seus olhos perscrutando as vitrines coloridas, não observamos suas mãos contando suas moedas, não sentimos seu medo de que alguém venha e roube o que já adquiriu, ou que o machuque e expulse dali. Pensamos apenas em nossos trabalhos,em nossas certezas,em nossas próprias dificuldades..Meninos como Breno há aos milhares em qualquer esquina,assim como publicitários,estudantes, vendedores e muitos outros profissionais, cada um com sua trajetória,desejos e dificuldades. O que torna Breno tão próximo dos personagens anteriormente descritos é que ele também deseja comprar o par de XYZ através do seu trabalho. O que o torna único é que ele tem apenas oito anos.Qual é o peso que podemos dar a alguém que deseja o que não pode ter?Qual a escolha fará Breno quando for maior e não despertar mais a piedade alheia, mas o medo e continuar desejando o que não pode ter?Ou pior, qual escolha faremos por ele?Além disso, a principal pergunta, a que martela em todo aquele que se permite ver uma cena como essa é: qual a parcela de responsabilidade que temos nesse fato e o que fazemos para mudá-lo?Essa infelizmente é uma pergunta sem resposta. Enquanto isso, no tempo que demoro escrevendo, eu também profissional, jornalista, consciente de que faço o meu trabalho tornando pública essa história, Breno já saiu de onde estava. Caminhou para casa,para a loja,não posso precisar. Sua imagem, entretanto, empilhando suas moedas no chão movimentado de um shopping Center, vai me acompanhar para sempre. Isso não muda a vida dele,infelizmente,mas talvez possa,de alguma maneira,mudar a nossa.

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