domingo, 26 de abril de 2020
De Alice diante do abismo
Então Alice contemplou o abismo: era profundo, negro, de interminável extensão. E absolutamente irresistível. Havia sido uma longa jornada, de tantos anos, em busca de um caminho seguro. Inesperadamente, quando acreditara estar no final da estada, uma curva inesperada a jogara de joelhos no chão empoeirado de suas pequenas certezas. À sua frente, a vertiginosa montanha de pedra, que a interrogava silenciosamente: decifra-me ou te devoro. Tentou contornar o obstáculo, procurou atalhos, refez seus cálculos de viagem até concluir que não havia escapatória: ou mergulhava naquele momento ou ficaria o resto da vida contemplando a dúvida que tinha diante de si. Quis culpar-se pelas decisões tomadas. Não poderia ter contornado à esquerda? Talvez se pudesse ter pronunciado algumas palavras, podia ter voltado atrás. Mesmo sem nenhuma reação, Alice adivinhou nos contornos inexoráveis da pedra a resposta: não podia. Se tivesse arriscado um passo diferente da essência que tão duramente conquistara, cavando solitária a saída da dolorosa cela que criara para si mesma, teria sucumbido e talvez morrido. E que morte poderia ser mais dolorida que a de perder a si mesma, quando finalmente conseguira enxergar seus próprios olhos no reflexo do espelho? E suas asas, ainda molhadas, carregando o peso das lágrimas de tantos anos e o medo que a paralisara por tanto tempo? Mas e agora isso? Fora para ter diante de si a própria morte como prêmio, que caminhara tanto? O que aconteceria se mergulhasse? Quanto tempo até arrebentar os ossos no inescapável final, que certamente a aguardava? Quanto de sangue e lágrimas teria, no percorrer da trajetória, antes de morrer novamente, sem respirar, sozinha, em silêncio? Mais do que isso, que instantes de êxtase seriam necessários, o suficiente para compensar o gesto insensato de saltar? Do breu que a contemplava, nenhum som vinha ou luz que ajudasse a decidir. A decisão seria apenas sua. Alice inspirou o ar frio. Uma. Duas vezes. Profundamente. Naqueles breves instantes, sentiu a força dos braços, recém conquistada, o movimento das pernas, o peito encher-se de ar, como que um sopro de vida. Olhou para as mãos. Vazias. Como no início do percurso. E lembrou do propósito da caminhada. Fazer suas próprias escolhas, viver sua própria história. Em dor e silêncio, mas também busca e descoberta. Diante de si, o abismo parecia sorrir, confiante de que a conquistara. Então Alice se levantou. Tomou a dianteira, ergueu os braços, saltou. Nos breves instantes antes de desaparecer, Alice sorriu. Finalmente compreendera. O abismo que tinha diante de si inescapavelmente, estava dentro dela. Fechou os olhos, contemplou o silêncio definitivo dentro do peito e mergulhou
Trilha sonora: https://www.youtube.com/watch?v=NNbM9R53coo
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