quinta-feira, 18 de julho de 2019

Há um poeta na praça

Há um poeta na praça No viaduto do Maracanã,perto da praça Xavier de Brito, mora um sujeito que eu sempre quis ser.Um escritor, um poeta, com livros publicados, professor de literatura e filosofia. Perto dos carros que passam, das ruas eternamente engarrafadas da Tijuca, vive um homem que chegou ao único lugar em que almejei chegar um dia: ter meus textos impressos, ver minhas palavras escritas e lidas por pessoas e, quem sabe, encontrar a mim mesma em uma prateleira qualquer, escondida na livraria que frequento, em meio à fumaça do café e de tantas histórias que costumam atravessar os ambientes permeados por livros. Fico repassando continuamente a história, relendo tudo que foi publicado, tentando não pensar que, próximo ao Rio Maracanã, nesse úmido inverno carioca, há uma pessoa que não conheço e que, por depressão, descuido ou infelicidade perdeu o rumo das coisas certas, como costumamos chamar todos aqueles que conseguiram preencher a ficha de itens fundamentais no formulário da vida, esse mesmo que gostamos de exibir aos parentes e amigos, em uma conversa amena (ou, mais recentemente, nas redes sociais): me formei em engenharia, comprei um carro novo, visitei a Noruega pela terceira vez. Enquanto isso os desejos mais profundos e inclassificáveis continuam guardados para outra oportunidade, até conseguirmos alcançar aquilo que chamamos estabilidade - o que quer que signifique isso- e possamos chamar nossas paixões confortavelmente de hobby , lugar aceitável onde enquadramos tudo aquilo que nos faz viver mas, aparentemente, não tem função alguma. Também eu ousei preencher essa ficha, o formulário implacável de afazeres com que nos defendemos do mundo... Faculdade, cursos, certificações, competências, livros, livros, livros, etiquetas, diplomas. Palavras e mais palavras sem sentido preenchendo todas as horas do dia. Contudo, no fundo do quarto as palavras que eu realmente queria dizer ficaram na caixa do lado do armário, esperando o momento certo de sair.. Às vezes, por desespero ou descuido, um tropeço e pronto. Lá ia a caixa ao chão, espalhando a verdade para todo lado: eu simplesmente não queria preencher todos os itens do formulário. Tudo o que eu queria era contar histórias, botar no papel todos os dramas que me chegassem aos ouvidos. Um dia me disseram que havia profissões reconhecidas e respeitadas onde eu poderia exercer minha paixão. Professor. Jornalista. Revisor. Pesquisador. Caminhei então, os passos acelerados, o coração descompassado, para o confortável mundo das pequenas certezas. Me tornei jornalista e passei a buscar nas minhas palavras o tom certo para o sofrimento humano e aprendi, ao longo dos anos, a me equilibrar entre o espanto e o registro, de braços dados com a história. Mas ainda não era isso, eu sabia. No meio do espelho, em muitas madrugadas perdidas, a verdade inescapável: as palavras que me surgiam no meio do peito não cabiam na realidade. Iam muito longe dela...E, por vezes, em vez de relatar com objetividade e técnica um acidente, ou a disputa eleitoral, eu preferia descrever, em duas ou três páginas o ultimo pôr do sol que vi, uma mulher que passara por mim no metrô, o casal que se encontrou na esquina defronte, um gesto, uma palavra solta, um segredo, entreouvido por aí, no circular pela cidade, no intervalo de uma notícia. Era tudo que eu sabia ser...Escrever sentimentos, silêncios, pausas, cores escondidas entre os ponteiros do relógio...Um lugar nada confortável esse de sufocar com as palavras, de querer dizer e não encontrar formato ou espaço...Poucas pessoas querem ouvir, atualmente, sobre os tons de rosa que riscam o céu quando o sol se põe, ou do beija-flor que pousou na janela a noite passada, quase ninguém vê a mulher que dorme na praça, de turbante, no canto mais escondido do Aterro do Flamengo e já há poucos que possam perceber quando é outono e as ruas mudam de cor, ganhando um tom dourado...Todos tem pressa e propósito. Inclusive eu. Ao meu lado, no momento, sobram folhas, tarefas e livros, todos com destino e prazo de validade certos.. Mas há um silêncio dentro do peito que as palavras exatas não conseguem preencher e não há técnica ou formato que vá conter, quando tudo que se quer é que as mãos ajam, à revelia da vontade e preencham o papel com tudo que ficou por dizer. Enquanto isso os boletos acumulam, as pequenas obrigações cotidianas e a inevitável obrigação de sobreviver. E todos ou quase todos continuamos sobrevivendo mais ou menos desesperados, em graus maiores ou menores de sofrimento. Por isso a história do escritor que mora na rua me tocou. Porque ele sou eu, porque também permaneço à margem da minha própria vida, quando insisto em criar formatos e técnicas para algo que não pode ser enquadrado, palavras que talvez nunca vão caber em uma frase, preencher um texto e - suprema glória- serem publicadas e circularem por aí. No entanto, essa espera, essa esperança é tudo que sou e nada mais me resta do que deixar enfim que o fluxo de histórias finalmente tome conta das minhas mãos e olhos, se aproprie da minha existência e chegue até os dedos, preenchendo o espaço entre mim e o mundo. Não sei, infelizmente, a história do escritor. Depressão, dizem os especialistas. Dificuldades financeiras, prega a jornalista que o entrevistou. Desilusão amorosa, arriscam outros. Nesse mundo de muitos diagnósticos, sobram as definições. Enquanto muitos lamentam-no por sabê-lo mestre, eu sofro por entendê-lo poeta, ofício amaldiçoado, sem função ou justificativa, mas tão fundamental quanto inevitável. Eu sigo acreditando que um dia ele não coube dentro do espaço pré-determinado de existência que lhe cabia e escapou, resolveu encontrar um lugar onde pudesse enfim respirar. Queria poder encontrá-lo e dizer o quanto eu sinto, lhe oferecer um café, um abraço, um cigarro. Queria poder mudar esse estado de coisas que desloca as prioridades, refuta a poesia, sufoca as palavras e deixa ao abandono tudo que é subjetivo. Em tempos de ódio ao conhecimento e à criação, como falar de silêncios e cores sem parecer piegas, inútil, cafona, deslocado ou, muito pior, alienado? Melhor seria sucumbir à tristeza geral e calar-se. Mas ainda assim, por mais distante que se vá, não se pode sufocar por muito tempo as palavras que, ao menor descuido, saem sem pedir licença pela ponta dos dedos, em um maremoto difuso de sentidos, encontrando a primeira superfície disponível para existir. E a única coisa que podemos fazer nesse caso é segurar firme e tentar sobreviver, enquanto a tempestade nos atravessa. Então o que eu posso fazer é rezar para que o poeta, que permanece na praça, se mantenha seguro, que siga sendo amparado pela rede de apoio que o protege todos dias, que consiga sobreviver à tempestade e encontrar o caminho de volta... E que um dia possamos considerar um caso de saúde pública, uma calamidade nacional, quando um poeta não encontra lugar na sociedade em que vivemos. trilha sonora: https://www.youtube.com/watch?v=QpA7qPeP7q4 https://www.youtube.com/watch?v=sX7fd8uQles https://www.youtube.com/watch?v=RsVLIiI8Vfo

2 comentários:

Paulo Cruz disse...

...não poder ser o que se ama ser sufoca...lindo o texto e também me identifico...as vezes estar em um não lugar nos permite sermos o que não podemos ser...

Tatiane disse...

Exatamente....