quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Sobre a lenda do cisne no lago

Sobre a lenda do cisne no lago, eternamente preso ao reflexo dos olhos alheios....ou sobre vida, morte e vida. Metáfora de um feminino que também leva tempo para nascer e que renasce continuamente mulher, a cada nova vida que se impõe a nós,em luta,encantamento e liberdade. Mas primeiro há que romper a bolha dos silêncios com os quais se recebe uma jovem mulher que nasce. Porque há que se proteger dos perigos do mundo, guardar este corpo, tão defeso ao ataque, tão sujeito a agressões. Necessário instruí-lo, sujeitá-lo a toda sorte de regras. Preservação, silêncio,decoro, singeleza. A toda mulher que nasce é dado um peso de existir em dores, de ser e saber-se fonte ancestral de pecado, objeto de disputa, fruto de desejos que se firmam na violência inesgotável do outro. Mulher que cresce, pernas que espicham, braços querendo alcançar o infinito?Voar, não!Pode ser perigoso demais, vai que se machuca, pode ser violada, um corpo feminino em crescimento,nada pode ser mais terrível do que oferecer-se assim inteira, ousando ser livre. Porque cabe às meninas a espera do olhar alheio,espelho que as oriente diante do que devem ser. Como um grande corpo de baile,obediente e silencioso. Também me coube um lugar, como muitas iguais a mim, de ser e estar. Em silêncio. e obediência.Corpo atravessado por regras, recomendações de recato. No corpo,nos olhos, o desejo de voar, de ser cisne..De ser mulher. E por que não ousar ser,sem medida ou limite, tudo aquilo que suas asas permitiram alcançar? E por que não negar esse lugar de espera, de limitação e dor, eternamente para os olhos alheios, a posse e a pequenez? Pois que é do feminino a expansão eterna, de si para o mundo, ao conhecer sua própria potência e liberdade, desse corpo que não pode deixar de aprofundar-se em sensível e movimento, amor e entrega, mas também criação e sabedoria? quantos seriam capazes de alcançar seu voo? Quais seriam as vozes que se ergueram para encorajá-lo? Pois qual seria a natureza dos cisnes senão voar, diante do mundo, sobre um palco, na irremediável tarefa de ser mulher? Corpo que cria, vida que renasce em ventre e ancestralidade, olhos que sonham o mundo? Porque é do amor compreender que asas são feitas para voar Então estende tuas asas e seja cisne, em poesia e afeto. Pois que seja da vida o exercício de renascer em sangue e lágrimas, nas mãos de tantos outros cisnes que te protegem e guardam. Desses úteros que se postam diante de ti, enquanto espera o tempo certo das coisas. Ainda há medo em teus ossos, ainda há dor na tua alma. Mas segue, rompe as amarras de dor que ainda prendem teus passos. Olha pro sol. E voa.

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