Era um menino que sonhava em descobrir o mundo.
As pequenas experiências da infância não cabiam em sua curiosidade.
Passava os dias experimentando as cores e texturas daquele pequeno quintal onde o tempo corria lentamente.
Pela manhã já era a mãe descendo as escadas, as trouxas de roupa para lavar no tanque de pedra.
As tias, lá em cima, ensaiavam uma discussão, enquanto o irmão menor, no espanto de aprender a andar, enlouquecia toda a família ao caminhar em passos largos pelo piso de madeira.
Entre as tábuas, era possível ver os quartos de baixo, território fechado às crianças.
Lá dentro moravam as ferramentas do vizinho mecânico e a curiosidade de todos os pequenos.
Vez em quando, em expedição, juntavam-se cinco ou seis meninos,
atravessando o quintal e pisando na terra molhada dos bambuzais,
ou apostando corrida por entre os galhos da mangueira onde se dependurava o balanço,entre idas e vindas.
Súbito um talo de cana atravessa o pé do irmão menor, que já acompanhava o menino, apesar de seus protestos.
Num repente, segurou na mão do irmão caçula e puxou o talo fino, por entre o espanto dos meninos. O sangue e a dor não o limitavam.
A dor maior era o silêncio, quando havia o jantar da família.
Eram sete, o pai, a mãe, duas tias, a avó e o irmão menor.
E o menino queria falar, mas não era costume de se deixar ouvir voz de criança em mesa de jantar.
Criança era feita para mão no garfo e boca calada, um tapa fazendo-se necessário quando uma ou outra palavra escapava da boca sem controle..
Gostava de andar, de conhecer pessoas, de encontrar o pai na descida do bonde
e recolher as sobras da venda de sanduíches com a qual se equilibrava o orçamento familiar.
Melhor era quando sobrava o de omelete, feito no capricho, segundo as instruções do pai e os cuidados da mãe.
O menino se regalava com a meia bisnaga, na curva da ladeira, quase chegando em casa.
Tão bom quanto assistir à televisão em casa dos amigos ou passar as férias em Jacarepaguá.
Ali, no enleio das brincadeiras, era como se o tempo desse uma folga no exercício diário de durar e espichasse os dias para as bicicletas e as corridas. Coisa boa essa de saber-se eterno, como todo menino deveria se sentir..
Mas foi assim, numa distração, que o tempo esquecer-se de parar.
O tempo passou e vieram as dores, muitas e as espinhas, terríveis.
O menino já não tinha mais a certeza de ser eterno, Só queria era ser invisível,
para não mostrar ao mundo o que a puberdade fizera ao seu rosto.
As tias aprenderam simpatias.
A mãe procurou o médico, o menino parecia não ter mais paz.
Era o peso da idade por sobre seus ombros e não havia remédio que livrasse do suplício obrigatório do crescimento.
O tempo tornou a correr e o menino passou a acreditar que era realmente invisível e que ninguém poderia enxergar suas espinhas e foi cuidar da vida.
Estudou, começou a trabalhar, levou bomba no vestibular e conseguiu, depois de quase um ano, o privilégio de se tornar mais um careca na faculdade nacional de medicina..
E foi ali, na descida da escada, que o menino, que agora já era um homem, a viu pela primeira vez.
Era bela e tinha os olhos mais bonitos que ele já tinha visto e não, ela não achava que ele era invisível.
Casaram-se e foram moram em Santa Teresa, onde o bondinho passava em horários certos e o tapete do banheiro erguia-se, assombrosamente, ao menor sinal de vento no Largo do Curvelo.
Num descuidar do casal, passaram-se dois anos e o menino virou pai.
Nem bem começava a se acostumar em ser visível e já havia um muito pequeno bebê em seus braços, para ser cuidado, alimentado e limpo, sob a constante supervisão da mãe.
Para o pai sobravam as horas distraídas, quando o bebê dormia e o pai recostava a cabeça na cama, de leve, como que para não fechar os olhos.
Em segundos, dormia a sono solto, sendo necessário chamar, às sacudidelas.
Houve um dia em que a cadeira virou com bebê dentro e quase pararam, pai e cadeira, porta afora, ante a bronca que levou da mãe.
De tão assustado não percebeu que o bebê virou menina, dessas que gostam que se contem histórias. E ela perturbava, pai e mãe, na tarefa diária de entreter cabeça de criança que gosta de imaginar..
Restava ao pai a constante tarefa de contar história e abrir a janela do quarto para a entrada do pássaro azul, do cazuza e do sítio do pica-pau amarelo, personificados na contação de histórias feita na beira da cama cor de rosa.
Coisa difícil essa de ser pai de menina que sonha com laço de fita, isso o pai não havia visto ainda e havia coisas que ele não lhe podia dar.
Mas deu-lhe histórias, para ela aprender a sonhar, e imaginação para construir suas próprias.
E deu-lhe caráter, para saber-se igual e ainda assim respeitar o diferente e uma personalidade, que chega de manso onde quer que vá e um frouxo de riso que não há quem segure quando a piada é boa..
E então o tempo mais uma vez passou.
A menina cresceu e muito antes de se tornar mulher, ela virou mãe.
Era um susto e dessas dores que são impossíveis de se impedir de viver.
Mas o pai estava lá e ele deu colo, logo agora quando ela precisava urgentemente aprender a tarefa de dar colo a alguém.
E a menina que virou mãe, logo logo aprendeu a ser adulta e a segurar pelas mãos a outra menina que a chamava de mãe.
E eles, seu pai e sua mãe, continuavam lá.
Foram tempos difíceis, de dores e separações.
Mas o abraço forte do pai e a segurança constante da mãe estavam ali.
Mesmo que fosse para dizer que não havia mesmo nada para ser feito e o tempo, sempre ele, se encarregaria de cuidar do resto..
E ele cuidou, seja nas tardes ensolaradas de passeios, jardins e teatro, ou nos domingos silenciosos em que as dores voltam, sem pedir licença.
Havia sempre um saquinho de pipocas a comprar e muita arte pra conter as incertezas e trazer de volta o sonho, em exposições e cinema, tantos quanto foi possível caber em cada fim de semana..
E um dia, a menina que virou mãe e virou mulher e nunca deixou de ser filha, abriu a janela e percebeu que o pai tinha feito 62 anos.
Ela queria poder colocar numa caixa, dessas que tem laço de fita em cima, tudo que ele lhe dera, mas o tamanho era proibitivo.
Queria lhe mostrar o tanto que aprendera e a compreensão profunda que tinha por ele,
mas quem é que sabe onde encontrar as palavras pra dizer a alguém que é insubstituível e que se possível, não se vá embora nunca, fechando a porta ao tempo?
O essencial não pode mesmo ser traduzido em papel.
Então ela chegou um dia, de repente, enquanto ele dormia na sala,
simplesmente plantou um beijo no alto de sua cabeça e disse, para que só ele e ela pudessem ouvir: obrigada.
De olhos fechados, ainda meio adormecido, o pai entendeu e subitamente sorriu.
Ambos haviam vencido o tempo,fazendo-se eternos.
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