sábado, 7 de novembro de 2020
Sobre tornar-se cisne
Sobre a lenda do cisne, eternamente preso ao reflexo dos olhos alheios... Metáfora de um feminino que também leva tempo para nascer e que renasce continuamente mulher, a cada nova vida que se impõe a nós,em luta,encantamento e liberdade. Primeiro há que romper a bolha dos silêncios com os quais se recebe uma jovem mulher que nasce. Porque há que se proteger, dos perigos do mundo, guardar este corpo, tão defeso ao ataque, tão sujeito a agressões..Necessário instruí-lo, sujeitá-lo a toda sorte de regras. Preservação, silêncio,decoro, singeleza. A toda mulher que nasce é dado um peso de existir em dores, de ser e saber-se fonte ancestral de pecado, objeto de disputa, fruto de desejos que se firmam na violência inesgotável do outro, a saber, masculino. Mulher que cresce,pernas que espicham, braços querendo alcançar o infinito?Voar, não!Pode ser perigoso demais, vai que se machuca, pode ser violada, um corpo feminino em crescimento,nada pode ser mais terrível, do que oferecer-se assim inteira, ousando ser livre. Porque cabe às meninas a espera do olhar alheio,espelho que as oriente diante do que devem ser. Também me coube um lugar, como muitas iguais a mim, de ser e estar.Corpo atravessado por regras, recomendações de recato, de que me protegesse e guardasse.No corpo,nos olhos, o desejo de voar, de ser cisne, branco e esvoaçante,atravessando o palco iluminado no primeiro balé que assisti. Ali Odette,a primeira bailarina que eu via equilibrar-se em pontas, era então escolhida,o cisne mais belo, diante de tantas, para ser enfeticiada, cristalizada na etérea imagem de um cisne negro,condenando a exibir-se todas as noites no lago do reino do principe Siegfried. Presa aos desígnios de um mago, entregue à adoração de um príncipe, não foi dada a Odette a chance de voar, exercitar suas asas, romper o lugar para o qual fora destinada, condenada a ser reflexo dos olhos alheios, eternamente prisioneira . Assim, diante da minha embasbacada expressão de menina sonhadora de 11 anos, Odette era mantida prisioneira de posse e desejos masculinos, a título de adoração. O espetáculo adentrou minha alma e meus pés sonhavam com o voo de Odette, sem ter entendido que ao voar para a liberdade, o cisne também oferece-se em sacrifício, morrendo diante dos olhos da plateia, pobre lugar desse feminino eternamente desejante, objeto de adoração e medo, preso a amarras , condenado a ser e estar onde apontarem os olhos alheios. Poderia Odette salvar-se do destino cruel, ousando acreditar na sua propria trajetoria , reconhecendo-se como o cisne que era, seja branco ou negro, igulamente luz e sombra e assim, romper o castigo imposto e finalmente voar? Que posse tão terrivelmente destrutiva seria essa de um masculino atroz, capaz de prender e torturar um cisne, sem jamais apreciar-lhe a beleza, contentando-se em condenar-lhe ao mesmo lugar de espera e medo, silêncio e imobilidade apenas para ter-lhe ali,ao alcance dos olhos,preso à incerteza de ser? E porque não ousar ser,sem medida ou limite, tudo aquilo que suas asas permitiram alcançar? E por que não negar esse lugar de espera,de limitação e dor, eternamente para os olhos alheios, a posse e a pequenez? Pois que é do feminino a expansão eterna, de si para o mundo, ao conhecer sua própria potência e liberdade, desse corpo que não pode prescindir de aprofundar-se em sensível e movimento, amor e entrega, mas igualmente criação e sabedoria? quantos seriam capazes de alcançar seu voo? quais seriam as vozes que se ergueram para encorajá-lo? Pois qual seria a natureza dos cisnes senão voar, diante do mundo, sobre um palco, na irremediável tarefa de ser mulher? Corpo que cria, vida que renasce em ventre e ancestralidade, olhos que sonham o mundo? Porque é do amor compreender que asas são feitas para voar e é da vida compreender que os voos são ainda mais belos quando feitos de par em par. Pois então, Odete,ousa enfrentar o covarde feiticeiro, prisioneiro de seus próprios medos e de tua prisão interna. Estende tuas asas e seja cisne, rodopiando em direção a si mesma, em tuas infinitas narrativas de poesia, arte e afeto.pois que seja da visa o exercício de renascer em sangue e lágrimas, nas mãos de tantos outros cisnes que te protegeram e guardam. Desses úteros que se postam diante de teu sono,enquanto esperar o tempo certo das coisas. ainda há medo em teus ossos, ainda há dor na tua alma,e alavanca teu próprio sonho, rompe as amarras de dor que ainda prende teus passos e segue sempre em direção ao sol. e voa.
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