quarta-feira, 22 de junho de 2011

No cinema como na vida

No cinema como na vida o tempo é grandeza que varia conforme mudam em sucessão contínua as imagens com as quais construímos nossa forma de estar no mundo. Se de início os quadros que se apresentavam no cinematógrafo dos irmãos Lumiére constituía por si só uma diversão, libertando a pintura e a fotografia da tarefa de postarem-se estáticos ante o olhar de quem o observava, o filme reproduzia ao alcance da mão a realidade em movimento
Mas antes que se pense que a lente capturou o real por excelência, convém lembrar que uma visão tem infinitos pontos, como um prisma que oferece a cada lado uma cor diferente, dependendo do ângulo que se quer olhar. Um filme é nada mais do que visão de alguém sobre algo, traduzido em palavras que buscam mobilizar toda uma equipe que vai produzir o que outro vai vender e outros tantos vão sonorizar, cortar, editar, polir, construindo uma mensagem que é deveras diferente daquilo que o primeiro pensou e também daquilo que se pôs no papel.
O cinema é construção e percepção coletiva. E nada mais suscetível à percepção do que potencializar todos os sentidos em visão e audição, canalizados em estado de inércia em uma câmara escura. Ao assistir um filme, entrega-se a alma à historia escolhida, todo universo de sentidos particular,todas nossas experiências, dores e alegrias tornam-se uma só percepção, na forma como vamos decodificar cada símbolo ou cor, traduzidos em luz e som.
Como uma trama de cores, o cineasta fia sua história quadro a quadro, determinando os retalhos que vão se apresentar ao público como construções imagéticas, penetrando como agulhas finíssimas em seu conjunto de significados ou somente tocando a superfície de suas emoções mais externas, dependendo da forma como o tecelão-cineasta vai compor a trama que quer contar.
Nos primeiros filmes, o simples efeito do movimento gerava êxtase na plateia, assustada ante a óbvia realidade que se descortinava ante seus olhos. Era o trem saindo da estação com os irmãos Lumiére e logo cada espectador tomava seu lugar no vagão. Era preciso andar depressa e levar a todos na viagem. E o povo, ávido por emoções, embarcou na aventura.




Mas logo os artistas da imagem em movimento perceberam o poder que tinham nas mãos. Podiam criam realidades, construir universos, subverter as leis da gravidade e muitas mais. E vieram os filmes fantásticos, de conteúdo surreal, trazendo seus monstros e situações bizarras, provocando desconforto e fazendo pensar. Ora, se o mundo andava de ponta cabeça na tela, por conseqüência deveria também estar na vida real. E quem se arriscava à viagem dos sentidos, levava pra casa uma nova percepção. Mas eram poucos os corajosos, pois a grande maioria queria navegar de olhos fechados, enxergando no cinema a fuga para a dura realidade que enfrentavam todos os dias.
E vieram os novos tecelãos, costurando sons aos signos de antes, dando sentido aos passos e gestos que tomavam lugar nas grandes cenas. Podíamos ouvir as palavras e também o silêncio das grandes guerras. Ficamos mudos. Mas era preciso resistir ao horror. E vieram aqueles fantásticos italianos com suas maravilhosas máquinas de mostrar o mundo, se distorcendo em encontros e desencontros nas aldeias de suas terras ou escarafunchando por dentro das casas para tentar capturar o tempo exato da vida, sem mistificação. Estava criada a nova realidade.
Mas a verdadeira bomba que não chegou a cair na Terra explodiu depois da segunda guerra, na incrível fábrica de emoções, criada para entreter milhões, em sensações e sustos ao bel prazer do público. Não havia limite para as histórias que poderia contar, mas o encantamento estava em viver as mais loucas aventuras dentro da sala escura e não conseguir se lembra de nada no dia seguinte. Afinal a sucessão de imagens nunca fora tão rápida, a música tão emocionante e os gestos tão nítidos. Finalmente encontrou-se a perfeição.
Em série os produtos saiam para todos os pais, um por outros embalados de forma a não parecerem os mesmos que dantes já haviam chegado por lá, para jubilo da plateia. Alguns protestaram, saíram de seus estúdios e, câmera na mão e idéias na cabeça, romperam o poderoso discurso fantástico. Foram poucos e falaram para poucos. Para entender sua mensagem era preciso um tempo que não era mais disponível. Era preciso sentir rápido, emocionar-se intensamente e logo respirar fundo e passar para mais uma emoção. Nada devia permanecer.
Mas quando o público já não conseguia mais enxergar a diferença entre os produtos e os olhos já não identificavam mais as imagens, somente som e sombra, veio a luz, num fragmento de sentido. Entre uma imagem e outra existia algo alem do êxtase ou do horror, existia a compreensão do universo mesmo que tinha por função o devaneio e o esquecimento. Fôramos criados na lógica daquele tempo, podíamos perceber suas costuras e remendos, podíamos entender suas mensagens e intenções. Nossos olhos e sentidos postavam-se então em alerta, prontos para receber a descarga de emoções, mas não nos deixar inebriarmo-nos pelo canto das sereias. Já sabíamos ver e enxergávamos no minúsculo tempo do intervalo e uma imagem, um discurso, uma intenção.
Erramos poucos, com certeza, mas já estávamos prontos a dialogar. Bastava dar ao tempo do filme a cadência exata de irrealidade que lhe cabia, o gesto contido nas margens da tela que era o limite mesmo de sua existência.
O filme não pode ser maior do que nós, ele não nos ultrapassa, nos convida a dialogar com ele. É preciso não se deixar levar pelo trem de olhos bem abertos para apreciar a paisagem, mas fechar os olhos para ouvir o ruído de cada uma de suas engrenagens e apreciar-lhe a beleza. E o que faz sentido, em harmonia com o conjunto de símbolos que chamamos existir, este é o verdadeiro tempo do cinema e o que lhe confere a técnica da arte que se propõe a representar. Não é além do homem, faz parte dele e se construiu de sua singular capacidade de significar. É tempo e arte, fragmento e todo, real e ilusão. Ao homem. pra ele e por ele. Essa é a verdadeira magia.

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