sábado, 7 de novembro de 2015
Sobre mães e filhas
Acabo de ler Paula, romance de Isabel Allende sobre a doença que acometera sua filha e de todo o tempo entre o diagnóstico e a morte. É impossível não emocionar-se com a narrativa, permeada de construções inteiramente pautadas no afeto, em que se observa claramente a distensão do fio que paira entre a ficção e a realidade. Sobretudo, é doloroso para qualquer mãe de meninas. Não que os úteros sejam diferentes. Mas existe, penso eu, um elemento feminino que nos cerca,algo de misterioso, de denso, que transparece a partir do momento em que descobrimos outro útero vivendo dentro do nosso.Há um indefinível espelhamento, uma expectativa distinta, que se confirma quando se reflete sobre o significado de ter uma menina.E se filhos são,em si, milagres, há nas meninas algo particular, inexplicável, que mistura ao seu tecido um tanto de poético, visceral, permitindo que venham ao mundo pessoinhas feitas de cores únicas, exatamente como a minha filha. Sim, eu também sou parte desse milagre, que cresceu em minha barriga por nove meses e, de repente, antes que eu estivesse pronta, me contemplou por entre camadas de cílios longos e olhos negros, inescrutáveis. E se Simone de Beauvoir estiver certa, é preciso certo tempo, não só para ser mãe, sobretudo mãe de outra mulher, que se conectará a essa cadeia de úteros, gestando vidas e afetos por aí, mesmo que não ponham filhos no mundo. É preciso estar pronta para proteger-se e protegê-la, em um mundo onde o corpo feminino torna-se estratégia de marketing, moeda de troca, poço de visibilidades que nos inviabilizam. É preciso retirar das nossas palavras e gestos qualquer resquício de preconceito que possa, em qualquer medida, fazer sua filha acreditar que seu corpo deve ser inibido, enquadrado, limitado. É preciso ensinar, entretanto, a força, em comunhão com a ternura e deixar que os bebês se transformem aos poucos em pequenas fadas dançantes, que pulam pelo mundo, descobrindo-o. Deixar que seus dedos percorram todas (ou quase todas) as superfícies, mapeando espaços e construindo memórias e afetos. É preciso deixar que aprendam, o quanto antes, a sorrir e a andar de mãos dadas, consigo e com o mundo.Nesse momento, já não somos nós que as pomos no colo.Ao contrário. Somos acalentadas por elas. E quando as pernas e braços crescem e buscam o mundo, é preciso que aceitemos os gloriosos arranhões da infância. Logo piscaremos os olhos e os cabelos crescem, as pernas espicham, o quadril se arredonda e temos jovens mulheres entre nós. E então o medo. Como proteger e guiar alguém que já não nos demanda mais apontarmos a direção correta? Entre nós e elas, o mundo e toda sua capacidade de ser, a um só tempo, cruel e sedutor. Elas caminham, cometem erros. Choram. São enquadradas, em seus corpos femininos. Sofrem. E crescem, em poesia e ideias. Sangram.E sangramos junto com elas.E o tempo,que não cansa de transformar suas fisionomias, continua nos surpreendendo com a beleza de seus rostos.
Súbito, olho seus cabelos longos, os olhos negros e me deparo com uma mulher, cunhada por poesia e ideias, no auge da vontade de crescer e mudar o mundo. E me remeto a Paula, filha de Isabel Allende, cuja vida fora interrompida por uma grave enfermidade. E tenho medo. Corro ao quarto de minha filha, na ânsia de vê-la, de conseguir protegê-la do correr dos anos e de todo mal. Contemplo seu rosto sereno enquanto dorme. E então compreendo a inúmera quantidade de “mortes” ocorridas em todo o tempo em que estivemos juntas. A do bebê moreno, agarrado a sua mãe adolescente, enquanto ambas crescíamos. A menininha que criava festas de aniversário em nosso quarto, a cada vez que eu voltava do trabalho. A da menina de cabelos cacheados, que corria pro meu colo ao menor sinal de perigo. A adolescente falante e inquieta, esticando os braços para criar asas e fugir de mim. Todas elas, de alguma forma morreram, mas se perpetuaram na moça de quase 19 anos, com uma determinação absurda, ante o sorriso meio irônico de sempre, que me faz sorrir sem saber porquê.E os olhos negros, que mergulharam em mim desde nosso primeiro encontro,há 18 anos. Em muitas, inúmeras coisas, essa mulher que se forma me ultrapassa,me supera, seja pela força ou por sua delicadeza. Do meu lado, continuo temendo e esperando o momento da próxima “morte” e qual faceta será a seguinte, modelada pelos ponteiros do relógio.
No fundo, por trás das minhas lágrimas, contemplo seu rosto e vejo sorrirem dali todas as meninas que você e eu, filha, fomos e deixamos de ser. Estamos ali, você bebê e eu adolescente você criança e eu adulta (ou quase), eu e você aqui, nos limites e potências do crescimento. Ante o correr inescapável do tempo continuamos invariavelmente de mãos dadas.
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