Mas antes que se pense que a lente capturou o real por excelência, convém lembrar que uma visão tem infinitos pontos, como um prisma que oferece a cada lado uma cor diferente, dependendo do ângulo que se quer olhar. Um filme é nada mais do que visão de alguém sobre algo, traduzido em palavras que buscam mobilizar toda uma equipe que vai produzir o que outro vai vender e outros tantos vão sonorizar, cortar, editar, polir, construindo uma mensagem que é deveras diferente daquilo que o primeiro pensou e também daquilo que se pôs no papel.
O cinema é construção e percepção coletiva. E nada mais suscetível à percepção do que potencializar todos os sentidos em visão e audição, canalizados em estado de inércia em uma câmara escura. Ao assistir um filme, entrega-se a alma à historia escolhida, todo universo de sentidos particular,todas nossas experiências, dores e alegrias tornam-se uma só percepção, na forma como vamos decodificar cada símbolo ou cor, traduzidos em luz e som.
Como uma trama de cores, o cineasta fia sua história quadro a quadro, determinando os retalhos que vão se apresentar ao público como construções imagéticas, penetrando como agulhas finíssimas em seu conjunto de significados ou somente tocando a superfície de suas emoções mais externas, dependendo da forma como o tecelão-cineasta vai compor a trama que quer contar.
Nos primeiros filmes, o simples efeito do movimento gerava êxtase na plateia, assustada ante a óbvia realidade que se descortinava ante seus olhos. Era o trem saindo da estação com os irmãos Lumiére e logo cada espectador tomava seu lugar no vagão. Era preciso andar depressa e levar a todos na viagem. E o povo, ávido por emoções, embarcou na aventura.

Mas logo os artistas da imagem em movimento perceberam o poder que tinham nas mãos. Podiam criam realidades, construir universos, subverter as leis da gravidade e muitas mais. E vieram os filmes fantásticos, de conteúdo surreal, trazendo seus monstros e situações bizarras, provocando desconforto e fazendo pensar. Ora, se o mundo andava de ponta cabeça na tela, por conseqüência deveria também estar na vida real. E quem se arriscava à viagem dos sentidos, levava pra casa uma nova percepção. Mas eram poucos os corajosos, pois a grande maioria queria navegar de olhos fechados, enxergando no cinema a fuga para a dura realidade que enfrentavam todos os dias.
E vieram os novos tecelãos, costurando sons aos signos de antes, dando sentido aos passos e gestos que tomavam lugar nas grandes cenas. Podíamos ouvir as palavras e também o silêncio das grandes guerras. Ficamos mudos. Mas era preciso resistir ao horror. E vieram aqueles fantásticos italianos com suas maravilhosas máquinas de mostrar o mundo, se distorcendo em encontros e desencontros nas aldeias de suas terras ou escarafunchando por dentro das casas para tentar capturar o tempo exato da vida, sem mistificação. Estava criada a nova realidade.
Mas a verdadeira bomba que não chegou a cair na Terra explodiu depois da segunda guerra, na incrível fábrica de emoções, criada para entreter milhões, em sensações e sustos ao bel prazer do público. Não havia limite para as histórias que poderia contar, mas o encantamento estava em viver as mais loucas aventuras dentro da sala escura e não conseguir se lembra de nada no dia seguinte. Afinal a sucessão de imagens nunca fora tão rápida, a música tão emocionante e os gestos tão nítidos. Finalmente encontrou-se a perfeição.
Em série os produtos saiam para todos os pais, um por outros embalados de forma a não parecerem os mesmos que dantes já haviam chegado por lá, para jubilo da plateia. Alguns protestaram, saíram de seus estúdios e, câmera na mão e idéias na cabeça, romperam o poderoso discurso fantástico. Foram poucos e falaram para poucos. Para entender sua mensagem era preciso um tempo que não era mais disponível. Era preciso sentir rápido, emocionar-se intensamente e logo respirar fundo e passar para mais uma emoção. Nada devia permanecer.
Mas quando o público já não conseguia mais enxergar a diferença entre os produtos e os olhos já não identificavam mais as imagens, somente som e sombra, veio a luz, num fragmento de sentido. Entre uma imagem e outra existia algo alem do êxtase ou do horror, existia a compreensão do universo mesmo que tinha por função o devaneio e o esquecimento. Fôramos criados na lógica daquele tempo, podíamos perceber suas costuras e remendos, podíamos entender suas mensagens e intenções. Nossos olhos e sentidos postavam-se então em alerta, prontos para receber a descarga de emoções, mas não nos deixar inebriarmo-nos pelo canto das sereias. Já sabíamos ver e enxergávamos no minúsculo tempo do intervalo e uma imagem, um discurso, uma intenção.
Erramos poucos, com certeza, mas já estávamos prontos a dialogar. Bastava dar ao tempo do filme a cadência exata de irrealidade que lhe cabia, o gesto contido nas margens da tela que era o limite mesmo de sua existência.
O filme não pode ser maior do que nós, ele não nos ultrapassa, nos convida a dialogar com ele. É preciso não se deixar levar pelo trem de olhos bem abertos para apreciar a paisagem, mas fechar os olhos para ouvir o ruído de cada uma de suas engrenagens e apreciar-lhe a beleza. E o que faz sentido, em harmonia com o conjunto de símbolos que chamamos existir, este é o verdadeiro tempo do cinema e o que lhe confere a técnica da arte que se propõe a representar. Não é além do homem, faz parte dele e se construiu de sua singular capacidade de significar. É tempo e arte, fragmento e todo, real e ilusão. Ao homem. pra ele e por ele. Essa é a verdadeira magia.
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