quinta-feira, 3 de setembro de 2020
Do encontro de Oxum e Saturno
Das Terras do sem fim, dos mares do Aiocá ainda hoje se conta do dia em que Oxum e Saturno se encontraram no céu. E toda a Terra tremeu diante do embate do Senhor do tempo e da rainha das águas que rasgam o solo, das profundezas. Foi Saturno primeiro que chegou e de repente o Universo atravessou-se de um silêncio profundo diante da figura imponente que ostentava um elmo de bronze e carregava nas mãos um escudo e uma lança, que cruzava diante do peito, em desafio. E em meio ás últimas horas de uma tarde azul, as nuvens começaram pouco a pouco se reunir, como se temessem a ira do poderoso Deus. E o vento fez-se frio enquanto na Terra os homens, sem saber do que se passava, corriam a recolher do mar os barcos, fechar as janelas, antevendo uma tempestade. Impávido, silencioso, Saturno aguardava o fim do dia para recolher-se em profunda meditação. Foi então que viu uma luz cortar o horizonte, e em instantes chegou Oxum, envolta em seu vestuário amarelo, dourada até a ponta dos dedos. E veio dançando, agitando as saias diante do vento, erguendo os braços, brandindo o espelho e girando suas pulseiras enquanto o sol punha reflexos radiantes em sua coroa e punhos. Sua imagem atravessou Saturno como a um raio, correndo o peito fechado de aço e provocando uma dor profunda. Sem ação, o Deus cambaleou para a frente, o que provocou o riso de Oxum.
Desafiado, temendo o ridículo, Saturno firmou os pés e ergueu o queixo, franzindo a fronte em profundo silêncio. Oxum não fez caso, sorriu de leve, ergueu seus braços, recomeçou a girar. No movimento das saias, o vento parou de ventar, e as águas dos rios silenciaram seu ruído, pondo-se a ouvir. Então Oxum cantou. Entre os homens um instante de silêncio se fez, na nascente das águas. E o correr do rio tornou-se forte e, atravessou as rochas que se cercavam as margens, rompeu o barro que sustentava o leito do rio, alcançou a estrada e levou uma chuva de pedras e lama até as casas dos homens. E prosseguiu, carregando o que encontrasse. Saturno observava, sem pronunciar palavra. Como era possível, sem que fosse preciso brandir uma espada, a água calma do leito dos rios atravessar a rocha e fazer a vida correr? Como se adivinhasse seu pensamento Oxum sorriu e então contou...
- Meu canto é de vida, que nasce no ventre, águas que correm para além do tempo dos homens. Eu danço o sangue das mulheres, a vida que nasce por entre o silêncio, o encontro que se dá entre Céu e Terra, enquanto os homens dormem, eu danço por entre sangue e lágrimas, no fundo do leito dos rios, nas águas que correm por entre as rochas da Terra, atravessando sim e não, noite e dia, luz e sombra, movendo ventos e enfrentando tempestade. Meu canto é de vida, da dor de ser atravessado pelo tempo do encontro, vida que se faz no toque dos corpos, instante que se dá no tempo de dizer sim. Minha dança bebe das águas da poesia dos homens, atravessa suas almas e planta no ventre das mulheres a semente da vida. Eu danço para celebrar o amor. E diante do amor, não há tempo que paralise a vida, quando as águas tem que correr. Dizendo isso, Oxum postou-se diante do Deus - que era ao menos três vezes o seu tamanho - e sorriu.
Saturno então contemplou a face de Oxum. Confuso, surpreendido, sentiu o peito abrir-se numa dor profunda e todos os seus ossos tremerem diante da certeza de que nada jamais seria como antes. E dos olhos por trás do elmo, sentiu vir da garganta um lamento dolo roso, preso há tempos dentro do peito. E então baixou as armas. Oxum, emocionada, tomou nas suas as mãos do guerreiro, que então sorriu. E fez-se um longo silêncio, entre Céu e Terra. E ninguém mais soube o que se passou entre os dois naquele intervalo. Nem mesmo as nuvens que resolveram, cúmplices, adiantar o pôr do sol. O que sabe é que naquele dia na aldeia dos homens os mares subiram, fora de costume e uma lua azulada rasgou os céus por todo o tempo da noite enquanto homens e mulheres dormiam. E nunca mais deixou-se de ouvir nas noites de lua cheia, um instante de silêncio enquanto o sol corta o horizonte um pouco antes da noite chegar.
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