segunda-feira, 19 de agosto de 2019

Sobre máscaras

Quase tão fácil quanto morrer. Finalmente a verdade dita, vívida e dolorosa, aparente no corpo que latejava. Porque não se tratava não apenas de dizer, mas de viver a verdade na própria carne. Por isso a escolha, o desnudamento que as palavras exatas, que somente as palavras exatas podiam conferir. Finalmente recusara-se a participar do teatro das pequenas verdades, tão convenientes quanto supérfluas, necessárias (necessárias?) à convivência rasa entre adultos. Nos interstícios do cotidiano, contudo, meias verdades e intenções escondem todos os nãos ditos, as lágrimas não choradas, as mãos retorcidas em agonia e a espera por um instante de silêncio em que o sentido se revelasse como por encanto, mas não, não era suficiente a espera do encontro, era preciso agir, erguer-se em meio ao vozerio abafado, plantar-se no meio de um salão lotado de possibilidades, fechar os olhos e deixar que as palavras saíssem do meio do peito, como um corte profundo que sangra a vista de todos. E então, no silêncio que se ergue, diante da insuspeitada nudez do sentir, a suave constatação das mãos surpreendentemente vazias, e a pele exposta ao escrutínio alheio, à espera de uma resposta que, sabe-se, não virá.. Em silêncio sairá da sala, tentando não esbarrar nas mesas, tropeçar nas pernas, percorrendo o corredor e tomando a porta de saída, quase em fuga. E o que se ganhou – é a pergunta que grita, por entre os lábios cerrados. No fundo a resposta estava ali, no centro do espelho. Ganhaste a ti mesma. Na coragem de retirar suas próprias máscaras, tantos anos depois, tantas batalhas perdidas, jogar teus medos pelo chão e ir a uma a uma pontuando tuas fragilidades. Independente da resposta, não há mais nada entre tu e ti mesma. Finalmente. Teu corpo e tua alma te pertencem, não mais para preencher vazios alheios ou ocupar lugares pré-estabelecidos. Finalmente, ocupas o lugar dentro de si mesma, que o medo e a raiva sempre te impediram de ocupar. A mais transparente combinação entre poesia e intensidade, a mulher que sempre esperou para ser, um existir que não te faz presa, mas ao contrário, te libertam da ilusão de não escolha. Finalmente és livre.

sábado, 17 de agosto de 2019

Escrita

Há no processo da escrita qualquer coisa que por vezes me embriaga.Outras vezes me sufoca.uma circunstância de silêncio,um instante de cansaço, um nó na garganta.Porque,de há muito que compreendi a sentença de vida e morte que me impus: jamais repousar,jamais adormecer, estar sempre a um passo da dor mais sufocante e do desespero mais absoluto.E esta solidão,como coisa viva, em uma intimidade de amantes e essa necessidade de silêncio,esse desejo que me divide ao meio,essa embriaguez.E sempre,sobre todas as coisas,as palavras que me atravessam, que sinto apertarem a garganta,que me acordam pela madrugada e me sussurram coisas e me impedem de dormir.E o corpo se revira,na inquietude da cama.E a alma arrefece,no calar das vozes, que me gritam,que seguem meus passos noite adentro,em busca de um instante de paz.Mas será isso, definitivamente: os sussurros que queimam a pele,o silêncio que corta o peito, a dor sempre latente.E as folhas de papel, riscadas à caneta, preenchendo com fragmentos de desejo o vazio das horas.

sábado, 10 de agosto de 2019

Goiaba vermelha

Minha vó dizia que a melhor goiaba era a a vermelha.Das que faziam o melhor doce .Ela mesma ia escolher na feira,no freguês que cortava pedaços da fruta verde se abrindo em polpa vermelha, suculenta,pra senhora de olhar exigente e sorriso fácil provar."-Doce pros meus netos"...ela dizia,1kg ou mais de goiaba na sacola de listras.Doce bom, vermelho, forte,mexendo no fogo da panela de alumínio antiga de tampa vermelha, no fogão da cozinha de paredes de pedra,ainda em Santa Teresa....Na peneira,as sementes separavam da fruta,a casca virava doce,ia direto ao pote, os pedaços da casca caramelados,em meio às flores de cravo,"pra dar gosto",ela dizia..O que sobrava da operação virava geleia, das que se comia com biscoito no pote de tampa verde e que se tomava com café.Eu,que não tomava café,assistia os adultos rodearem o bule e as xícaras de vidro, que passara de geração em geração e hoje enfeitava a mesa dos domingos,no pós-almoço .Eu rezava também pelo milagre mais ou menos rotineiro da transformação da geleia de goiaba no rocambole.A massa enrolada em pano de prato umedecido e polvilhado de açúcar..Sempre me pareceu que em algum momento a massa ia se partir, mas ela sempre conseguia dar jeito de fazer dar certo, no tempo exato das coisas...Cabiam muitas coisas no girar da massa amarela, no mexer da colher de geleia,a fumaça subindo devagar pelo fogão,penetrando a casa..Cabia o afeto doce, profundo,do colo e das mãos,cada dia mais velhas, cozinhando e costurando aqui e ali as tramas da família.. Cabia o abraço das tardes da minha infância e a certeza de que,entre as páginas do meus livros, era só espichar o rosto e você estaria sempre ali.. E era só esperar mais um pouco pra ver as frutas em pedaços virarem geleia vermelha e translúcida, acumulando em potes sobre a mesa.Basta fechar os olhos e a sua imagem ainda está ali,no fogão,na mesa,na mesma toalha que eu te vi estender por toda a minha vida.. O cheiro de geleia, contudo,ficou entre as folhas do calendário e já faz um tempo que procuro e espero, nas panelas vazias,nos potes acumulados nas prateleiras,o momento em que você vai cruzar o corredor da cozinha e me dizer: -prova, minha filha, acabei de fazer....

domingo, 4 de agosto de 2019

A mulher do turbante vermelho

Na madrugada fria, entre os infinitos cinzas do inverno carioca, havia um único ponto de cor, por sobre a grama dos jardins do Aterro do flamengo. Bem na divisa, onde termina a zona sul e o centro da cidade, na praça coberta de folhas úmidas, amareladas pelo sol, um ponto vermelho, enrolado a um cobertor xadrez, ressonava, o movimento leve da respiração se tornando pouco a pouco mais lento, enquanto o sol nascia. Na esquina ao lado, a Kombi do jornal entregava os exemplares do dia e as primeiras bicicletas cortavam os trilhos do VLT. Foi justamente nesse momento quando, em um movimento brusco, o cobertor rolou ao chão, trazendo à luz do dia a mulher do turbante vermelho. Como conseguira dormir à noite toda com aquele artefato na cabeça, não era possível precisar. O fato é que, alheia aos movimentos da cidade que acordava, a mulher ergueu o corpo, esfregou os olhos e apreendeu o dia que se iniciava. Ato contínuo, levantou-se e dobrou o cobertor, jogando-o dentro de um velho carrinho de compras, amarrado ao banco e já lotado de outros pertences. Dali tirou uma caneca de folha, uma escova de dentes e um espelho pequeno, alaranjado, onde admirou o próprio rosto em um longo devaneio. No mesmo momento, o barulho do VLT chegando tirou-a da contemplação. Sem sentir, ergueu-se, observando o veículo avançar, com os primeiros passageiros do dia. Nunca cansara de observar cada rosto na janela, como uma forma de observar a si mesma. Os olhos voltados para lugar nenhum, ou presos à leitura do jornal, os ouvidos presos aos fones, ou a celulares cada vez maiores. Alguns rostos a encaravam também - mas que diabos era aquela mulher de turbante, com uma escova de dentes nas mãos, observando-os placidamente? Imóvel, ela parecia quase pertencer à paisagem, não fossem os olhos, que se moviam rapidamente, na intenção de capturar todos os detalhes e era quase como um filme que assistia, plano a plano, os personagens passando diante do seu rosto, cada um com seu drama particular. Subitamente, uma criança, ao colo da mãe, apontou:- mamãe, o que é isso? A mãe olhou a mulher de turbante que, envergonhada, retraiu-se, voltou as costas à janela. Esperou que o veículo passasse e foi até a padaria defronte, onde negociando, obteve um copo de plástico com agua e um café preto, dos de ontem. Usou o banheiro para escovar os dentes e, surpreendida pela garçonete, foi expulsa antes de poder terminar. Pão só tinha às segundas-feiras, quando a fornada de sábado sobrava. A mulher já sabia esperar o tempo certo das coisas e aguardar o que não podia mudar. O VLT, por exemplo. Antes dele podia dormir até mais tarde, aguardando somente o ruído da companhia de limpeza ou a presença de um ou outro agente de segurança. Tudo se movia mais depressa desde então. Passou diante da banca de jornais, assistindo à arrumação das revistas e jornais do dia. Parou diante da manchete, que alertava sobre os riscos do aumento do desemprego no pais. Refletiu sobre como era fácil falar sobre falta de emprego, estando empregado ou sobre a fome no mundo, diante de um prato de comida. Difícil era viver o desemprego e a fome todos os dias, enquanto se espera por uma oportunidade, uma estratégia, para chegar até o dia seguinte. Aí a dor na boca do estômago não virava texto, virava companheira constante. Cumprimentou o jornaleiro, que organizava as revistas na prateleira e perguntou dos fascículos de carros, sua antiga paixão. Todas as semanas admirava o modelo novo, exposto na banca e lia devagar, em êxtase, a descrição do modelo. O último publicado era um Chevy 1963 verde musgo, que ficou na banca por semanas, até ser finalmente arrematado por um rapaz jovem, de terno e gravata. A mulher acompanhou a negociação de longe, vendo o dinheiro ser passado entre os homens, observando o fascículo finalmente sendo retirado da banca e colocado na pasta de couro do moço, que seguiu seu caminho até o fórum. A mulher seguiu-o, à distância, enquanto atravessava as ruas, à tocaia. O que ela esperava, não saberia dizer. Talvez que ele voltasse atrás e oferece o fascículo recém-comprado. Mas nada disso aconteceu. Voltou para a praça em lágrimas. A partir daí passou a evitar as bancas, com medo de uma nova recaída. Até semana passada, quando descobriu um Lincoln 1950 azul cerúleo, no fascículo à venda. Uma vez vira um filme, já não sabia precisar onde nem como, em que a mulher ao volante percorria uma longa estrada perto do mar, o por do sol refletido nas lentes dos óculos, o lenço ao pescoço esvoaçando. Ela ia sozinha e a estrada parecia infinita. A mulher de turbante queria sentir a sensação do vento no rosto e da solidão da personagem e era quase como se a réplica azul guardasse em seu interior a experiência inusitada de uma estrada vazia a frente e todo o tempo do mundo. Ali na praça o tempo nunca estava nas suas mãos, mas era, ao contrário, fruto da ação de terceiros, de acontecimentos diversos que ela não conseguia controlar. Ainda assim, ela organizava, em meio ao caos, suas próprias tarefas e desejos. Estava ainda parada em frente à banca e o jornaleiro chamava-a, entregando os jornais da semana anterior, guardados para ela. Eles eram fogo, aquecimento, travesseiro e principalmente histórias, que degustava em meio ao café e, ocasionalmente o pão. Vez por outra a equipe de voluntárias da igreja de são Jose passava pela praça, oferecendo caramelos e cobertores, que ela dispensava. Uma única vez, uma das mais moças, deu-lhe um livro, que ela sorveu aos poucos, deixando que as palavras se derretessem aos poucos na memória e penetrassem sua carne. Um lápis vermelho marcava as palavras mais difíceis, que ela por vezes levava ao jornaleiro, para confirmar o significado que quase apreendia de todo. De resto, a mulher, porque era uma mulher que escrevera o livro, falava de aprendizagens e do dia a dia e do instante em que uma outra mulher, terceira nesse elo entre livro, leitor e autora, conhecera um cego, no caminho do bonde e teve a vida transformada pelo acontecimento. A laranja do cego, a paixão no corpo da mulher do bonde, eram tão reais que essa noite a mulher de turbante não conseguiu dormir. Ficou deitada no banco, olhando as cores do céu mudarem pouco a pouco, pensando no banal acontecimento de uma laranja mordida a tal ponto de afetar toda uma vida. E pensou na própria vida, tão intensamente que viu a si mesma ainda na porta do ônibus em direção ao Rio de Janeiro, fazia tantos anos. E voltou àquele instante presente, em que a única coisa que tinha estava dentro do carrinho de compras e no próprio peito. Mas curiosamente, pela primeira vez sentiu-se livre. Era um ponto vermelho em meio ao cinza, um corpo feminino que ousava fazer da rua seu lugar de existência. A intensidade dessa constatação trouxe lágrimas aos olhos. Buscou nos pertences a preciosa bolsinha amarela e de lá tirou o rímel e o batom vermelho. Gastou longos minutos na composição da maquiagem .Ao final, contemplou o próprio rosto por um longo tempo. Talvez hoje o segurança da Maison de France estivesse de bom humor e a deixasse penetrar a sala de cinema e assistir à exibição dos filmes de sexta à noite, escondida na sala de projeção. Ali acompanhara histórias estrangeiras, sofrera com desencontros, assassinatos, perseguições policiais, ali vira as ruas tomadas por protestos de estudantes de cidades distantes. E sonhara com o dia em que sua vida, que lhe parecia muito peculiar até para si mesma, fosse exibida entre as luzes e sombras do cinema. Quem sabe fosse capaz de escrever sua própria história, não mais como um fragmento da cabeça alheia, mas com suas próprias cores em vermelho vivo e assisti-la diante dos seus olhos, sem ousar interferir? Era tão mais poético quando a chuva fria atravessava a imagem e não chegava ao corpo, parecia tão mais bela a existência escrita em um pequeno quadrado luminoso? Difícil era resistir todos os dias, e ter que criar o próprio ponto de cor, em um cenário cinzento, ousando acordar e existir, sem audiência atenta ou trilha sonora. Difícil era enxergar-se como protagonista em uma trama tão confusa quanto a realidade. E sem pipoca para divertir-se nos momentos mais dramáticos. Difícil erra ser a mocinha da história, sem reviravolta na trama, sem herói que a resgatasse em um cavalo e sem música retumbante no final. Era afinal, uma questão de coragem ou de teimosia diária ousar sonhar com a estrada infinita, enquanto ouvia o eterno sacolejar do trem e ser a personagem involuntária em um enquadramento aleatório. E resistir, tentando resgatar no reflexo da janela o próprio rosto, em meio aos olhares da multidão. Os olhos marejaram diante dessa constatação. A mulher ajeitou o turbante, levantou-se e foi até o prédio da Maison, esperando mais um momento de mergulhar em uma história diferente da sua. O segurança, olhou-a de soslaio, fez um gesto imperceptível de cabeça e abriu uma pequena brecha na catraca, suficiente para que ela passasse. Espremeu-se ali, apressada e correu até as escadas do prédio, posto que, elevador para ela não havia. A sessão já havia começado há muito. Na tela, uma jovem corria, fugindo da polícia. A mulher do turbante penetrou a sala vazia de projeção, e posicionou-se na pequena janela próxima ao projetor. A jovem corria, atravessando esquinas de uma cidade cinzenta, enquanto os perseguidores iam nos seus calcanhares. A mulher acompanhava, tensa, as tentativas de escapar, os instantes de fuga, o semblante tenso da jovem. Em uma curva da cidade, os policiais quase alcançando-a, a jovem virou-se de repente para a tela, e olhou para o público. Naqueles segundos, a mulher de turbante sentiu-se tocada por uma força invisível, como se a personagem da história soubesse de sua existência. A jovem, então, em um movimento brusco, correu na direção contrária, em direção aos policiais. E parou diante deles, como em desafio. A mulher, que assistia a tudo, o coração opresso, pressentiu o que viria. Fechou os olhos, mas ainda assim, não pôde não ver a primeira bala, que acertou o peito da jovem e as outras que vieram, derrubando-a no chão. Sentiu –se atravessada por cada tiro, a boca seca, os olhos vidrados e quando o corpo da jovem atingiu o solo, não pôde evitar, o peito parecia explodir, a cabeça em vertigem. Sem poder controlar, viu o tapete da sala de projeção mais próxima, a cabeça girava e em segundos, foi ao chão. Ali o segurança a encontrou, finda a sessão e convidou-a a se retirar. Mas as balas, o sangue, a morte da mulher, estavam no seu corpo, definitivamente. Amanhã o dia seria mais cinza e o turbante pesaria mais. Amanhã o filme na janela do VLT seria o mesmo de todos os dias e a mulher restaria em silêncio, como um personagem de cinema mudo. Mas isso era só amanhã. Hoje, restava-lhe sobreviver.

quarta-feira, 24 de julho de 2019

E agora,José?

E agora,José? E agora,José? Foi-se a democracia, esgotou-se a previdência, extingui-se o FGTS.Rasgaram a Constituição. Desabam as universidades, agoniza a saúde pública, morrem as farmácias populares. E agora,José?E agora,você? Não foste para rua, não tentaste qualquer reação, te entrincheiraste em tuas pequenas certezas, acreditaste que nada ia te alcançar?Do fundo do teu sofá,onde ergueste teus punhos contra a corrupção, não te alcançaste o desemprego, a desigualdade na tua esquina, a violência atingindo teus vizinhos, o sangue escorrendo no teu bairro? Acaso não ouviste o grito dos estudantes, professores e artistas, te chamando a lutar, a proteger as liberdades, pensaste que eram comunistas?Comunistas,José? Enquanto jantavas teus preconceitos, em teu prato 237 agrotóxicos a mais,acabaram os debates, fecharam as porta dos jornais, expulsaram os dissidentes, e tu, José, digerindo tuas verdades falsas, tuas informações truncadas, teu vasto manancial de pequenos ódios e mesquinharias, esforçando-se para não ver o óbvio?Que tua revolta nunca fora contra a corrupção, nunca fora por um projeto de país,mas apenas para estar certo e apontar o dedo aos que divergem de ti. E agora José?Sozinho na sala, não tem mais namorada, não tem mais amigos, não tem mais samba na esquina, não tem mais cinema.O teatro fechou. Nem mesmo trabalho há. Quer fugir não pode, quer dormir não consegue, quer cultura, não há mais cultura. Quer caminhar na floresta,não ha mais floresta, não só um silêncio incômodo nas ruas vazias.Há somente a dura constatação de que está só,andando em círculos no conforto de tua varanda , admirando os inúmeros helicópteros com miras telescópicas, que fazem todos os dias dez corpos no chão. José, até quando?

quinta-feira, 18 de julho de 2019

Há um poeta na praça

Há um poeta na praça No viaduto do Maracanã,perto da praça Xavier de Brito, mora um sujeito que eu sempre quis ser.Um escritor, um poeta, com livros publicados, professor de literatura e filosofia. Perto dos carros que passam, das ruas eternamente engarrafadas da Tijuca, vive um homem que chegou ao único lugar em que almejei chegar um dia: ter meus textos impressos, ver minhas palavras escritas e lidas por pessoas e, quem sabe, encontrar a mim mesma em uma prateleira qualquer, escondida na livraria que frequento, em meio à fumaça do café e de tantas histórias que costumam atravessar os ambientes permeados por livros. Fico repassando continuamente a história, relendo tudo que foi publicado, tentando não pensar que, próximo ao Rio Maracanã, nesse úmido inverno carioca, há uma pessoa que não conheço e que, por depressão, descuido ou infelicidade perdeu o rumo das coisas certas, como costumamos chamar todos aqueles que conseguiram preencher a ficha de itens fundamentais no formulário da vida, esse mesmo que gostamos de exibir aos parentes e amigos, em uma conversa amena (ou, mais recentemente, nas redes sociais): me formei em engenharia, comprei um carro novo, visitei a Noruega pela terceira vez. Enquanto isso os desejos mais profundos e inclassificáveis continuam guardados para outra oportunidade, até conseguirmos alcançar aquilo que chamamos estabilidade - o que quer que signifique isso- e possamos chamar nossas paixões confortavelmente de hobby , lugar aceitável onde enquadramos tudo aquilo que nos faz viver mas, aparentemente, não tem função alguma. Também eu ousei preencher essa ficha, o formulário implacável de afazeres com que nos defendemos do mundo... Faculdade, cursos, certificações, competências, livros, livros, livros, etiquetas, diplomas. Palavras e mais palavras sem sentido preenchendo todas as horas do dia. Contudo, no fundo do quarto as palavras que eu realmente queria dizer ficaram na caixa do lado do armário, esperando o momento certo de sair.. Às vezes, por desespero ou descuido, um tropeço e pronto. Lá ia a caixa ao chão, espalhando a verdade para todo lado: eu simplesmente não queria preencher todos os itens do formulário. Tudo o que eu queria era contar histórias, botar no papel todos os dramas que me chegassem aos ouvidos. Um dia me disseram que havia profissões reconhecidas e respeitadas onde eu poderia exercer minha paixão. Professor. Jornalista. Revisor. Pesquisador. Caminhei então, os passos acelerados, o coração descompassado, para o confortável mundo das pequenas certezas. Me tornei jornalista e passei a buscar nas minhas palavras o tom certo para o sofrimento humano e aprendi, ao longo dos anos, a me equilibrar entre o espanto e o registro, de braços dados com a história. Mas ainda não era isso, eu sabia. No meio do espelho, em muitas madrugadas perdidas, a verdade inescapável: as palavras que me surgiam no meio do peito não cabiam na realidade. Iam muito longe dela...E, por vezes, em vez de relatar com objetividade e técnica um acidente, ou a disputa eleitoral, eu preferia descrever, em duas ou três páginas o ultimo pôr do sol que vi, uma mulher que passara por mim no metrô, o casal que se encontrou na esquina defronte, um gesto, uma palavra solta, um segredo, entreouvido por aí, no circular pela cidade, no intervalo de uma notícia. Era tudo que eu sabia ser...Escrever sentimentos, silêncios, pausas, cores escondidas entre os ponteiros do relógio...Um lugar nada confortável esse de sufocar com as palavras, de querer dizer e não encontrar formato ou espaço...Poucas pessoas querem ouvir, atualmente, sobre os tons de rosa que riscam o céu quando o sol se põe, ou do beija-flor que pousou na janela a noite passada, quase ninguém vê a mulher que dorme na praça, de turbante, no canto mais escondido do Aterro do Flamengo e já há poucos que possam perceber quando é outono e as ruas mudam de cor, ganhando um tom dourado...Todos tem pressa e propósito. Inclusive eu. Ao meu lado, no momento, sobram folhas, tarefas e livros, todos com destino e prazo de validade certos.. Mas há um silêncio dentro do peito que as palavras exatas não conseguem preencher e não há técnica ou formato que vá conter, quando tudo que se quer é que as mãos ajam, à revelia da vontade e preencham o papel com tudo que ficou por dizer. Enquanto isso os boletos acumulam, as pequenas obrigações cotidianas e a inevitável obrigação de sobreviver. E todos ou quase todos continuamos sobrevivendo mais ou menos desesperados, em graus maiores ou menores de sofrimento. Por isso a história do escritor que mora na rua me tocou. Porque ele sou eu, porque também permaneço à margem da minha própria vida, quando insisto em criar formatos e técnicas para algo que não pode ser enquadrado, palavras que talvez nunca vão caber em uma frase, preencher um texto e - suprema glória- serem publicadas e circularem por aí. No entanto, essa espera, essa esperança é tudo que sou e nada mais me resta do que deixar enfim que o fluxo de histórias finalmente tome conta das minhas mãos e olhos, se aproprie da minha existência e chegue até os dedos, preenchendo o espaço entre mim e o mundo. Não sei, infelizmente, a história do escritor. Depressão, dizem os especialistas. Dificuldades financeiras, prega a jornalista que o entrevistou. Desilusão amorosa, arriscam outros. Nesse mundo de muitos diagnósticos, sobram as definições. Enquanto muitos lamentam-no por sabê-lo mestre, eu sofro por entendê-lo poeta, ofício amaldiçoado, sem função ou justificativa, mas tão fundamental quanto inevitável. Eu sigo acreditando que um dia ele não coube dentro do espaço pré-determinado de existência que lhe cabia e escapou, resolveu encontrar um lugar onde pudesse enfim respirar. Queria poder encontrá-lo e dizer o quanto eu sinto, lhe oferecer um café, um abraço, um cigarro. Queria poder mudar esse estado de coisas que desloca as prioridades, refuta a poesia, sufoca as palavras e deixa ao abandono tudo que é subjetivo. Em tempos de ódio ao conhecimento e à criação, como falar de silêncios e cores sem parecer piegas, inútil, cafona, deslocado ou, muito pior, alienado? Melhor seria sucumbir à tristeza geral e calar-se. Mas ainda assim, por mais distante que se vá, não se pode sufocar por muito tempo as palavras que, ao menor descuido, saem sem pedir licença pela ponta dos dedos, em um maremoto difuso de sentidos, encontrando a primeira superfície disponível para existir. E a única coisa que podemos fazer nesse caso é segurar firme e tentar sobreviver, enquanto a tempestade nos atravessa. Então o que eu posso fazer é rezar para que o poeta, que permanece na praça, se mantenha seguro, que siga sendo amparado pela rede de apoio que o protege todos dias, que consiga sobreviver à tempestade e encontrar o caminho de volta... E que um dia possamos considerar um caso de saúde pública, uma calamidade nacional, quando um poeta não encontra lugar na sociedade em que vivemos. trilha sonora: https://www.youtube.com/watch?v=QpA7qPeP7q4 https://www.youtube.com/watch?v=sX7fd8uQles https://www.youtube.com/watch?v=RsVLIiI8Vfo

terça-feira, 16 de julho de 2019

Naturalmente

Naturalmente Entre as tramas dos nossos dias, nos corredores das nossas vidas,outras vozes se somam às nossas...Outros pés começam a seguir nossos percurso, cada vez mais longo, deixando pegadas menores sobre os nossos pés, reinventando nossas rotas.Tudo no seu tempo, de existir e reexistir,tempo de lágrimas e risos.De fragmentos e plenitude.Enquanto contemplávamos o pôr de sol, naquele intervalo de silêncio, sem que percebêssemos, algo mudou.Não estamos mais sozinhas, mas ainda somos as mesmas, reinventando a poesia do cotidiano,ensaiando outras existências, buscando estrelas e nos perdendo em palavras,as mesmas meninas de antes....Quantas curvas, nesse tempo, quantas pausas, enquanto ainda tentamos mergulhar no espelho, e perdendo tantas vezes o pé, diante de nossas sombras e medos, entre desencontros e dor...Enquanto caminho até o espelho, examinando as primeiras rugas se desmanchando na curva dos olhos,tentando me reencontrar no caminho, guio novas mãozinhas que aprendem a andar,minha filha, sua filha, tantos úteros e esperas, enquanto o tempo passa feito areia, por entre nossas mãos, traçando outros caminhos,de sim e não, de reinvenções e poesias, no sutil costurar das nossas vidas.. Enquanto o tempo paira como a poeira dos dias sobre os móveis, os ecos de ontem se somam às vozes que nos chegam, por entre o caos do cotidiano.. Somos ainda feitas de pausas e nós, das mesmas notas, em canções distintas, que insistimos em ouvir.. Das três que fomos, nos multiplicamos em outras mulheres, novos úteros,outros papeis e infinitas sensibilidades ... E ainda seguimos juntas para a mesma praia, para molhar nossos pés nas nossas águas internas, mães, avós, mulheres... Naturalmente....

domingo, 16 de junho de 2019

Sodade




Deixarei que me atravessem todos os tons de azul que ainda restam do outono....Desse outono de partidas e chegadas..De desencontro e silêncio..De caminhar em círculos em torno de mim mesma.E de me alcançar e me perder em múltiplas tentativas de poesia, enquanto o sol brilha lá fora..De me fechar em vão ante a tela ,o cursor piscando..Sem nada a dizer..Sem conseguir evitar que as últimas notas de uma canção longínqua chegue ao meu Ouvido..."sodade.. sodade...quem mostra o caminho longe",na voz de cesaria...e da voz dela somo a minha..sodade sodade... Enquanto a luz vai pouco a pouco cruzando todos os azuis no correr do dia.. Trilha:https://youtu.be/wXLUbWZnYvM

quinta-feira, 18 de abril de 2019

Desacelera

De todas as coisas que aprendi a mais importante foi a entender a brevidade do tempo das coisas e das pessoas...Assim, mesmo bem pequena eu sempre soube ou intuí que cada momento era único e me dava angústia,sempre me deu, perceber que a configuração perfeita,de pessoas e lugares era muito muito breve...Isso porque eu sempre consegui enxergá-las em um fluxo constante. Jamais estiveram paradas. Durante um bom tempo eu tentei reter - pessoas e situações - por amor ou por medo de sentir dor. E percebi, mesmo que muito devagar,que não se pode reter o tempo. Foi assim que aprendi(ainda que - como dizia a minha vó -com muitos galos na testa,como são todas as coisas que a gente aprende de verdade) a maior declaração de amor que alguém pode fazer por você é compartilhar o seu tempo. Independente de grana, pressa, dores, distâncias... Porque dizer sim não tem lugar fora do intervalo do nós...Essa certeza veio desde a adolescência, quando eu passava horas jogando conversa fora nos pátios do CEFET, das resenhas inesquecíveis da faculdade, dos meus cafés salvadores,das muitas pessoas que conheci e conheço e que passam um tempo e depois se vão..Mas no momento em que ficam,nesse incrível e insubstituível intervalo entre o sim e o não, é que se faz a comunicação, onde a música pára e aquele que está do seu lado, amigo, amor ou as duas coisas juntas, consegue sentir a presença sutil do tempo ....Que não é feito de matéria, imagem ou máscaras ,mas de um sentir em comum,sem pressa ou razão,tão efêmero quanto exato.

segunda-feira, 1 de abril de 2019

Sobre o feminino e o flamenco

No espaço do palco, no jogo de luz e sombra, no movimento das mãos em direção ao céu, no giro vertiginoso dos ombros, no farfalhar das saias, nenhuma outra dança celebra tão profundamente o feminino em todas as suas nuances quanto o flamenco..Se no ballet o instante do ápice é um breve intervalo da juventude - ainda que infinito enquanto dure, posto que, logo o tempo vem, no distender dos músculos, na limitação do corpo - no flamenco, o tempo do corpo é o que torna o bailar mais belo. A mulher flamenca, quando pisa no palco, do alto dos seus grossos saltos, leva com ela toda sua história, de dores e perdas, entrega e paixão. Ali, enquanto baila, nada permanece na sombra, o peso de todos os dias, os instantes de desespero,as lágrimas e mãos fechadas e as palavras não ditas e tudo que não foi. Porque o flamenco se alimenta desse desesperar, o pranto difuso, a incerteza do instante seguinte, o longo e doloroso silêncio da espera, em vermelho e negro.Já é a carne viva, que se consome em cada passo, no correr dos anos. Já é a inevitabilidade da entrega.É saber-se parte de algo maior, que te convoca ao primeiro contato, do qual não se pode fugir, de um fogo que consome por dentro, que sabe ser dor, mas também êxtase e que sabe ser tempo, vivido no mais profundo do que o feminino pode ser. Mulher que não se faz em um dia, mas no passo dos anos, desde o primeiro aprendizado das palmas, desde as primeiras notas no taconeio dos pés...E as mãos que se erguem,jamais deixarão de girar.Elas sabem que o movimento perfeito só virá com o caminhar dos dias, com as rugas no rosto, com o cansaço das costas,com nascer e morrer, com o movimento que sempre pode ser o último, com o frio que entra por vezes, e pede que um xale cubra os ombros. Porque os joelhos que se erguem em direção ao céu, também doem e pesam e tremem muitas vezes.Mas no vibrar da guitarra, na cadencias das palmas, esse corpo se move, o rosto se ergue e é com segurança que essa mulher atravessa a roda em direção ao centro.Ali, ao riscar ao chão e se posicionar, em meio aos gritos e sons, essa mulher, geralmente mais experiente, carrega toda sua história e a oferece para cada um que a observa.Nesse momento, não há medo ou hesitação. Ela e o flamenco são uma coisa só.Algo que pulsa na mesma cadência das cordas da guitarra, de um ritmo que se sente no meio do peito,que corta e queima.Em vão tentarão limitar a dança ao som de um ou outro ritmo, ou palo. A dança esta ali, no corpo da mulher, enquanto ela gira suas saias, abre e fecha suas mãos,sente a melodia vibrar por toda a pele, como um toque -que se faz sem pressa,de si para si. E quando ela taconeia, não pode esconder um sorriso..Nesse intervalo de notas, de giros e palmas, é onde repousa o feminino,vermelho,intenso, rasgado de sentir e ser. E são todas Carmens e Saras e Marias e Esmeraldas, girando as saias e cortando o ar com as pernas. Não seria o mundo, em seus invariáveis tons de cinza, que as prenderiam.Não seriam os homens, em sua incompreensão,que as limitariam. Elas existem. Infninitas.Fortes. Perenes. Flamencas.

quarta-feira, 20 de março de 2019

A vendedora de poesias

- Senhor, aceita uma poesia? - Ao homem alto que passava, sobraçando processos jurídicos e que seguiu em frente, como se não ouvisse e visse nada além das folhas amareladas da justiça. - Senhora, aceita uma poesia? - à mulher que cruzou a esquina, em seus intermináveis saltos altos, as pernas tocando as faixas brancas do asfalto, como se deslizasse. A mulher olhou-a, como se uma girafa cruzasse seu caminho em plena avenida Primeiro de Março e o susto diminuiu sua marcha por alguns instantes, a ponto de franzir as sobrancelhas e e deslizar os olhos pela figura inusitada que a interpelava. Em segundos decidiu, não conseguiu definir o que seria, ouviu um pedido, devia ser dinheiro, recobrou a pose e o passo, virou a esquina próxima. - Senhora, uma poesia? - Senhor, um minuto de atenção, para oferecer poesia? - Moça, uma poesia, por favor? Moça, moço, senhoras e senhores, ninguém olhou. A vendedora foi caminhando devagar, desanimada, no braço uma cesta com vários rolos de papel presos com fita vermelha, a mochila nas costas, pesando além do possível, a vida toda estava ali. Eram três da tarde e o asfalto do centro do Rio de Janeiro ardia e ainda era outono. Aqui e ali, uma multidão de engravatados e engravatadas, suavam em suas gravatas e tailleurs, tentando alcançar a tal da meritocracia, correndo do Tribunal de Justiça até o Ministério do Trabalho e de lá de volta, no intervalo do semáforo. Por todo lado, os ambulantes com carregadores, pen-drives, fones, de todas as cores e formatos. Iam até o meio da calçada onde sempre alguém os alcançava, realizavam a venda e voltavam para a Praça XV, onde reabasteciam. E não parava nunca de circular os artefatos eletrônicos e a papelada da justiça, orquestrados pelo vermelho e verde de cada sinal. O trânsito, como coisa viva, seguia inacreditável, infinitamente, do final do Aterro do Flamengo até a rua Presidente Vargas, um ser vivo, feito de fumaça, carros, motos e ônibus, interrompido (brevemente) pela passagem do VLT. Em meio a tanta vida, movimentos rápidos e coisas e pessoas, a vendedora de poesia circulava, como um ser invisível, tentando oferecer sua mercadoria aos passantes. Seria a roupa, o gesto, a voz baixa ou a oferta inusitada que assustavam as pessoas? Houve quem, ouvindo a pergunta da vendedora, apressou o passo, pensando tratar-se de assalto. Ainda assim, ela insistia, porque não havia mais nada que ela pudesse oferecer. Apenas as palavras com que nascera para enfrentar o mundo e as mãos completamente vazias. Um percurso de silêncio e negativas, era preferível a nenhum percurso, ela acreditava. Imersa nesses pensamentos percebeu que estava na Praça XV. O calor ainda era infernal, mesmo no outono. E quando não seria? Mesmo na chuva, as pedras largas do calçamento colonial ferviam uma àgua a contento, se assim fosse necessário. A vendedora sentou-se por alguns instantes em frente ao chafariz do Mestre Valentim, deslizou a bolsa pelos ombros e depositou a cesta de poesias sobre as pedras do muro, tentando afastar os pombos que insistiam em bicar a mochila, atrás de farelo. Estava nessa empreitada quando sentiu que se aproximavam. Uma senhora, sobraçando várias sacolas, se aproximou e perguntou: - São doces? -Não. São textos, a vendedora respondeu, distraidamente. -Você está vendendo? A senhora, insistiu, curiosa. Surpresa com o interesse, a vendedora, olhou-a pela primeira vez. Era baixa, com os cabelos presos em um coque elegante e a roupinha bem passada e bem-posta, de casaquinho e saia, completando com sapatos da mesma cor. Uns óculos enormes, redondo, completava o conjunto. Além das intermináveis sacolas plásticas que carregava, havia uma bolsa vermelha, pequena e surrada, pendurada em um dos braços. A senhora insistiu na campanha: - Mas você vende mesmo? -Não senhora, são todos de graça, mas ninguém quer aceitar por aqui. A senhora gostaria de ver? -A vendedora, achou que valia a pena perguntar. -Se você quiser me mostrar, eu aceito. Estou esperando o horário do meu ônibus. Sentou-se alegremente, ao lado da vendedora, espalhando sua bagagem pelo muro. -São poesias que faço desde pequena, disse a vendedora, ofereço um canudo à mulher. São todos escritos, revisados e impressos por mim. Venho aqui todos os dias, mas ninguém aceita meus textos, alguns pensam que é assalto, outros acreditam que estou vendendo algo. A velha senhora riu, bondosamente, enquanto abria a bolsinha vermelha: - minha filha, fui professora de literatura, estive em sala por trinta anos e posso te dizer que textos fechados não chamam a tenção de ninguém. Quantas vezes fiz impressões do meu próprio bolso, mimeografei – sou do tempo do mimeógrafo- folhas de textos, letras de música, ninguém prestava atenção. Foi somente quando comecei a promover leituras em conjunto, a encenar as falas, a criar grupos para a leitura coletiva e interpretação de cada um é que consegui que me ouvissem. A escuta humana é muito limitada, não ouvimos aos outros e também não vemos uns aos outros. Às vezes é preciso gritar. -Mas e se alguém se incomodar com meu grito? A vendedora começava a achar a senhora um pouco insana. -Se há uma coisa que chama atenção dos sujeitos é a loucura, minha filha, você vai ter todos os ouvidos de que precisa. E se alguém se incomodar, ora, não podemos prever a reação da plateia, não é mesmo? Não é que talvez a senhora tivesse razão? A vendedora perguntou: - e a senhora gostaria de ouvir um poema? -Sim, por favor, ainda tenho tempo para dois poemas e até uma crônica, desde que seja das curtas. Meu ônibus demora ainda um bocado. A senhora suspirou. - Pois bem, então vejamos o que nos cabe hoje, disse a vendedora, resolutamente, sacando um rolo de texto da cesta. Tirou a fita, desenrolou-o, ia começar a ler. -Assim não, assim eu mesma leio. Você está lendo como se tivesse vergonha do que escreveu. A senhora protestou. -Mas se não assim, como? A vendedora ficou confusa. -O texto deve ser voz e corpo, deve ser cantado ou, ao menos, falado com energia, como se toda a sua vida dependesse disso, a senhora, agora abanava-se com um pequeno leque rendado. A vendedora pensou. Pensou e por fim decidiu-se. Deixou a cesta ao lado, subiu no muro e começou a ler. As primeiras palavras saíram a medo, a voz baixa de quem espera ser interrompida a cada momento. Mal podia respirar. A senhora, sorridente, ajeitou-se melhor para ouvir. Na quarta linha, já não sentia mais medo, entrou no texto, ganhou ritmo. Nem viu quando duas meninas, vindo das barcas, pararam para observar e nem mesmo quando o ambulante, curioso, interrompeu a venda e parou também. O engravatado, pensando tratar-se de protesto, cutucou a Guarda, que fazia sua ronda, mas ao chegarem e ouvirem a poesia, acabaram ficando por ali, sem saber o que fazer. O pipoqueiro, lentamente estacionou a carrocinha em frente ao muro, e quem chegava atrás do cheiro das pipocas doces, recebia de brinde uma ou outra frase do texto lido. A vendedora fechou os olhos e continuou a recitar, sabia a poesia de cor, afinal. Na última linha, parou a medo, pensando estar sozinha. Foi quando ouviu inacreditáveis aplausos ao seu redor. Abriu os olhos e havia uma pequena multidão de passantes sorrindo para ela. As meninas, comovidas, abraçaram a vendedora. A cesta circulava por ali e cada um que tirava um texto, deixava um trocado, uma moeda, houve que depositasse uma rosa e até um saquinho de pipoca foi encontrado. A vendedora, surpresa, voltou os olhos para a senhora, para agradecer. Não estava mais ali. Perguntou a todos, ao pipoqueiro, as meninas, ninguém tinha visto uma senhora magrinha, cheia de bolsas na mão. Finda a leitura, a Guarda tratou de dispersar os passantes, cada um voltou a seu caminho. A vendedora, a cesta nunca antes tão cheia, seguiu o seu também. Agora todas as tardes, em frente ao Paço Imperial, a pipoca das dezoito horas, as vendas de ambulantes passatempo de quem pega a barca, vem com um tempero de poesia, lida ou cantada, dependendo da ocasião. Há quem diga que até os pombos da praça param para ouvir. A cesta de vime continua no muro e mesmo quando não há público, a vendedora continua lá, todos os dias, oferecendo seus versos. Pela primeira vez, em muito tempo se sentia livre.

segunda-feira, 11 de março de 2019

A máquina

Era uma máquina velha, marca Singer, daquelas grandes, de madeira escura, com pedal de ferro negro. Subiu pelo elevador e foi depositada no meio da casa. A mulher chegou, contemplou o objeto por alguns instantes e sentou-se no chão da sala, sem saber o que fazer. Duas da manhã e se coragem de dormir, ela fez um chá e então, na volta para o quarto, se deparou com a máquina, ocupando metade da sala de estar. Aproximou-se devagar, quase respeitosamente. A cada passo ia se sentindo mais jovem, como se os anos fossem, passo a passo, fugindo pela ponta dos pés. Quando se sentou no chão era quase uma menina, vendo o pedal da máquina trabalhar incessantemente. Vez em quando ela pedia: - Vó, me deixa pregar um botão? A vó deixava. -Vó, me deixa usar a tesoura de picotar? A vó deixava. Ia deixando tudo, no tempo certo das coisas. Enquanto isso, no intervalo do almoço e do jantar, a vó cosia e cortava tecidos e pregava botões, sem esquecer dos suspiros da tarde e o pão do lanche, comprados na padaria da rua de cima. Todos os dias. Aos domingos, depois do almoço, banho tomado, a menina sentava no muro de pedra e esperava o bonde, que sempre atrasava. Eram duas horas, até a composição amarela atravessar a rua Araão Reis e os passageiros saltarem. No balanço do trilho, o bonde atravessava os arcos da Lapa, sacolejando até o Largo da Carioca. A avó ia do lado, contando causos, falando das ruas e das pessoas que passavam. Falava muito dela também, da infância no Lins de Vasconcelos, assim mesmo, com nome e sobrenome, como ela chamava o bairro onde tinha morado. Também falava do cinema, passatempo de sábado, que frequentava ainda menina. Na voz da avó a menina ouvia falar do Cine América, do Olinda, de velhas salas de projeção na Avenida Saens Pena, onde o cotidiano virava romance, suspense, terror, dependendo daquilo que estivesse em cartaz. Para a menina, as histórias contadas no balanço do bonde eram o melhor filme, desenrolando-se diariamente diante dos olhos dela, como a linha dos longos carreteis presos ao tubo da velha máquina de costurar. Nos pés firmemente plantados no chão, sempre manejando o pedal, a vó ia cosendo a vida de toda a família. E da menina, que se tornou mulher e se tornou mãe, as mãos presas ao pulso cada vez mais frágil da avó, que ganhava uma dobra, uma ruga a mais, a cada ano que passava. As histórias se repetiam, os pontos ficavam mais largos, a tesoura custava a cortar os tecidos. Um dia, no manejo do pedal, no girar da roldana, a linha partiu e a máquina silenciou. Ficaram no peito da mulher o som contínuo da costura, os fios coloridos sobrando na gaveta e a tesoura de picotar enferrujada.de repente, não restava nada, só a velha máquina de costura, com um fragmento concreto de memória diante dos olhos. A mulher ergueu-se, deslizou as mãos pela superfície carcomida de madeira, nas gavetas remanescentes. Experimentou a roldana, não soube manejar. Nunca chegara a pedir que a avó a ensinasse a costurar, como se acreditasse que ela sempre estaria ali, para coser as meias dos primeiros erros, para abrir casas onde não houvesse saída, para prender um a um os retalhos da sua história. A máquina persistiu, no meio da sala, em silêncio, para acabar de envelhecer junto à mulher, que a cada dia parecia mais cansada e mais triste. Mas os retalhos e linhas permanecem ocultos, aguardando outros olhos e mãos curiosas para aprender a fiar mais um pouco de histórias, na poesia dos dias.

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2019

Cartas a Helena III

Enquanto o mundo descobre outras e variadas formas de NÃO funcionar, constato (assombrada) que a cada dia você se torna outra. É sempre uma outra Helena,maior, mais inteligente e mais linda que me lança olhares compridos da beira do berço.Enquanto nós, os adultos, nos esforçamos em pensar estratégias de sobrevivência, você prepara um ser humano completo, feito de curiosidade e encantamento. Percebo nos seus olhos a fome pelo mundo e nada te escapa: já são as mãos que se erguem em direção ao novo e as pernas que fortalecem os músculos, se preparando para percorrer todas as estradas possíveis.. Vivemos em tempos sombrios, minha querida Lenuccia, onde os homens odeiam por ignorâncias e por costume e amar o outro passa a ser tarefa dos loucos e sonhadores.Aqui nesta casa somos todos um pouco dos dois.Meio loucos, meio sonhadores.Tua mãe, com seus azuis misturados em tinta, tua bisavó com a música na ponta dos dedos, seu avô Paulo com a capacidade de captar nas lentes fotográficas toda a beleza do mundo.A mim me coube senti-lo, em dores e alguma poesia, no ofício da escrita, com a qual respiro e vivencio cada dia. Nas fotos, na dança, nos filmes, a escrita me atravessa, constituindo tudo que sou. Somos todos mais ou menos atravessados pelas palavras, que nos ajudam a compor o que somos, nossas companheiras de viagem. De minha parte, escolhi ou fui escolhida, companhia desde que comecei a entender o significado:poesia. Do dicionário vem a explicação de daquilo que organiza harmoniosamente imagens e palavras? Assim, vivo de imagens e palavras que auxiliar na caminhada pelo mundo e me ajudam a sobreviver.ultimamente, contudo,minha poesia está atravessada por tua chega.Você,Helena é a poesia maior de todos nós, o encantamento vivo que nos faz perder a hora e as tarefas do dia, esquecidos, a contemplar teus pequenos gestos, teus constantes sorrisos, suas mudanças diárias.De repente, é como se tivéssemos em nossa casa uma poesia de pernas, braços e olhos muito vivos, que brilham em direção ao mundo.Também vão se revelar para você, tenho certeza, uma infinidade de palavras e imagens,que irão te tocar e te encantar com a magia de se combinarem e se tornarem poesia.Não deixe que o medo te impeça de mergulhar.Se entrega a elas e então poderá, definitivamente voar.

Sincretismos

Fui criada como todos os brasileiros (ou a maioria deles) em uma família onde o batizado era feijão com arroz,todo mundo tinha um pezinho no terreiro e outro no esoterismo..Como criança alérgica que fui, os patuás, misturinhas,ervas medicinais, pomadas e ungüentos sempre dividiram espaço com as caixas de antiflamatórios e analgésicos tradicionais, uns e outros usados com parcimônia pela minha mãe... Remédio mesmo era a barra de chocolate ao lado da vacina semanal, das que doíam, no braço e os olhos fechados para enganar a dor.Remédio mesmo era e é a reza da minha vó, feita com o terço e a receita embolada entre as mãos. E nunca deixamos de nos desejar boa noite, ao ouvir no rádio a Ave Maria..E de frequentar a igreja católica, às segundas-feiras, para rezar pelas almas... Cresci conhecendo muitas das celebrações e rituais da umbanda,as festas de crianças e suas cores e ruídos inacreditáveis, os cantos dos quais ainda me recordo e o cheiro de ervas misturado as velas..Já na escola me lembro de ver a imagem de Oxum, na representatividade da dança folclórica,rasgando o palco em ouro e amarelo e me emocionando até a alma. Eu já arriscava meus passos no carimbo e maxixe, mas foi no espelho de Oxum que deixei a minha alma e me prometi que um aprenderia essa mesma dança,bela entre as mais belas...A mesma reza dos orixás era a Reza da igreja e talvez por ter crescido sem uma religião definida eu tenha aprendido a respeitar todas..Ainda adolescente conheci o kardecismo e a religião messiânica ,que me aproximaram da ciência do toque,do sentir o outro e me fizeram crer em energia,das que a gente transmite entre si...A cura então não estava mais somente na palavra, mas na incrível capacidade do humano se tornar coletivo, criar um mesmo espaço de existência ao erguer suas mãos em direção a alguém. Talvez por isso, antes mesmo de entender o que seria um estado laico eu compreendia a instância do sagrado na vida de cada um eu tenha aprendido ainda em criança o momento certo do silêncio e do sujeito transcender, qualquer que fosse o objeto de sua adoração...Ao logo da vida conheci ateus mais progressistas que o mais erudito e aplicado dos religiosos e descobri que no ser em comum ou seja,em sociedade, não pode haver espaço para somente uma forma religiosa. Se aprendemos a respeitar todas, estamos dando mais espaço para a possibilidade de convivência do que ao afirmarmos que uma ou outra verdade deve ou não ser seguida. Porque verdades não podem nem devem ser seguidas, como os sujeitos, que nascem, apenas e somente para transcender

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

Queen e eu

O ano era 1992. Uma segunda-feira comum, especialmente para quem, como eu, ainda estava na escola. Naquele dia, porém, 20 de abril, havia algo diferente. A transmissão do Freddie Mercury Tribute Concert pela TV Bandeirantes, concerto para homenagear o cantor e líder do Queen, morto em 24 de novembro de 1991. Meu aniversário, aliás e infelizmente, data fatídica para perder o vocalista amor da sua vida toda. Ouvi a notícia sobre a morte de Mercury enquanto anotava a programação diária do Disk MTV, tarefa diária, bem como comentar as performances das bandas que eu amava, todas devidamente expostas em pôsteres nas paredes do meu quarto. Morria com ele meu sonho de ver um show do Queen ao vivo após perceber, ouvir falar, da mais incrível, fantástica, extraordinária performance da banda no Rock in Rio 1985. Eu tinha seis anos, mas já conhecia a voz inacreditável que levava músicas como Radio gaga e I want to break free. Ambas faziam sentido de uma forma inexplicável para mim e eu literalmente não fazia ideia do que queria dizer nenhuma das letras. Era apenas uma voz e ela me tomava completamente. Eu simplesmente precisava estar em um lugar onde essa música tocasse ao vivo, o que quer que fosse um show de rock com milhares de pessoas reunidas, mãos para o alto, em palmas ritmadas. Freddie Mercury era exatamente isso. O mergulho na profundidade musical de suas cordas vocais, na absoluta entrega do cantor e no imperativo de seguir cada um de seus comandos ao público. Em 1992 eu respirava música, mais precisamente a música que saia da transmissão da MTV ou do meu inseparável Walkman (favor consultar o Google, senhores, para saber do que se trata) do cheiro grunge dos adolescentes batedores de cabeça, flanela e cabelos ao vento, da absoluta solidão em preto e branco do Metallica, da rebeldia melódica do incontrolável e requebrante Axl Rose, sempre em busca da sua “cidade-paraíso”. Pouco me importava, à época, as drogas, as confusões, a atmosfera sombria que as mídias normalmente constroem à guisa de produto em torno dos astros de rock. Eu consumia, devorava, cada uma das revistas, dos pôsteres, da vida de todos eles, todos menos um, Freddie Mercury. Ao ouvir Queen, era a música que me consumia, em cada um dos acordes. Não por acaso a primeira escuta de Bohemian Rhapsody provocou um efeito devastador. Como era possível que aquele homem pudesse unir o lírico ao rock em uma obra inigualável, eu não podia compreender e acredito que nem hoje eu possivelmente conseguiria. À época, eu obviamente não poderia precisar a importância da obra, considerada a música mais executada do século XX . Posso dizer que fui responsável por parte considerável das execuções, pois não foram poucas as vezes em que me rendi ao refrão inescapável, ao coro absoluto e poderoso de Roger, Bryan, John e, claro, Freddie. Imaginem o frenesi quando, na divulgação do line up do Tributo a Freddie Mercury, ser Axl “my darling” Rose (o campeão absoluto de pôsteres no meu quarto) o responsável pela execução de Bohemian Rhapsody. Era consenso de que nem mesmo a melhor e mais preparada das gargantas poderia substituir Mercury com sucesso. Talvez por isso, o tributo tenha sido tão bem-sucedido, na minha opinião. Mais do que tudo, o show foi um marco da absoluta falta que Freddie faria ao mundo. Assisti ao show todo na casa de uma grande amiga, inseparáveis que éramos, na paixão musical, na audiência ao Disk MTV (um programa de televisão que computava votos aos melhores videoclipes) e no amor a Freddie Mercury. Costumávamos nos ligar (sim, crianças, aquela velha função dos telefones) e comentar os programas Disk MTV, Top Ten Europe e Top 20 EUA (ou assim me lembro dos nomes), além de anotar em nossas agendas os shows, clipes, execuções e ranking das bandas. Foi na casa dela em que ouvi pela primeira vez o álbum GNR Lies e tive nas mãos o premiado Apettite for Destruction, ambos do Guns ‘n Roses. E se uma coisa pode formar um ser humano ou, ao menos, fazê-lo feliz, é partilhar músicas com outras pessoas, particularmente se essa pessoa for sua melhor amiga na adolescência, aquele único ser que podia, sem dúvida, folhear cada linha da sua agenda e sabia de cor os nomes de todas as suas paixões, etapa memorável da minha vida. A quantidade de noites inesquecíveis que passei vendo shows e clipes, chorando por namorados perdidos, cozinhando nossas gororobas preferidas e rindo das nossas desventuras merecia um livro. A primeira vez em que provei uma bebida alcoólica também, um prosaico gole de licor de chocolate, nosso brinde à morte de Freddie, diga-se de passagem. Afinal, tínhamos espírito e corpos adolescentes, na ansiedade de nossas primeiras escolhas autônomas, de nossos primeiros ídolos, da formação de nosso senso crítico e das primeiras experiências inesquecíveis. O dia 20 de abril não foi diferente. Ao longo do show, Axl, Bowie, Extreme, Metallica passaram pelo palco do Wembley Stadium, enquanto nós, duas adolescentes brasileiras, chorávamos e riamos, criticando cada um dos cantores. Nenhum era maior do que o vocalista do Queen, para nós. O tempo se encarregou de reforçar essa opinião. Vi o senhor Freddie Mercury atravessar o palco com uma cantora lírica, entoar os mais pesados do rock n rolls e esvoaçar, deslumbrante, por entre os espelhos e escadarias de um palácio. Ao longo dos anos, chorei ao ouvir a performance do Live Aid 85, Wembley 86 e das performances do Queen no Rock in Rio, que só fui conhecer ao vivo muito tempo depois. Nenhum cantor, nenhuma performance poderia ser mais poderosa do que o Queen, embalando o êxtase de 250 mil pessoas, mãos para o alto, lágrimas nos olhos, ao som de Love of my life. Também eu estive ali, mesmo que em sonhos, ouvindo cada uma das músicas que amei ao longo da vida. Nenhuma música seria uma trilha sonora tão precisa quanto Under Pressure ou I want to break free, para meus anseios de liberdade. Nenhuma definição melhor do que os versos de Crazy little thing called love para explicar minha vida sentimental ou I want it all para explicar a necessidade de voar, ganhar o mundo, “spread my wings (esticar minhas asas). Ainda hoje, aos 40 anos, todas as vezes que ouvi Bohemian Rhapsody fui tomada por uma necessidade de levantar, cantar e dançar, a plenos pulmões e em todas, absolutamente todas as vezes a performance foi maior do que a vergonha, assim como Bryan, John, Roger e Freddie queriam, imagino eu. Não seria diferente em minha festa surpresa, quando fui presenteada com um momento realmente bom, ao som de Don´t stop me now, onde viajamos todos na velocidade da luz, pedindo apenas que ninguém nos parasse, ainda e sempre ao som de Queen. E hoje, após ver o filme, Bohemian Rhapsody e a performance incrível, extraordinária de Rami Malek, não sei quanto a vocês, mas eu estou “burnin' through the sky, yeah, two hundred degrees”. Thank you Freddie, Thank you for all.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

O café

Era um prédio na Rua do Ouvidor, onde as terças-feiras havia o baile dos idosos e os operários da fábrica todos os dias tomavam café. Cinco minutos e já partiam para o cartão de ponto, a manivela implacável computando horas e minutos na vida de cada um. Naquele dia partiram todos, menos um. Ao mexer o café, algo o alcançou, do outro lado da rua, para onde jamais havia olhado. Um movimento rápido, em uma construção aparentemente abandonada. Por entre as grades de ferro, retorcidas pelo tempo e a falta de uso, um vulto, uma luz diferente – seria um gato, um morador de rua? – Capturou a atenção do operário. Oito horas, de nove às seis, com uma folga semanal, exatamente às terças-feiras, quando comparecia ao baile exatamente na mesma rua onde costumava fazer o desjejum. Todos os movimentos em um mesmo circuito de tempo e espaço. Aquele dia, contudo, o movimento breve entre as grades o fez caminhar em direção inesperada. O café ficou na mesa, junto às moedas. O operário, Pedro era o nome, atravessou a rua. O prédio era centenário. Na fachada, quatro colunas de mármore sustentavam a custo a marquise, com uma longa rachadura em uma das bordas. Ao canto, uma janela de vidro, quebrada e uma faixa amarela, impedindo a passagem. Ali na porta do prédio, no entanto, não havia nada que o impedisse de entrar. As pessoas, quase todas, seguiam seu caminho. Pedro decidia-se se entrava ou não, quando um ruído de metal, tal e qual engrenagens girando, o assustou. Mas seria possível que houvesse alguma coisa funcionando ali? Olhou em volta. Ninguém parecia notar, nem Pedro, nem o Prédio. Decidiu-se. Ultrapassou a faixa de contenção, empurrou a grade, que cedeu facilmente em suas mãos, abrindo uma passagem. Pedro passou a cabeça, os ombros e entrou no grande saguão. Sobre o piso, um resto de tapete, de veludo vermelho. Aqui e ali moveis velhos, cadeiras empilhadas e vários metros de tecido em um rolo comprido, feito lona de caminhão, além de uma infinidade de caixas espalhadas, ocupando cada centímetro. Caminhou até uma delas, abriu a tampa e encontrou fotos e papeis, notas de compra e ingressos rasgados. Esquecido do horário, Pedro circulou entre as caixas, examinando seu conteúdo. Em cada caixa, fragmentos de histórias, imagens de um Rio de Janeiro de bondes e trilhos, de uma Cinelândia recém-inaugurada, chapéus e ternos cruzando as novíssimas avenidas. Ali dentro a atmosfera de mofo e poeira dominava o espaço como uma coisa viva, preservando os objetos em uma aura fantasmagórica. Pedro abriu uma caixa grande, esquecida sobre o balcão carcomido de cupins e de lá tirou vários canudos compridos, cada um contendo ilustrações de filmes antigos. Reconheceu o cartaz de um romance cuja história ouvira quando criança. Na trama a heroína, noiva do jovem cientista, desaparecera às vésperas do casamento, deixando a família consumida pela tristeza. O noivo, inconsolável, passara o restante dos seus dias no hotel onde aconteceria o casamento, esperando pela noiva que nunca voltou. A única coisa encontrada, muitos anos depois, foram os restos mortais do cientista, inacreditavelmente conservados, ainda sentado sobre uma cadeira, em frente a um velho projetor de imagens. Pedro ainda podia recordar a cena final, a sala em penumbra absoluta, a não ser pela luz do projetor, reproduzindo uma paisagem sombria de nuvens cinzentas e as aguas negras do mar. A memória ainda provocava calafrios. Perdido nesses pensamentos ele percebeu que, conforme caminhava para o interior do prédio, o barulho de engrenagens aumentava, parecendo vir do segundo andar. Seguiu até as escadas, experimentou o primeiro degrau. A madeira, envelhecida e úmida, fez um ruído grave. Apoiou-se no corrimão de mármore, esverdeado, surpreendentemente liso e brilhante, como se tivesse acabado de ser encerado. No patamar da escada, um vitral empoeirado de uma silhueta de mulher deixava entrar um facho de luz. Pedro venceu o segundo lance de escadas e chegou até o andar de cima. Alina penumbra, apenas as silhuetas dos objetos podiam ser vistas. Do corredor comprido vinha o mesmo som de engrenagens, parecendo ir além das pesadas cortinas no final do salão. O que exatamente Pedro ainda fazia naquele prédio ele não poderia responder. Talvez a curiosidade sobre o lugar. Mesmo tão abandonado, parecia conter uma espécie de engrenagem interna, como um velho relógio de parede. Imóvel, empoeirado, aguardando algo que o fizesse mover-se. Em que momento avançar na escuridão pareceu ser a única saída possível, em meio à infinidade de horas vazias que compunham o cotidiano? Seria tão mais fácil terminar o café, adentrar a fábrica, marcar o ponto de todos os dias, intermináveis, mas seguros, um igual ao outro? Houve, contudo, no intervalo entre os ponteiros do relógio de ponto um acontecimento qualquer, banal, um passo em falso e já um universo completamente novo se descortinava diante dos olhos. E já se sentia diferente do que fora no minuto anterior. O homem centrado em cada tarefa diária, no exercício cotidiano da sobrevivência, guardando apenas uma breve pausa para o respiro no café de todos os dias, subitamente perdera o prumo. Hesitara. E na hesitação residia uma vida inteira ainda por viver. Finalmente chegou até o final do corredor. Entrou, sentindo a atmosfera gelada do lugar. Parecia uma espécie de salão, com várias fileiras de cadeiras dispostas, tendo ao fundo um palco. Ao contrário do restante do prédio, o palco era iluminado por uma imagem, vinda do alto. Pedro reconheceu, o semblante iluminando-se diante da cena: um filme antigo, em preto e branco. Em meio à atmosfera isolada, onde o vento ondulava a vegetação de pequenas flores amarelas ao redor, um oceano de águas azuis, quase negras, intransponíveis. No cume da colina, um farol e ali, uma mulher. A câmera registrava suas mãos fechadas sobre o peito, os cabelos desalinhados, os olhos por entre lágrimas, de um choro profuso, enquanto Pedro, hipnotizado, observava sua agonia. Súbito a câmera afastou-se, como quem não quer interferir na cena. Isolou-se na confortável posição de plano geral. Como se adivinhasse, Pedro abriu a boca, inutilmente tentando gritar, mas a voz não saiu. O corpo leve da mulher voou por sobre as pedras, cortou as nuvens, sumiu nas águas escuras do mar. E o filme terminou. Enquanto os créditos se desenrolavam, Pedro, assustado, percebeu que não estava sozinho na sala. Havia um vulto, silencioso, sentado na primeira fila de cadeiras. Como se uma corrente elétrica atingisse seu corpo, Pedro sentiu as pernas paralisarem, os pelos da nuca eriçados. Pensou em sair correndo, pedir desculpas, voltar a seu café, ainda sobre a mesa. Mas assim como sabia que o passo à frente era a única saída possível, entendeu que, de alguma forma, precisava prosseguir. Avançou com delicadeza, para não assustar. A cada passo o pânico bloqueava sua garganta, atingia a boca do estomago. No final do corredor de cadeiras, entrou na fileira de trás de onde estava o vulto. O filme começava novamente na tela. Pedro então olhou para o ocupante da fileira da frente. Sentada à sua frente, uma mulher, às mãos postas sobre o peito, os cabelos em desalinho, sem parecer registrar a presença de mais alguém. Olhava diretamente para a tela, que projetava sua luz em seu rosto. Num impulso, Pedro ergueu-se, atravessou a fileira, sentou-se ao lado dela. A mulher não pareceu notá-lo. Ao contrário. Sem tirar os olhos da tela, deixava correr pelo rosto lágrimas grossas. Num segundo reconheceu-a: É você, a mulher no filme! A voz, rasgando o profundo silêncio do lugar, atravessou a penumbra, atravessou a mulher em cheio. O rosto adquiriu uma expressão carregada. Fechando os olhos, a mulher assentiu. Então, erguendo-se, caminhou até o final da sala e saiu. Pedro seguiu-a, mas, ao chegar até o corredor, ela já desaparecera. Procurou em vão por cada canto do prédio, mas a única coisa que encontrou foi um velho álbum de fotos. Demorou-se em uma em que a mulher, ainda jovem, posava diante do hall de entrada, usando um belo vestido. Passou pela grade, voltou à rua. Ninguém parecia ter notado sua aventura. Até mesmo o café seguia na mesa. A xícara branca, sobre a mesa, atingiu-o como um raio para o retorno ao cotidiano e o dia perdido de trabalho. Pedro voltou ao ponto de ônibus e esperou. O percurso até em casa nunca foi tão longo. A casa nunca fora tão silenciosa. Deitado sobre o lençol ele não conseguia dormir. Como pudera suspender o ordenamento natural dos acontecimentos? Perder o dia de trabalho, a certeza das pequenas coisas, o café amargo sobre a mesa? Em um passo, colocara em risco uma gama interminável de sons e imagens do cotidiano e penetrara sua própria escuridão. Ali, cada passo levara a um mergulho em um silencio perturbador, onde nenhum caminho era seguro e a enormidade de cada instante oprimia o peito dolorosamente. Há quanto tempo não tomava uma decisão sem se preocupar com o que viria a seguir. O café, o ônibus, os cartões de ponto pareciam tão banais visto desse novo ângulo, enquanto adentrava um universo novo de inesperado e perguntas não respondidas. Pedro levantou, sem conseguir pegar no sono e foi até a mesa da cozinha, onde o velho álbum de fotos permanecia. Virou novamente cada página, procurando respostas. Havia fotos de um pequeno bebe, agitando os punhos para o obturador, diante de sua família sorridente. Mais umas páginas e o bebe aparentemente crescia, sentava-se sobre uma banqueta e posava novamente. Nas páginas seguintes, uma menina morena, de pele pálida, ia pouco a pouco, em cada clique, diminuindo seu sorriso, se tornando mais séria. Na última página havia apenas uma leve ruga dos olhos que, contudo, pareciam brilhar. Virando pagina a pagina era possível acessar cada momento da vida e adivinhar os instantes de silencio, entre a imagem e o cotidiano, em cada clique do obturador. Quantas palavras teriam sido silenciadas, quantos instantes ficaram gravados na retina, quantas vezes os punhos se fecharam de ódio ou de prazer? Em poucas páginas, toda uma vida passava diante dos olhos, como um filme exibido diante de uma sala vazia, sem interesse para mais ninguém. Em que momento seria preciso pular, fugir à prisão de instantes intermináveis, adentrar a sala escura de suas memorias, atingir os desejos mais obscuros e enfrentar a dor do não vivido? Quem estaria ali na plateia para ver? A madrugada avançou. Os primeiros raios de sol encontraram o despertador, que tocava na cabeceira. Pedro levantou-se de um salto, atrasado, mal conseguindo trovar e roupa e alcançar o ônibus, que já ia na esquina. Desceu na mesma rua, pediu o mesmo café, aguardou. Na cabeça o cartão de ponto, computando todos os minutos da sua vida, um a um, esvaindo diante de um interminável silencio. O café ficou sobre a mesa. O garçom tentou, inutilmente chama-lo. Já corria em disparada para o outro lado da rua. Pedro não ouviu. Já adentrava o mesmo buraco da grade e seguia pelo mesmo corredor, subindo as escadas em desabalada carreira. Atingiu o segundo andar. Transpassou a cortina. A mesma velha sala de projeção. Ali não havia ninguém. Sentou-se na primeira fila e olhou para a tela. O mesmo mar Negra as mesmas nuvens espessas. O mesmo vento na vegetação. Contudo, há um homem na beira do precipício, com as mesmas mãos ao peito, chorando silenciosamente. Enquanto a câmera se aproxima, Pedro, sentado na sala escura, contém a custo um grito: É sua a imagem do homem, diante do precipício. A câmera começa a se afastar. Pedro sabe que esse é o momento, tantas vezes visto, inevitável. Ele não pode impedir. Vê o close no mar escuro, os próprios passos em aproximação vertiginosa em direção ao abismo. Sente o final se aproximando, o coração em descompasso. Conseguirá sobreviver? Quais são a chance de viver quando quando se abre mão da sobrevivência banal, mas segura, garantida pela regulação sutil de cada instante de vida? Ou seria de morte? A única certeza de Pedro é que não há resposta possível. Ele vê em desespero a câmera se afastar, se prepara para chegar ao final. É quando há um súbito corte. Um par de mãos que tocam a vegetação ondulante e pés que se dirigem ao precipício. A câmera baixa, para acompanhar os passos. Chega até o ponto onde Pedro aguarda, olhando fixamente o mar. Há alguém que entra no canto esquerdo do plano, sem escondido pela grama alta do lugar. Uma mulher, os pés alcançando o lugar onde Pedro está. Homem e mulher sem se olhar. Apenas lado a lado contemplando a imensidão do mar escuro, intransponível. Ambos choram, sem, contudo, se olharem. Em um segundo, homem e mulher mergulham juntos, diante da tela, cortam as nuvens cinzentas, mergulham no mar infinito. Atônito, Pedro sente a presença, adivinha antes mesmo de voltar o rosto. Na velha sala de projeção, sentada ao seu lado, a mulher, sentada silenciosamente ao seu lado, olhos pregados na tela, um leve sorriso na curva do rosto.

sexta-feira, 23 de novembro de 2018

4.0

Nem isto nem aquilo Nem tanto ao sabor do vento Tão pouco em trajetória milimetricamente calculada. Nem tanto de sabedoria inafiançável tão pouco de inesperado. Ainda resta um tanto de alma a ser desvendada enquanto o corpo permanece em movimento contínuo tentando alcançar o céu.. Nem isto nem aquilo. Ainda cabe a poeira nas cartas guardadas no guarda-roupa mas o peito já se resguardada amiúde.E se o sorriso permanece no rosto ,em mudo convite, lá em cima resta a lua, inalcançável. ...Então dança, moça,por sobre a chuva..Molha teu corpo com todos os dias que ainda te restam e arrisca ter sempre um quê de esperança,como em desafio....Pula todas as poças, ri de todas as regras, só não te esquece que, no fim de tudo, seu único lugar intransponível é bem aí ,dentro de si e ama como se tua vida dependesse de cada instante de paixão... teu corpo.tuas regras mteu tempo...

sábado, 3 de novembro de 2018

Cartas a Helena II

Tenho a impressão de que passaram muitos anos desde que você nasceu... talvez porque o tempo, por aqui, tenha caminhado ao contrário. Sei que você ainda não conseguirá compreender, mas o fato é que, em poucos dias, tivemos uma eleição violenta, de todas as formas que uma coisa pode ser violenta e ainda hoje, uma semana depois, ainda tento encontrar explicação para tudo que vivemos. Em muitos níveis, nos tornamos uma sociedade mais cruel e perversa e temos medo do que ainda virá. A tristeza ainda habita em cada um de nós, e acredito que muitos vão demorar anos e talvez décadas para entender o que houve. Sei que você vai estranhar minha insistência em falar de política, isso quando você começa a descobrir o mundo.... Helena, o mundo é maravilhoso, mas dentro de tudo que há, preciso te dizer, Há os homens e as formas como se organizam para viver...E preciso te dizer também que há uns que acreditam terem mais razão do que outros e mais motivos para viver. Da mesma forma que você aprenderá a ver as emoções das pessoas e sua capacidade de conviverem, de criarem meios de se tornarem eternos, há aqueles que só sabem odiar, querida helena e infelizmente não podemos evitar que as encontre. O conselho que te dou é que saiba dosar uma pitada de coragem e um punhado de sabedoria para não se perder em disputas desnecessárias a quem só terá o ódio dentro de si... que tuas lutas sejam apenas para garantir que possas ser e que os demais também possam ser. E nesse espaço cabe toda uma vida... Estou confusa hoje e sei e entendo que levará muitos anos para que entenda minhas palavras. Mas se me comunico hoje é porque falo com tua essência, percebo que também irá se engajar no respeito a tudo que é humano e na afirmação da vida. Uma vida como a tua, absolutamente única e linda. Fruto de duas pessoas também engajadas no respeito e na afirmação de tudo que é belo e humano, teus pais...Daqui de onde estou vejo teu rosto refletir o amor que têm por você e vejo já no seu rostinho o início de um reconhecimento, de um afeto profundo, entre ocre e eles. E que lugar privilegiado esse meu, de poder assistir à construção do amor mais profundo, esse teu e de teus pais. E se posso te dizer uma coisa para que guarde com você, como um relicário, aberto quando o coração precisa de alento, é que teu pai tem amor profundo por tipo tua causa, cresceram e crescem a cada dia... E acalentam e amam e fazem planos...como cabe aos pais…enquanto eles tecem o afeto mais desmedido, você cresce a olhos vistos e seguimos todos, por entre tudo que acontece nesse país onde vivemos...

sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Cartas a Helena

Faz hoje três semanas que você chegou. E eu, que já me achava com os pés esticados, prontos para o voo, voltei meus olhos na sua direção e me perdi no tempo entre você, sua mãe e eu. Enquanto o mundo lá fora gira cada vez mais rápido, você cresce a olhos vistos. Já te vejo sustentar o pescoço, firmemente, como uma criança mais velha e por vezes nos encarar a todos, com a curiosidade de um recém-chegado. Estamos todos encantados com você, pequena Helena e eu me sinto a tal ponto apaixonada que chego a sentir uma dor física, cada vez que estou distante. Talvez sejam os 40 anos, que completo em menos de um mês...E, enquanto a vida me empurra em direção à maturidade, me vejo observar, encantada, teu crescimento, a cada dia. Teu pai e tua mãe parecem ter anos de experiência, tal a destreza com que te cuidam…Enquanto isso eu sigo, tentando ajudar aqui e ali, me perdendo nos teus pequenos gestos, acompanhando a direção do teu olhar, que se faz mais firme a cada dia e já te prepara para descobrir o mundo. Por aqui seguimos tentando sobreviver ao caos político. Não entrarei em detalhes, porque sei que ainda não é tempo de você saber dessas coisas... ainda há muito que ver e saber antes de tomar pé das vicissitudes do país. Por hora, fica com este relato de tua avó: os dias andam cinzentos, as pessoas, cabisbaixas. Estamos, nós progressistas, a um passo de enfrentarmos uma derrota eleitoral. Não pensa nisso. Pois há de passar. Por hora saiba que muitos se opõem; agora mesmo há estudantes nas ruas e pessoas com faixas e cartazes, brigando pelo direito à livre manifestação. Helena, na ânsia de proteger a liberdade, muitos foram às ruas, plantaram mesas e cadeiras, oferecem bolo e café e seguem a conversar, tentar mudar opiniões, sem briga. Sem ódio. Espero que tu cresças e ainda possa ver, nas esquinas da cidade, as praças ocupadas por gente que ainda tem esperança. Espero que você possa ter esperança e que conserve a coragem de acreditar na liberdade. Por hora essa é a única herança que te posso deixar...

sexta-feira, 5 de outubro de 2018

Eu escolho a vida

Eu vejo crescer em mim o medo de um iminente regime fascista com a mesma força que me invade a alma o encantamento de ver a minha vida e a minha história se enredarem em um minúsculo e miraculoso ser que tem meus olhos e os olhos da minha família.sao duas pulsões distintas.vida e morte..medo do provavel mergulho em um tempo de intolerância e luta e a esperança em ventos de afeto, traduzidos por minha própria carne reproduzida diante dos meus olhos..por hora, cedo ao impulso de mergulhar nesse amor profundo incondicional,que me faz enxergar cores e nuances e sentir o peito cheio de ar novamente..me perdoem os que preferem o ódio..hoje eu escolho a vida.