terça-feira, 15 de maio de 2018

Aviso aos navegantes

A todos aqueles que estão nesse barco, atravessando a tempestade .a todos aqueles que tem acordado no meio da noite com o som continuo do relógio,em voltas intermináveis. E que se perguntam :qual o sentido de tudo afinal?no balançar das ondas quantos mais restarão?a cada dia mais corpos caem nas águas negras do esquecimento.uma a uma as memórias vão se desmanchando ante a ação do vento,sem conseguir contudo romper a camada espessa de poeira sobre os móveis.em vão batera às portas.ninguem abrirá.. deverá continuar sua trajetória na mais completa solidao.agora já sabe qur nao eh certo que consiga alcançar o final do túnel . nem tampouco de que haverá um final.mas precisa continuar.... seguira em silêncio ouvindo os ecos das conversas alheias, gargalhadas exageradas, sussurros e lamentos.nao os ouça.estao todos muito atras de você, construindo em areia seus castelos de pequenas certezas.prossegue.em algum momento as paredes nuas e frias do corredor te levarão a uma unica porta por onde só tu pode passar . atravessa-a.ali caminhará até a parede e então ao contemplar o espelho chegara entao ao final de tudo.ou seria apenas o princípio?

terça-feira, 8 de maio de 2018

Pedras.Muros.Portas.Certezas. Quando tudo que ela queria era ser pena voando no ar, pés esticados e mãos tentando alcançar o infinito... Palavras.Frases.Fórmulas. Para quê tudo isso, se a vontade era apenas girar o corpo em movimentos precisos,arriscar um passo e voar? Tantos anos, tantas páginas viradas, titulos, aprovações, currículos, obrigações?Enquanto isso,no fundo do armário os sonhos, presos entre as teias de aranha, sem utilidade aparente. Enquanto isso o corpo curvado entre os livros,inúmeros e a vontade de voar.E o tempo do relógio a bater sempre no mesmo ponto.Enquanto escreve initerruptamente, ela sente as vérterbas da coluna dolorosamente dobrada, latejando os sonhos que nunca viveu..Será que ainda há tempo?O esforço a cada dia é maior, as lágrimas não cessam de cair e a cada momento a pilha de textos só faz aumentar. E se ela soubesse que dentro do armário ainda há a mesma caixa fechada esperando o dia certo de ser aberta? Ali no fundo, as mesmas sapatilhas cor de rosa, guardadas toda a vida para o dia seguinte. Enquanto isso tudo espera e a vida não cessa de perguntar:até quando?

sexta-feira, 13 de abril de 2018

um dia,como muitos outros

Trilha sonora:https://youtu.be/Bn3_2nz7VRI

Era um menino e uma menina. Viviam no mesmo bairro
Estudavam na mesma escola
Como muitos outros.
E como muitos
, tinham amigos,jogavam no recreio E detestavam matemática
Um dia, como muitos outros dias
A menina sorriu como sorria muitas vezes.
foi a primeira vez que o menino viu.
e a única vez da qual ele se lembra
O menino e a menina sorriram um para o outro,na volta pra casa.
e por muitos outros dias,estivessem juntos ou separados.eles sorriam um para o outro.e um dia a menina percebeu que tinha um sorriso que era só dela.
O tempo passou como sempre acaba passando e no sorriso de cada um eles esqueceram de sorrir um para o outro.
o menino sumiu .a menina chorou.
E por muito tempo so houve silêncio ao redor.
Um dia o menino olhou pra trás e viu que fazia muito tempo que não sorria .olhou a menina ,que já nao o olhava mais.
ele esperou.entao um dia fechou os olhos ficou em silêncio e estendeu as mãos.
Por algum tempo nada aconteceu e então quando ele menos esperava, sentiu duas mãos segurando as suas e não precisou abrir os olhos para saber quem era.
e desde então o menino e a menina passaram a sorrir e a chorar juntos todos os dias,como tem que ser todos os dias, quando temos sorrisos que não são só nossos e mãos que não permanecem sozinhas por muito tempo .
assim, quando eles menos esperavam a vida fez uma pausa, apresentou um desvio, gelou o coração dos dois.
menino e menina com medo.
sem lembrar de sorrir.assim foi por algum tempo.ate que um dia,como são muitos dias,ele viu que ela sorria e ele sem perceber, não pôde deixar de sorrir.
menino e menina,que já não eram mais dois.passaram a ser três, para sorrir e para chorar,como são muitas vezes as histórias que começam com um sorriso e que permanecem,quase sempre,com mãos estendidas,pelo tempo que for . Trilha sonora:https://youtu.be/Bn3_2nz7VRI

segunda-feira, 2 de abril de 2018

Helena,vem ver o mundo

Helena,tão bela,ainda não conhece o mundo

Não sabe de todas as guerras

Desconhece os murmúrios de dor

Ignora o sofrimento humano

Não ouve as mães que choram por seus filhos, o sangue no asfalto,

os feios carros pretos,subindo incessantemente as ladeiras

Helena não vê o rosto do homem, que acorda sobressaltado,pensando no emprego que perdeu.Ali do lado do berço, o segundo filho dorme e o terceiro espera para nascer

. Helena não sabe o gosto amargo das esquinas dessa cidade, onde o ódio e a intolerância matam.no grito ou na bala, qualquer projeto de liberdade. Helena não sabe nada.

Só sabe que quer vir.

Quer ouvir o latidos dos cães, a preguiça dos gatos no chão,

sentir a brisa fresca de outono,caminhar na areia branca da praia, mergulhar no mar azul.

Helena quer girassóis nos cabelos,

quer ouvir as canções dos homens,

quer inventar sua própria poesia.

Enquanto escrevo, Helena chegou na janela, olhou lá de cima e cismou que era hora de vir aos homens.

Enquanto dormimos ela prepara sua chegada, silenciosamente, trazendo as cores de uma nova estação.

E eu,que há muito não sonhava, hoje espero seus braços e seus olhos nos meus..

Dorme Helena, enquanto é tempo,

para na hora certa acordarmos para a sua poesia,no tempo certo de tudo..

E então, quando houver ódio e a vida mostrar o não, tu pegarás minha mão e me levará até a janela,para mostrar tudo que ainda pode ser





quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Suddenly

De repente não havia mais quarto, as paredes escuras afastadas como mágica, no meio da noite. Da luz azulada do monitor, que dava contornos frios aos móveis, emanava uma espécie de brilho difuso, permeando cada superfície de uma textura única. De repente, cada acorde da música que insistia em tocar, se estendia em uma pausa infinita. Nas mãos o telefone, perdido entre os dedos, enquanto os olhos, fechados, absorviam cada segundo. Uma palavra. Seu nome. E o tempo já não era mais o mesmo. De repente, ao ouvir a voz que chamava, era como se descobrisse que era sua a espera também. Enquanto isso, as tintas descascadas, os quadros dispostos na parede, adquiriam um tom de azul peculiar. Era a luz da lua que entrava no quarto. E era como se cada parafuso, cada pedaço de metal das esquadrias, vibrasse, assim como ela .Chegou à janela. Nos prédios à frente, as luzes da tv coloriam a paisagem de pontos luminosos. Rostos, paisagens, instantaneamente misturados ao asfalto da rua.De repente sentiu-se parte de uma grande tela onde as tintas mesclavam-se em matizes distintas de luz e sombra, escrevendo fragmentos de tempo e espaço em tons de amarelo e azul. Sentia que mergulhava em um oceano profundo de sensações, como um banho morno depois da chuva, tirando da pele todo resquício de cotidiano ainda existente. Sentiu como se fosse parte de um grande musical, onde os elementos de cena, a um toque do diretor, começassem a funcionar, em um cadenciado balé de rostos e mãos. De repente via a rua como um grande palco iluminado pela luz da luz. E o peito se enchia de encantamento, como se assistisse a um filme. As pessoas sentadas no bar, o instante do brinde, os risos e as mãos e copos erguidos... A bicicleta cruzando a esquina, com dois grandes embrulhos amarrados. O letreiro da farmácia de frente. A senhora voltando para casa, com uma pequena bolsa de mão, o casaco fino e o olhar cansado. Até mesmo o velho, que se demorava na escada da padaria, contando dinheiro, enquanto alimentava seu cão. A um só tempo todos os personagens adquiriam uma cadência única e ritmada e seus gestos pareciam fluir em uníssono, com uma grande orquestra. Enquanto isso, o cachorro se desprendeu de seu dono, atravessou a rua, desviando do ônibus, apavorando os passantes, subindo na mesa e abocanhando os restos da refeição do jornaleiro, sentado na última mesa do bar. Ali, da janela, não pode conter as lágrimas, quando o velho senhor, correu a buscar o cachorro e acabou parando para tomar uma cerveja com seu novo amigo, recém conhecido. De repente, os dois velhos sentados e o cachorro, e o encontro e o afeto só eram possíveis porque ali, na escuridão do seu quarto alguém, a 3000 quilômetros de distância, telefonara pela primeira vez para ela e chamara seu nome. Aquela voz, pela primeira vez ouvida e mil vezes reconhecida, na pele, nos ossos e na memória, atravessara o tempo do não, quebrara as paredes da dúvida e estendera as mãos. Buscara ela. Somente ela. No intervalo do medo, ao antecipar-se à dor, invadira cada espaço seu. E ela já não se reconhecia mais ou ao mundo ao seu redor, como se tudo de recente ocupasse exatamente o lugar que deveria. Como se a luz e as cores e as formas sempre devessem estar ali, compondo imagens e sugerindo poemas, oferecendo histórias e tramas e antevendo trilhas sonoras possíveis, absolutamente outros porque ela certamente era e eternamente seria absolutamente outra a partir de então. O telefone nas mãos não esperava mais a resposta. A confirmação do nome. O sim já fora dado. Em instantes o silêncio invadira a vida, rompera o relógio, oferecia outra geografia e a única circunstância concreta de todo o encontro era o sorriso silencioso que restava nos rostos, de cada lado da linha telefônica. Que importava se não havia corpo, se não havia rosto, se a matemática e o calendário eram outros? Em cada lado do peito, de repente, o silêncio era a única resposta possível.
Trilha sonora para o texto https://www.youtube.com/watch?v=2BOjtM7iqzA

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Prece

Que todo riso seja prece
Que toda palma estendida seja convite
Que todo braço seja apoio
Que todo silêncio seja compreensão
que toda canção seja abraço
Que toda tarde seja amena
que toda voz seja mansa
que toda lágrima seja enquanto
que todo grito seja riso
que todo olhar seja além
que toda esperança seja nossa

domingo, 18 de fevereiro de 2018

vivam!

O eu profundo e instável, rasgado entre os papeis espalhados na mesa.Ah! Eu quero o ser pequeno e frágil, que se move entre as máscaras penduradas na parede, que sangra e sente, no intervalo das horas...Nada de meias verdades, de discursos retumbantes, eu quero o intenso intervalo de silêncio que pesa no peito como ferro em brasa. Enquanto o caos habita, ponho ao chão, uma a uma, minhas certezas, lanço os quadros na parede, livros abertos, fotos, objetos decorativos, em uma pilha que já se faz alta, no meio da sala. É preciso pôr fogo a tudo que confere estabilidade ao cotidiano,é preciso navegar no escuro para tocar a face do real, que se esconde no espaço entre dois olhares, onde as mãos se estendem e o coração pulsa. De súbito me enojam as pequenas verdades, os gestos de comedido afeto, as expressões de alegria superficial. O que busco vai alimentar-se na dor mais profunda da alma, na pele vermelha de dor, mas absolutamente encharcada de sentidos, múltiplos e transitórios, posto que reais, em seu infinito fragmento de espaço e tempo...Não me tragam respostas, eu quero as perguntas, todas elas, lançadas ao rosto, com dor e fúria...Desse ser, humano e tenso, que se desfaz em poesia e busca infinitamente,ignorando as máscaras, os jogos, as fugas..Eu quero a coragem do caminhar ante o silêncio, o gesto sutil de despir-se dos medos, grandes e pequenos, a dor absoluta de saber-se só...O peso de não receber recompensas, apenas a intuição de estar no caminho certo,mesmo que por breves intantes...As canções breves e sem sentido, a dança absurda em meio à multidão. A angústia profunda do existir. O desafio diário de ser. A brusca procura do nós...Para fora todos os personagens, para fora as ações comedidas, rompam a pele, deixem cair a lágrima. Soltem da garganta do desmedido e absurdo grito. Vivam!

sábado, 3 de fevereiro de 2018

wish you were here

[...] de repente,uma porta se abriu e foi tão sutil que, no compasso dos ponteiros do relógio,não foi possível ouvir um ruído. Enquanto lá fora os sons de carros e freios de ônibus cortavam o dia, houve um instante de silêncio . O único som existente era o quase imperceptível sussurro da respiração, em algum lugar da casa. Quase instantaneamente os olhos se fecharam. E as mãos,à revelia de todos os nãos,se estenderam em direção ao inesperado. Nenhum movimento foi feito.Não era necessário.Não ainda. Enquanto lá fora a vida continuava,nos cantos extremos da sala,dois rostos voltados em direções distintas,se contraíram sutilmente em um breve sorriso. trilha sonora:wish you were here https://www.youtube.com/watch?v=3j8mr-gcgoI

domingo, 21 de janeiro de 2018

Da busca procura da poesia.

Acordei com vontade de poesia. Não me adiantavam o café, o leite, a organização confortável dos móveis, no mesmo lugar onde eu deixara ontem à noite. Eu queria o correr livre das palavras, o fluxo saindo do peito, as rimas que me impelissem cada vez mais para frente. Mas ali, no meio da sala, só encontrei mais do mesmo. Sobre a estante, a poeira fina do tempo de todo dia, no sofá, o desarranjo das almofadas. Tudo no mesmo lugar. Mas eu? Ainda em busca de algo que me fizesse respirar. Corri à estante. Vasculhei os livros. Pessoa? Barros? Drummond? De quem seriam as palavras que me salvariam, me garantindo só mais um dia? Naquele momento, nenhuma frase me bastou. Eu queria o verso que me arrebatasse, me tirasse do lugar, que me dissesse que haveria mais alguma coisa além do almoço de domingo, das contas no móvel da sala, da justa organização de corpos e sentimentos ao longo das horas. O que eu buscava era o desequilíbrio, a pele arrancada em um único gesto, a carne trêmula e pulsante, as mãos estendidas, o peito tentando a todo custo voltar a respirar.. Qual seria o texto, a palavra, capaz de retirar o o invólucro de normalidade com que amarramos os dias e me jogar de voltar no ambiente sutil e silencioso do caos? Tinha que ser ela, Clarice. Abri os livros percorri as folhas. Macabéa. Ana. Lori. Ulisses. Nada aconteceu. Talvez a angústia dela não fosse a minha, talvez as palavras já tivessem produzido seu efeito no tempo necessário. Desesperei. Se nem em Clarice encontraria alento, onde mais procurar? Foi então que vi. Olhei para o lado, no canto da mesa. Branca, Inerte. Vazia. Irresístivel. A folha de papel. Caminhei até ela. Busquei o lápis, e sentei. Em algum canto da sala, entre Vinicius e Drummond, na última prateleira da estante, me pareceu ouvir, abafada, uma risada sutil. Éramos eu, o silêncio e ainda e sempre a busca procura da poesia.

sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

Sobre os fabulous 40, que ainda não chegaram

Sobre ter 30 anos e atingir a plenitude, de quem mesmo?Corpos malhados, cabelos tratados, unhas e pele em dia.O trabalho e a família, bem, obrigada.As primeiras desilusões sérias, as primeiras amarras definitivas (ou pelo menos, nós assim achamos)..E a perfeição, para quem mesmo? O objetivo, não poderia ser outro, senão receber o olhar admirado, profundo, desnudante, do outro, esse sujeito que muitas vezes, não sabe absolutamente nada sobre nós, mas nos rasga a pele, penetra a carne, faz o sangue fluir nas veias quando se digna a nos desvendar, nem que seja um pouco, entre entropia e conflito. E quando a entrega se faz presente, na fímbria do maravilhoso, que plenitude atingida, que sensação de poder, como nos amamos e bastamos ao mundo, apenas pelo toque do olhar que nos é alheio.Apenas porque somos amados. Enquanto nos perdemos entre o eu e o nós, os anos passam e então, a um piscar de olhos, estamos a um passo do temidos “enta’...Ah! Os quarenta. A pausa necessária, o momento do silêncio, de caminhar até o espelho e encarar, uma a uma, as primeiras rugas, do rosto e do coração. Na tempestade cotidiana, quase nunca nos damos conta do tempo que passou. Mas é aqui, quando o calendário se impõe, que a reflexão se faz prioridade. Quantos passos dados, quantos tropeços? O que ficou, das causas perdidas, das palavras não ditas, dos abraços não dados? Enquanto me questiono, analiso a imagem no espelho. Percorro os detalhes, dos dias e horas passados, as frases ouvidas, muitas, com marcas ainda no corpo, as cicatrizes aparentes. Na espera dos braços, do colo, do toque, as mudanças, muitas delas, passaram despercebidas...Sobraram os sonhos, na batalha diária, ante a angústia de continuar respirando, só mais um dia. Sobraram as memórias, da longa espera, dos dias de sol, das lágrimas escorridas, no cansaço da procura. E o que restou? Restou o sorriso, no rosto, ainda e sempre, mãos estendidas, não mais em relação ao outro. Agora, em direção a mim mesma. Pela primeira vez, o olhar não se oferece ao alheio, mas se aprofunda larga, vertiginosamente em direção ao próprio peito... Onde esteve essa mulher, esses anos todos, enquanto ouvia o tique-taque incessante do relógio, na pressa de ser? O que falar sobre esse corpo, já tão castigado, entre idas e vindas, máscaras repostas continuamente, na urgência de se defender. Hoje não. Pela primeira vez o rosto nu, diante dos meus olhos e a beleza incorrigível do ser, apenas para si. Pela primeira vez, as curvas me parecem exatas, a pele,por um breve momento, na medida do que é. Pela primeira vez, as cicatrizes não me alarmam. Ao contrário. Me a justam na precisão daquilo que vivi. As paixões desmedidas, a coragem irresponsável e os nãos, todos eles, principalmente os ditos por mim. Sim, eu, formada no impulso e na paixão, os disse, surpreendentemente, na ânsia do vivido, na urgência do encontro. Pela primeira vez eles não me doem além do necessário. Fazem parte daquilo que sou. Mas essa mulher, ali, no espelho, a expressão, entre assustada e curiosa, os ombros caídos, o cabelo desgrenhado, mas os olhos, esses me olham, por um longo tempo. Nos encaramos. O que fica dela aqui, no cotidiano das horas, na necessidade do distanciamento, na interface com o outro? Será que dali, de onde o outro me olha, é possível ver que essa mulher grita e sangra e ferve, a intervalos cada vez menos regulares? Estaria a máscara bem ajustada, para que não seja possível enxergar, a fragilidade de cada palavra, o tanto de sonhos que ainda escorre das mãos ou estaria eu, supremo pesadelo, inteiramente despida diante da multidão?Saberiam eles o quanto ainda é capaz de se oferecer por inteiro, a cada palavra, de mergulhar de peito aberto, sem medida e sem remédio? Ao menos diante de mim, eu não me escondo mais. Ao contrário. Me encaro, despudoramente, em meio ao caos. Por hora teu cinismo estará guardado.Ao menos para teu uso. Já sei onde sou fraude e onde sou real. E já sou capaz de sorrir. Quantas batalhas,senhora,todas perdidas. Mas tu não te perdeste, é o pensamento que me vem à cabeça. Mas hoje só hoje, não sou capaz de escrever e me deixar tomar pelas frases se ajustando aos poucos, gritando no ouvido, formando o tão conhecido bolo no meio do peito, prendendo a respiração. Só por hoje a porta está fechada ao outro, ou ao menos a seu olhar . Só por hoje só o meu olhar importa e me encaro e aceito, exatamente na medida que sou. Talvez seja essa a sabedoria dos quarenta, agora mais do que nunca aguardados. Para que esse mergulho, essa descoberta, não se canse nunca de acontecer. Enquanto me olho, e desvendo aos bocados, ali,no fundo do espelho, há uma mulher, silenciosa, que, sem um gesto, me observa e , no canto dos lábios, deixa transparecer, aos poucos, a curva sinuosa de um sorriso.

quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Aviso! Essa não é uma crítica sobre o filme Rei do Show

Sobre ser artista, sobre ser herói E viver à margem de qualquer modelo e padrão pré-estabelecido. Sobre fatiar em pedaços a alma diariamente e ofertar aos bocados a quem passa na rua Entre fragmentos de tempo, no intervalo das ruas, preencher cada centímetro do rosto de tinta e sonhos e postar- se ali, em desafio, diante da multidão... Sobre viver sem pele, sangue e carne expostos e aprender a caminhar por entre os carros, desviando das motos, sob a luz dos faróis. É conseguir encontrar encantamento na simples contemplação das engrenagens do mundo e buscar o verso em imagens, sons, gestos, que as exprimam com exatidão. Sobre ser tomado pela mais inevitável emoção, pela ânsia de dizer, de dizer sempre e muito e demasiadamente de si e do mundo. Com urgência e algum método. Passo que se dá na coragem do existir, alheio aos olhos de reprovação, à busca de respostas, ao funcionalismo barato de grande parte dos passantes, aos rostos que riem sem rir, às mãos que apontam. Pobres diabos. Como poderiam entender o que vai diante dos olhos, se bem pouco sabem dos que lhes vai pelo coração? Se não são capazes de efetuar nenhum gesto que já não tenha sido testado e aprovado com alguma função cuidadosamente destinada a produzir algo. Se não tm coragem de arriscar um passo sem parecerem ridículos, como poderiam ser capazes de viagem a tão distante local? Bem aventurados sejam os pobres de alma, porque não sabem o precipício que se esconde entre o peito e as costelas, quando se mergulha dentro de si. Melhor mesmo é não olhar, fixar a atenção nos ponteiros do relógio, buscar as notícias mais urgentes da TV, perder-se no último boletim econômico.Deixar a poeira entrar e contar os anos, em títulos e bens. Manter-se em terreno seguro. Fora daí, o caos e o perigo das grandes viagens, as intermináveis, que rompem o sujeito de dentro para fora, atravessam-no definitivamente, bagunçando tudo pelo caminho. Melhor mesmo é ficar onde está. Ofício laborioso e atroz esse de ser artista, lugar mais sem propósito, perigoso e sem préstimo,embora cotidiano e comum a quem sabe ver, através do qual não se é nada, de nunca poder ser nada e de ter, ainda assim, na pele, nas mãos e nos olhos, todos os sonhos do mundo e nos pés a única vontade de voar alto, cada vez mais alto até fundir-se ao infinito, em poesia e tempestade.

Trilha sonora para o texto: Audição para The Greatest Showman

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Poesia em uma hora dessa?

Se não é possível mais ouvir música,se as ruas restam vazias, se os corpos que antes dançavam, estão encolhidos em cantos dispersos, se as paredes foram pintadas de cinza, se o ódio é a unica língua comum? Onde buscar força,se ate mesmo as palavras,que deveriam revelar o sentido do possível,esgarçam o silêncio que sufoca a garganta?em que momento Perdemos a coragem, você me pergunta, e deixamos de acreditar?quando foi que passamos a não ouvir mais nossas vozes e a apenas ouvir o retumbante silêncio das ruas?quando foi que nossos corpos passaram apenas a sentir dor e não a energia de cada um de nós?quando foi que deixamos de cantar?lembra quando acreditávamos que resistiríamos?e quando tudo diz não,o que temos ainda a fazer? (to be continued...)

domingo, 15 de outubro de 2017

Spread your wings

Enquanto tuas asas secam da tinta dos dias, eu preparo uma canção, para que se lembre de mim...Escrevo meus melhores versos, em tinta permanente e lacro minhas palavras em moldura dourada, tecendo as letras uma a uma no papel...E o tempo que escorre pelos meus dedos me impede de ver que tuas cores são as mesmas que as minhas e teus sonhos ainda são os meus. Que seus olhos enxergam minha estrada e seguimos na mesma direção... Em vão fecharei a janela, porque lá fora o vento é forte. Já não me escutas chamar. Vai voar e a tempestade não te mete medo. Eu sopro um beijo, mas não olha para trás e sai porta afora. Persegue um ponto invisível na estrada... Choro tua partida sem perceber que já partiste muitas vezes, tantas que já não sei contar. Em todas voltou outra, o mesmo sorriso, as mesmas certezas. E eu, tão preocupada em lamentar tua falta, não percebi que continuaste aqui, nos meus gestos, nos meus olhos, nas mãos que ambas estendemos para o desconhecido...Mas é na poesia da tarde que amamos com a mesma paixão, que vou te encontrar ali, teus cachos no vento. Você dorme no meu colo, mas quem me embala é você . Enquanto as lágrimas escorrem pelo meu rosto, vejo um breve sorriso nos teus olhos fechados e sei que você sabe, antes mesmo de mim, que continuamos juntas, mãos entrelaçadas à revelia da distância, em direção ao sol.

segunda-feira, 2 de outubro de 2017

da bailarina

As mãos suadas, apertadas no colo,tanto quanto o coque,no alto da cabeça. O glitter não disfarça as rugas de medo, no canto dos olhos...Ao redor, os metros de tecido espalhados, na saia rodada, enquanto os pés , calçados em incômodas sapatilhas de ponta, estão solidamente plantados no chão.Só mais alguns minutos e ela estará no palco.Foram meses de ensaios,compromissos desmarcados, a expressão de desdém e incompreensão de amigos e a pergunta:para que tanto esforço? Filhos criados, o trabalho estável, tudo no seu devido lugar.Menos ela.. Em um impulso, estava na escola de dança.Dali,para o espetáculo foi um piscar de olhos.Ainda não sabe bem onde começam os passos, está insegura sobre a marcação e não sabe bem o ponto correto da música.Só tem certeza de uma coisa:estar ali é o que a mantém viva há meses. O sinal é dado.Ela entra no palco como quem atravessasse uma dimensão nova. No primeiro passo, o holofote atinge em cheio o rosto, cegando-a. Respira fundo.Talvez fosse melhor voltar. Os joelhos fraquejam.Então fecha os olhos e ouve. A música penetra seu corpo. Seus braços se erguem para atingir o céu.os pés ganham equilíbrio, levados pelo som e as mãos giram no compasso certo da música. Não sabe bem como conseguiu a primeira pirueta .Como magia sente seu corpo rodar em direção ao infinito.E então ela flutua por sobre o palco, sem medo ou hesitação. São instantes de extase, em que o silêncio dentro dela finalmente fizera sentido. Os olhos se fecham,as mãos se erguem na pose final.De repente,aplausos. Abre os olhos e caminha lentamente para fora do palco. O rosto banhado de suor, o corpo tremendo,mas a luz do rosto ilumina a todos que olham pra ela..Finalmente aquilo sem o qual não poderia viver,a plenitude de si, o instante mágico pelo qual ansiara por tanto tempo.Por breves segundos aprendera a voar.

quarta-feira, 30 de agosto de 2017

Do flamenco

o Dançar flamenco é estar precisamente no limiar entre o sim e o não.Entre a dor mais profunda e o êstase mais absoluto.Estaremos sempre passos aquém da perfeição.Nossos pés não conseguiriam,por mais tentassem, atingir a exata medida da velocidade do taconeio,o girar preciso das mãos, a curvatura vertiginosa das pernas.Sempre estamos a um passo de desistir,cobertos de suor, as pernas doloridas,as palmas das mãos estendidas, o rosto marcado pelo esforço. E então,prestes a parar, fechamos nossos olhos e sentimos a melodia dolorosa de um palo tomar subitamente nossos corpos.em vão tentaremos fugir.mas não há saída possível.em segundos fomos arrebatados  pelas cordas vibrantes de uma guitarra e pelas palmas acestrais de uma bailaora.e é ali, quando não pudermos mais conter as lágrimas,que alcançaremos finalmente a perfeição.

terça-feira, 29 de agosto de 2017

OFF

Sabe aquela vontade de parar, de respirar de fazer nada?É real.Não é cansaço fora de hora,não é porque você zerou a temporada de GOT,não é porque está se alimentando mal.(Talvez seja isso tudo.Também).Já pensou na quantidade de vezes que passamos um dia inteiro sem um momentinho de silêncio?Sem um intervalo entre uma solicitação ou outra?Que ritmo é esse que nos impede de ficar poucos minutos em uma mensagem, um vídeo, uma fotografia incríveis, necessários para nossa compreensão do mundo?Por que é que a vida apresenta diariamente oportunidades incríveis, que precisam ser aproveitadas, sob o risco de não conseguirmos alcançar a tão sonhada plenitude?E se arriscarmos não fazer nada, apenas por algumas horas?Desligar o celular, o laptop,(estou consciente do contrassenso que é escrever esse texto sobre desligar em modo virtual) o mundo,apenas por alguns minutos?E se tentarmos ouvir uma música ou (no estágio avançado), apenas nossos próprios pensamentos?O que ouviríamos?Quais seriam nossas demandas? Estaríamos ainda sedentos por performances corporais e profissionais, por imagens que denotassem o quanto somos legais, bem sucedidos, descolados? Talvez, no intervalo de pausa descobríssemos que tudo que nos faria feliz nesse momento seria uma bela xícara de café, ou pisar descalço em grama, das bem verdes, ou apenas passar a tarde deitados em um parque, sol no rosto e cabeça vazia (e sem celular). Talvez fosse mais fácil, no silêncio, sem imagens ou mensagens de texto sempre urgentes, perceber o que nos falta, sem ser tocado pelas demandas de um cotidiano cada vez mais intenso e iluminado de telas..Mas quem, diante de mudanças tão céleres, na vida de todo dia, arriscaria apertar o botão de off?A resposta, espero, fica a cargo de vocês. #autoajuda feelings

terça-feira, 15 de agosto de 2017

A metáfora do trem ou a metáfora do cinema

No cinema, como na vida, o movimento é o que nos conduz além, às vezes em afeto e encantamento, outras em dor e angústia. Se, por um lado, as paisagens que passam diante de nossos olhos convidam a descer em cada estação, lá no fundo, permanece a vontade de permanecer no vagão ainda mais um pouco e descobrir de que forma mesmo esse filme (ou essa viagem) vai terminar...Não é que não saibamos para onde ir. Sabemos, quase sempre. Se alguém nos perguntar diremos, sem pestanejar, todos os nossos objetivos. Diante do nosso interlocutor, palavras sólidas como trabalho, sucesso, relacionamentos, desfilarão, inúmeras, demonstrando nossa total materialidade e apego às metas que tão laboriosamente traçamos para nós. No fundo, porém, a cada palavra dita, sobrevém o pânico. Afinal de contas, o que quer dizer isso?Sucesso?Felicidade?Amor?Significa que, uma vez parado na estação correta, deixarei de observar o movimento constante das pessoas que vão e vem, de me sentir tentando a virar meu rosto diante do mais ínfimo ruído e, ao ver o trem passar, não me sentir tentado a embarcar tambem?Diante da impossível resposta, ao menos entre nós, os vivos, seguimos em frente, escolhemos uma parada ( por vezes provisória)e tocamos a vida, mais ou menos como planejamos. Vez por outra, em um intervalo das horas, enquanto coamos o café o lemos o jornal, ouvimos longe o som do apito do trem...O susto é tal que abala profundamente nossas certezas. Onde estava esse trem até agora, que nunca o tínhamos ouvido? O apito chama, convida ao movimento, exerce sobre nossas pernas a mais tentadora atração...Mas é o café, o jornal, a vida? A partir desse momento, onde abrirmos a porta, ficará tudo como está. Sem olhar para trás, seguiremos em frente, em busca da estação, sem malas, sem casaco, sem guarda-chuva. Nas mãos apenas nossos sonhos e a vontade de embarcar. Enquanto pomos nosso pé no estribo, muitos serão os que nos chamarão de volta, temerosos de nossas decisões, saudosos de nossa presença...De nada adiantará...em silêncio sopraremos um beijo, viraremos de costas e tomaremos nosso lugar. Caminhando sobre a cabine ferroviária, o peso das nossas decisões fará ranger o assoalho, tremerá sob nossos pés. O rosto na janela, o vento frio, temos diante de nossos olhos a paisagem que escolhemos. E então estamos sós. Começa nesse momento o filme que escolhemos ver, ou dele participar. Em cada curva, em cada pedra do chão, lembraremos sempre do momento em que embarcamos no trem...Em muitas estacoes, as mãos suadas de angústia, o rosto molhado de lágrimas, sangraremos em dor e dúvida, tentando entender por que afinal não descemos antes, outras, nos penitenciaremos por nunca termos voltado atrás. Enquanto refletimos as paisagens, na janela, não cansam de passar, enquadrando sempre uma outra história, dentre tantas possíveis.. Infeliz daquele que, ao sentir o chamado do trem, por medo ou cansaço, não consegue se mover...em silêncio vai até a estação todas as tardes, senta-se no banco antigo, de pedra carcomida pelo tempo e, por horas, assiste ao movimento de pessoas e coisas, até o completo carregamento da mala. Com uma profunda dor, que atravessa o peito, acompanha cada subida no vagão com dores lancinantes no peito. Mas não se move jamais. O apito final do trem entra-lhe pelos ossos. Cerra os dentes de desespero. Mas não se move. Os olhos, entretanto acompanham o seguir do trem até sumir na curva da estrada. Então ele se levanta, toma seu guarda-chuva e segue seu passo, miudamente, até encontrar de novo o caminho de casa. Em seus sonhos, contudo, o movimento do trem não cessará jamais. Cenas, cortes, sons, falas, preencherão cada segundo de sono, fazendo tremer o corpo e escorrer lágrimas dos olhos. Ao acordar, o rosto banhado em suor, pensará que foi a febre noturna e então não pensará mais nisso. Entretanto, todos os dias irá ao mesmo velho cinema, da mesma praça da cidade, na mesma sessão vazia, onde verá sempre o mesmo filme, buscando sempre a mesma cena, que nunca esteve (nem poderia estar) na película exibida diariamente. A profusão de sons e cores está dentro dele mesmo, em uma intensidade só alcançada quando o mecanismo das pequenas certezas se suaviza durante o sonho…É ali onde suas mãos corajosamente tomam o estribo e o rosto recebe o toque frio do vento …Em vão continuará, vida afora, a entrar na mesma sala, do mesmo filme e a procurar enquanto o trem, lá na estação, anuncia, inadvertidamente, o apito final.

terça-feira, 1 de agosto de 2017

O toca-discos

Outro dia, em casa de amigos, me dei conta das sonoridades distintas do LP, hoje conhecido como vinil...Venham falar de 5.1, DVD, CDs, todas as letras do alfabeto, nada mais belo, mais poético, do que o som contínuo do motor da conhecida vitrola, a agulha no prato e todas as músicas do mundo nas faixas negras de cada álbum. Me lembro de ter uma vitrola, dessas infantis e me fechar no quarto para ouvir música, discos ao lado, a cabeça no chão..Era comum "roubar" os LPs dos meus pais em busca de novidades e foi ali que descobri pérolas como Rolling Stones e Beatles, em inacreditáveis Compactos.. Me recordo com se fosse hoje a primeira vez que ouvi My Sweet Lord, de George Harrison em um desses compactos,onde uma maçã verde girava no centro de tudo...Aquele som,que era até então desconhecido, me pareceu fantástico, divino, não podia mesmo ser desse mundo.Anos mais tarde descobri:realmente não era... Um dia, remexendo os LPs empoeirados, encontrei Drummond e Vinícius em um mesmo álbum, ou eles me encontraram..Eram poemas, declamados pelos dois..Meio desconfiada,coloquei o disco sobre o grande prato do toca-discos da sala e me sentei no chão..E assim, sem esperar, surgiram as primeiras estrofes do "Caso do Vestido"...Enquanto Drummond falava,eu fechava os olhos, ouvia sua respiração, suas pausas, tentava decorar as palavras, o nascimento em Itabira, o ferro na ruas e nas almas...As palavras me tomaram, me senti voar pra longe.Diante de meus olhos, as ruas da cidade mineira ganhavam cor e cheiros que eu jamais esqueci..Parecia incrível que o lado B pudesse ser tão bom quanto o primeiro.Então veio Vinicius e seus sonetos,sua busca da mulher amada,sem medo,sem hesitação...Que versos!que ritmo!eu deitava bem próximo à caixa de som, para ouvir todas as pausas da leitura, queria decorar as palavras, chegava a voltar várias vezes na mesma faixa para que o versos persistissem todos na memória..Ao fundo, o barulho do motor da vitrola enchia de vida todas as frases..Muitos anos se passaram,mas a poesia dessas tardes,de descoberta de mim e do mundo,ainda está ali, na poeira das capas, no chiado das músicas e sons que ficam infinitamente mais belos sob a agulha do toca discos...

sexta-feira, 28 de julho de 2017

ponto de escuta

Quando eu entrei nessa terra de jornalistas me disseram que meu ofício era relatar um fato,tal e qual ele fosse,sem deixar que os sentimentos atrapalhassem minha fala.Quando me tornei pesquisadora (há quem diga que ainda não o sou) me disseram para me ater à metodologia, à observação distanciada dos fatos e raras e abençoadas foram as vozes (as quais me juntei),que me disseram que as emoções podiam sim,ser matéria de análise.Mas foi apenas quando me tornei ouvinte nessa terra de discursos e somei minhas lágrimas aos relatos alheios é que pude compreender com inteireza a potência de um relato,porque dele participei. Fiz-me solidária, posto que a emoção alheia também me tocou e fiz-me maior porque às minhas mãos somaram-se as mãos de muitos,tantos quantos foram aqueles que tocaram meu coração. Assim, se a ciência e a técnica dão suporte ao exercício de conhecer, a sensibilidade me trouxe a benção de poder compreender o outro,posto que dele eu também fazia parte,em igual dor e ocasional deslumbramento.Esse foi então o caminho que escolhi e nele junto meu canto a tantos outros que também sofrem e sonham e sentem,sem métodos ou distanciamento, mas desmedido afeto e e imponderável poesia.

domingo, 23 de julho de 2017

Santa Teresa

Minha memória não abarca números de ruas, placas,cpfs,CEPS. Com frequência, esqueço nomes, rostos,o título de um filme cuja história me marcou.Vez por outra, as historias se fundem, se mesclam, o epílogo de uma enveredando no clímax alheio. Misturo nomes, invento tramas, me esqueço dos finais. O que não esqueço é o cheiro das ruas,úmidas de chuva, quando o sol da tarde insiste em sair.O aroma de doce mexido no tacho, enquanto alguém aviva o velho fogão de lenha.O barulho seco da ferraria, vizinha à casa da minha avó, logo depois do almoço.Eu nunca cheguei a entender porque as tardes de Santa Teresa eram tão silenciosas, depois do alvoroço do almoço. Pratos, talheres, panelas,tudo parecia convergir nas casas, enquanto eu deitava o meu rosto na pedra fria que separava os quartos da varanda.Me parecia que pulsava como coisa viva, um pedaço de mundo ali no chão.No meio da pedra tinha uma rachadura e eu me lembro de percorrê-la com os dedos todos os dias,tentando adivinhar o momento da ruptura. Também eu rompera um dia, enquanto esperava ser criança para sempre e esperar da vida apenas a hora certa de buscar os suspiros para o lanche da tarde.Um dia alguém mediu meu tamanho e me classificou.A partir daquele momento nada mais de momentos vazios à espera do silêncio da tarde e de perder os meus dias descobrindo o mundo.Agora, era tratar de vivê-lo. No dia em que ouvi a sentença, me ergui de súbito. Corri ao espelho do grande armário da minha avó.Abri a porta, que rangeu.Estava tudo lá.A marca de ferrugem da moldura, as pequenas rachaduras da bora e até os santinhos presos à madeira velha do móvel. “E eu?”.Já não estava mais lá.Do pouco que ficava enquanto me buscava no espelho,os olhos já não tinham mais prazer na contemplação.Só medo. Ao redor, estava tudo como antes.O cheiro do refogado, o barulho dos talheres,a conversa cotidiana das minhas tias e o cheiro frio da pedra no rosto.Qual tinha sido a ruptura afinal?Talvez o olhar externo, intermediado pelos ponteiros do relógio.Mas eu?Continuava ali,no mesmo lugar,esperando a hora certa de subir a rua atrás dos suspiros, que nunca mais estariam no mesmo lugar.