domingo, 4 de outubro de 2020

Da casa de Santa Teresa

Na casa da minha avó as gaiolas de passarinho ficavam todas dispostas na área de passagem da sala para a cozinha, em meio à escada de pedra que dava para o quintal. Todos os dias meus tios ou minha vó limpavam a gaiola, trocavam o jornal, colocavam alpiste nas tigelas e as gaiolas voltavam para o lugar. Eu sempre achei estranho ter um bicho de estimação que não se pudesse tocar ou soltar no quintal, mas admirava de longe a delicadeza das penas, o formato dos bicos, o jeito que punham as patinhas entre as grades de metal. Sons mesmo eu quase não ouvia, não dos passarinhos que viviam na gaiola. Ouvia muito dos que passavam pelo quintal e que eu via da janela da casa. Pela manhã o bem-te-vi, logo cedinho, antes de eu ser acordada pela minha avó. De tarde, os muitos sons de passarinhos que voavam perto da goiabeira e sempre de passagem, nunca parando por mais de alguns minutos e disputando espaço com as cigarras que - muitas vezes no verão - anunciavam mais um dia de sol. Era ali, no espaço livre do quintal de pedra que dava vista para o Catumbi, que havia uma reunião colorida e barulhenta de passarinhos, pombos, borboletas, todos livres, sem grades ou portas. Eu demorei muitos anos para entender a lógica das coisas, das engrenagens que permitem uma canção nascer, dessas que a gente só canta em liberdade. E me vi pequena, sentada no degrau de pedra da casa da minha avó, esperando os passarinhos nas gaiolas cantarem. Tantos anos depois, nos desencontros de cada dia - me dei conta de que era a liberdade de ir e vir, no percurso da vida, o que fazia a canção mais bela. Assim como era o afeto primeiro do gesto da minha avó de me acordar já de meias, no dia de escola - o que tornava o dia mais doce. E adoçar meu leite, e esquentar a água. E me deixar livre para ir e vir, porque era naquele lugar de colo e histórias, onde o amor sempre estaria. Sem amarras . No percurso do calendários, no ponteiro do relógio, a vida me trouxe muitas gaiolas e nem sempre era possível cantar. Muitas criadas por mim e minha terrível insistência em compreender os sentidos e vividos. Por vezes a voz embargava e a obrigação da sobrevivência turvava os olhos. Me custou muito ver minhas grades, tantas portas que eu nunca pude abrir. Tantas outras que dinamitei sem necessidade. Até entender que a música soa mais bela na liberdade de ir e vir, na certeza do amor que atravessa o peito, que existe por si. Essa era a poesia que eu não compreendia na infância, cujo sentido exato talvez eu não consiga entender jamais. Sobra contudo a certeza da impermanência do tempo, no correr da vida, e o sentido de viver e ser amor, na liberdade de sentir, poesia e prosa, caos e tempestade, fluxo que escorre dos dedos até alcançar a nota exata- imprecisa por definição - infinita por natureza. E nesse universo , as palavras e definições não abarcam. Nem poderiam. Para além de grades, portas e definições, há o amor que existe, conexão com o universo de ser e estar. E é tudo. sei que de onde ela está minha vó me dizia, como sempre disse: “minha filha, coração é terra onde ninguém pisa”. E do colo que tanto me faz falta nesses dias tão tristes, o silêncio falaria por mim, de todas as coisas cuja sabedoria ainda não ouso compreender.

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