sexta-feira, 22 de maio de 2020
Vazios
De provisórios e vazios vamos construindo nossos cotidianos, em meio à pandemia que avança, a cada semana somando mais uma casa decimal ao número de doentes e mortos. Nas cores esmaecidas da rotina viramos zumbis, resgatando pedaços de rostos, risos, memórias e afetos, tentando sobreviver. Somamos nossos dias aos hábitos que já não temos mais e colecionamos histórias de horror para a hora de dormir. O momento mais terrível não é quando a luz apaga e todos se calam. O silêncio mais frio, que gela a espinha, vem em plena luz do dia, quando abrimos nossos olhos e descobrimos que não estamos em um pesadelo, mas na incompreensível realidade que se estende infinitamente diante de nosso desespero. E ignoramos os corpos negros, furados à bala, nas esquinas. Que não contam nas estatísticas, normalmente feitas por mãos brancas, limpas, preservadas em salas acumuladas, sob paredes de cimentos, vidro, tijolos, quarentena. Aqui e ali, resistências, lágrimas e luta. Enquanto o botequim da esquina vai pouco a pouco retomando os copos molhados enfileirados diante do balcão. E aquele famoso diretor planeja o lançamento do novo filme. Nos. Cinemas. As lojas oferecem máscaras em promoção. E o Estado convoca um a uns seus melhores trabalhadores. Médicos. Enfermarias. Professores. A convocação é geral. Precisamos retomar a economia. Mas que matemática é essa que divide em mortos e vivos aqueles que irão sobreviver, que contabiliza valores ao bel prazer dos estatísticos, que acumulam prognósticos aterradores se não retomarmos a produção. De que produção falamos, senhores? Balas? Fuzis? Máscaras de oxigênio? Corpos? Enquanto isso as enfermarias seguem em silêncio, corredores frios atravessados pelos passos exauridos de mulheres de branco, luvas e máscaras que cortam fundo na pele, que já não conseguem mais chorar. Mães e pais e filhos seguem na fila de espera de internação e os jornais anunciam 1181 mortos, dentre os contáveis, número onde jovens negros executados em favelas não costumam figurar. Pandemia? Genocídio. Sistemático, constante e sobrevivente ao vírus. E enquanto os homens empunham armas, mulheres lidam com respiradores, cada dia mais escassos. E hoje é dia de “live” de quem? Se sobrevivermos ao vírus, certamente sucumbiremos ao marketing. Invadindo cada espaço da melancolia cotidiana, inspirando a conjugar o verbo resiliência. Mas o branding que não se mostra é a interminável fila de trabalhadores, sem máscaras, que seguem garantindo o isolamento alheio. Ficamos em casa não mais por apenas necessidade física, mas porque quase todos sabemos que já fazemos parte das estatísticas e morremos todos aos poucos, a cada cova que se abre, a cada máscara descartada, a cada enterro sem flores, sem sentinela, aos milhares de doentes não contabilizados, a tudo que morreu. Deveríamos morrer também a cada operação policial, a cada chute de coturno na porta, a cada cesta básica alvejada, enquanto muitos morrem de fome. Mas seguimos aqui, , doentes, confinados ou não, esperando o dia seguinte, sem trégua, sem salvação, buscando em um fragmento qualquer de pôr do sol a brusca salvação pela poesia. E sem saber quantos e como seremos, amanhã de manhã.
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