segunda-feira, 4 de maio de 2020

Garotas da capa em tempos de pandemia

Garotas da capa em tempos de pandemia Fui criada por uma mulher linda. Tão linda que me fez acreditar que ser linda era a última coisa que eu precisaria ser. Devia ser inteligente, ter independência financeira, acreditar nos meus sonhos e jamais abaixar a cabeça sem uma boa razão. Com ela também aprendi a entender a importância da coletividade, através da qual nossas ações determinam a vida de outras pessoas, podendo salvar ou prejudicá-las em igual medida. Na minha infância, percorri corredores de hospitais públicos e postos de saúde, enquanto minha mãe exercia sua profissão e foi ali que entendi que, independente do meu trabalho, havia o compromisso fundamental com a vida humana, a proteção dos direitos humanos, a empatia e a solidariedade. Quarenta anos depois essa mulher continua sendo linda e atravessa os corredores do mesmo hospital público com seus belos olhos verdes e quatro décadas de medicina social exercida cotidianamente, na competência técnica das suas ações e na empatia que ainda conserva, ainda que os dias nos corredores de uma emergência pública sejam muitas vezes duros. Em tempos de pandemia essa mesma mulher, que já não precisaria estar à frente de sua função, continua honrando seu juramento, proteger a vida humana. Mas ela permanece trabalhando, por escolha e compromisso com seus colegas de trabalho e com a profissão que abraçou. As vezes a vejo em fotos usando os equipamentos que a deveriam proteger, máscara, touca, jaleco, luvas de proteção - por vezes só conseguimos visualizar seus olhos, na parafernália que usa. Ela segue, atravessando a achada vez mais lotadas emergências do hospital público onde trabalha. Não me lembro de alguma vez ter visto uma médica ou qualquer outra profissional de saúde ter sido sequer cogitada para ser a cover star de revistas de moda. Nem ela nem as milhares de trabalhadoras, caixas de mercado, farmácia, atendentes, professoras, mulheres certamente lindas, mas invisíveis para a indústria da moda aparentemente, afinal, o que continuamente vendemos enquanto profissionais de comunicação é o sonho. Não a realidade. Contudo, em tempos de pandemia, quando nossos imaginários do que é comum e cotidiano são esgarçados ao limite, mortes se somam - em histórias e imagens cada vez mais próximas - às notícias do dia, vem das trabalhadoras dos serviços essenciais a garantia da manutenção de sobrevivência de milhões de pessoas. Mulheres lindas, corajosas e expostas cotidianamente ao perigo, tantas e tantas vezes que se torna comum vê-las, construindo uma ideia de normalidade que em nada se relaciona com o real perigo que correm, seja por falta de condições de trabalho, seja pelo sentimento de compromisso que as une. Seguem,contudo completamente alijadas do que se convenciona chamar normal, em revistas como a Vogue Brasil, por exemplo. Ali, na edição de maio de 2020, enquanto no país somamos cerca de 7000 mortes, das notificadas, Gisele - a personalidade que supostamente representaria a imagem feminina do país diante dos olhares estrangeiros - segue linda, vestindo Prada e falando das mudanças da rotina que o Covid-19 trouxe à sua vida. Longe de desconhecer a possível modificação da vida de qualquer pessoa diante de uma pandemia e sabendo que cabe à capa de uma revista de moda enquadrar esteticamente uma personalidade, me parece urgente questionar que critérios de beleza direcionam a linha editorial de uma revista, quando muitas de suas leitoras potenciais ou reais permanecem - quando privilegiadas- confinadas ou expostas ao risco de contaminação em cada dia de trabalho? De que normalidade falamos? Da construída, que talvez justifique o valor estampado na capa da publicação, acessível a um público específico para quem o confinamento mais parece um longo feriado chuvoso ou da normalidade real, onde mulheres saem para o trabalho todos os dias, por vezes sem máscaras, obrigadas a trabalharem seja qual for sua condição de saúde, marcando seus belos rostos com cansaço, suor e o uso constante de (quando há) máscaras de proteção? De que beleza falamos, ou qual a importância do belo, diante de um cenário de morte, caos na saúde pública, fome, desemprego, desesperança e ansiedade? Seria irresponsabilidade, perversidade ou apenas a constatação de que sim, não há a menor relação entre o Brasil que a revista Vogue orgulhosamente estampa na capa e o Brasil real? Por fim, cabe questionar a importância de Gisele Bunchen como capa de uma revista que já sinalizou anteriormente com a perspectiva de que comprar uma bolsa Chanel, orçada em 2016 em 5000 reais pode ser um bom investimento ou onde ainda hoje, vislumbrar peles negras ou mulheres “fora do padrão” é uma raridade? Afinal de contas, de que beleza fala a Vogue? E como seguir vendendo o mesmo produto, em um mundo onde nada restará como antes, mídia ou sociedade? Enquanto escrevo esse texto, belas mulheres organizam suas roupas para começar mais uma semana de trabalho, muitas sem máscaras de proteção, obrigadas a seguir trabalhando, por imposição dos patrões, necessidade de sobrevivência ou compromisso humano, enquanto a capa nova da Vogue, com a modelo mais bem paga da história da mídia impressa brasileira, chegará às bancas virtuais e reais nessa primeira semana de um mês de maio onde aguardamos o ápice da curva de contaminação pelo Covid-19, as máscaras ainda não são distribuídas para todos os trabalhadores, a presidência da República segue em sua campanha pelo fim do isolamento e a capa da Vogue continua custando R$20,00, a quem puder pagar. #voguebrasil #vogue #capamaiovogue #covid19 #coronavirus #revistademoda fonte: https://vogue.globo.com/…/gisele-bundchen-celebra-simplicid… https://vogue.globo.com/…/bolsa-da-chanel-pode-ser-investim… https://theintercept.com/…/coronavirus-supermercados-mund…/…

Nenhum comentário: