domingo, 5 de abril de 2020

Do corona virus ao pos contemporâneo: da prosa cotidiana a poesia.

Apertem os cintos! O Piloto sumiu. Ou talvez, ele nunca tenha estado lá. Em tempos de pandemia, fora os inescapáveis dados sobre mortalidade e curvas de crescimento de contaminação, onde não se sabe direito nem quando ou como refrear a imensa onda casos que pululam globo afora, uma das maiores justificativas de pânico parece ser a incerteza sobre quando retornaremos ao universo conhecido de nossas certezas. A verdade, acachapante, é a de que nunca ouve Kansas, Dorothy e que a estrada dos tijolos amarelos certamente não conduziria, em uma visão filosófica, a lugar algum. E se houve na humanidade um momento em que a sensação geral é a de não lugar, talvez seja o presente momento. Por todo o lado enquanto Estados (a maioria deles) e instituições tentam construir soluções para a crescente contaminação e mortalidade, tendo o tempo como algoz, indivíduos enfrentam dilemas igualmente urgentes, como a incerteza sobre salários, negócios, distribuição de alimentos, políticas de contenção, número de mortes, possibilidade de contaminação, regras e regras e mais rege as sobre práticas cotidianas antes tão corriqueiras, como as compras que se traz da rua, ou o simples ato de jogar o lixo fora. Em um cenário distópico, em que a única realidade possível é a de que não há garantias, como compreender o espaço e tempo nos termos que fomos ensinados a conceber desde há muito, enquanto constituímos nossos imaginários de coletividade, produção e subsistência? Como contar o tempo, se o intervalo entre o tempo do trabalho e o tempo do lazer se permeiam e o espaço público e privado tensionam as relações mais formais? Por todo lugar, salas de aula, lojas, serviços, migram agora definitivamente para o mundo virtual e já há muitas vozes engrossando o coro do: “quando teremos nossa antiga vida de volta”? A dura realidade que alguns já anteveem é que jamais retornaremos ao estado anterior. E como fazer com tudo que aprendemos sobre o mundo, as relações, as dimensões espaço-temporais, as culturas que desenvolvemos por centenas de anos, até culminarem no intenso fluxo de pessoas e bens ao redor de um globo cada vez mais conectado. Mais seria mesmo assim tão conectado? Ou estaríamos de alguma forma assimilando o espelho em vez de Alice, ao identificarmos nas imagens com as quais convivíamos diariamente uma parte representativa da vida, para quem recorríamos em busca de afeto, legitimação e segurança, em mídias e redes dia afora, sons, imagens e afeto consolidando nossos corpos e mentes? E então, em um piscar de olhos, um intenso silêncio impõe-se ao caos e vamos pouco a pouco nos apropriando de nossa solidão. Ao redor não mais os 500, 600 ou mesmo milhares de seguidores de antes, a extensa agenda de contatos, os programas diversos, vão pouco a pouco apagando como monitores sendo pouco a pouco desligados. E o que fica é o universo interior de dores, inseguranças e, felizmente, essência. O que faremos quando só o que ouvirmos for nossa própria voz? Em que lugar pensar os fluxos contemporâneos de afetos, cultura e sociabilidades, quando não pudermos mais interagir como antes? De que modo as mídias sustentarão as práticas sociais em um universo onde o próprio social vai sendo pouco a pouco reinventado? Nesse cenário onde o tempo se impõe ao espaço e o público e o privado se mesclam já não é mais possível pensar apenas no contemporâneo. Essa enorme colcha de retalhos onde a política e a economia se mesclam em narrativas múltiplas, criando outras formas identitarias, vieses, nuances até o ponto de se fundirem em uma liberdade sem precedentes ou a mais fundamentalista cultura de auto-extinção, cujo exemplo pode ser o que melhor aprouver: forças armadas, exércitos paralelos, infinitos mercados virtuais e distanciamento social agravado pela desigualdade de condições de sobrevivência que garantem a cada um seu lugar no globo, enquanto fome, doença e desesperança moldam-se ao cenário cotidiano e não há manchetes que deem conta de tocar os corações. Tudo seguiu enquanto a modernidade ordenava corpos e ideias, tempo e espaço, normatizando a poesia e formatando vontades, além de invisibilizar diferenças de dores, Terra afora. Até que tudo ruiu e a pequeneza de nosso estado de certezas era tal que não foi necessário mais do que alguns poucos fragmentos de vida para romper a paz fictícia que tanto buscamos. E em meio ao mar de corpos que se acumulam em cada cidade, ao terror e à desesperança, em meio ao constante sobressalto do peito de cada um, a vida de todos os dias racha ao meio e os relógios da modernidade paralisam os ponteiros em um instante interminável, onde atônitos, corremos às janelas para observar o crescente silêncio, como se pela primeira vez o tivéssemos ouvido. Como se as mortes e o sangue das esquinas, a violação de mulheres e crianças, os corpos crivados de balas, o caos e o desespero nunca nos tivessem atingindo. E as epidemias, constantes, viessem tocar apenas as vidas alheias. Pois hoje choramos todos, a terrível constatação de que nunca estivemos no controle, de que o risco sempre esteve à esquina, enquanto não entendíamos o que afinal queria dizer “comum”. E enquanto ambos os monumentos da modernidade e do contemporâneo racham juntos, levando pedaços de concreto e metal ao centro da praça, que permanece vazia, ainda há um pôr do sol que nos convida a escutar o silencio dentro de nós e redescobrir a poesia da vida enquanto há tempo. Uma verdade transparece, por entre os fragmentos de luz que nos chegam da janela: Sempre fomos um. Mas por muitas vezes nos perdemos em projeções equivocadas do eu. A sobrevivência sempre foi coletiva. Nos confundimos pelos caminhos solitários de ser imagem além do corpo. Pulsação fora da rotação de si e do mundo. Roda gigante na inquietação por controle de tudo que avidamente colocávamos para dentro. Ávidos num vazio que não diminuía a medida que inutilmente tentávamos esconder. A dor sempre existiu. Mas por ora era silenciada pelo barulho de outras narrativas. Eram tantas prosas, caminhos, fluxos e fugas num caleidoscópio de existência rasa. Corríamos na contramão do fluxo do mundo. Esbarrávamos em nós sem pedir licença. Na crença de estarmos maior. Qual a medida certa de nossa existência? Qual o passo no compasso da vida comum? Que linguagem trará nosso entendimento? Somos respostas aprendendo a formular perguntas. Somos dois tentando ser um. Somos vida em estado de pausa. Na dança de sermos apenas nós. Sós. Solares numa manhã que ainda não desabrochou no horizonte. O horizonte não está lá fora. Ele sempre esteve aqui. Ele irrompe de si na aurora austral de cada um em suas casas. Ele gera luz em estado de poesia e percorre caminhos inéditos na nossa aprendizagem do aprender. Pois é preciso reaprender a aprender o obvio. O simples nos convoca como enigma de tudo que fomos. Somos. E seremos. Outros na esteira de um novo olhar. Por Debora Restum e Tatiane Mendes Este texto também está em http://artesadoar.blogspot.com/

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