sábado, 17 de setembro de 2016

Da importância de ser palhaço..

Peço licença para falar também um pouco de Domingos, ante a comoção geral.... Não do ator ou da pessoa, posto que desses, infelizmente, não me cabe falar, mesmo diante da admiração que nutria pela atuação deste. Não acompanhei muitos dos seus papeis nas novelas globais, assim como não tive a sorte de conhecer a pessoa, descrita como inesquecível, doce e iluminado, assim como parecem ser sempre aqueles que,corajosamente, encontram-se na plenitude... E Domingos me parecia, nas imagens e na fala, encontrar-se definitivamente na plenitude de si, exalando beleza, seja ela física ou espiritual.. Eu nem sabia bem seu nome, mas já admirava a bela figura do moço de cabelos grisalhos e sorriso cheio, largo, estampando as chamadas da novela ou os programas de entrevista. Mas o que me fez encantar pela pessoa de Domingos foi descobrir a entrevista que ele concedera aos diretores do filme Tarja Branca, cuja temática gira em torno da importância de brincar...Ali,o ator,antes de falar da infância ou do ofício, deixa escapar um sorriso calmo e se declara,antes de tudo,palhaço,sua primeira formação. Ator global, galã de novela, protagonista de filmes, presente em inúmeras campanhas de conscientização, Domingos preferira enfatizar que, mais do que qualquer outra coisa, ser palhaço lhe proporcionara a consciência de si e da vida, permitindo-lhe atingir a plenitude da existência.. Talvez as palavras não tenham sido exatamente essas,mas o sentido era um só:brincar é fundamental...Me apaixonei pela fala e pela transparência do ator.Então me dei conta da importância da figura do palhaço, em um mundo tão competitivo como o nosso, mundo de espelhos e máscaras, de gente frágil encastelada em suas pequenas certezas... Nessa seara ser palhaço é estar em permanentemente desconstrução, sentidos e pensamento, é ter a coragem de desnudar a alma, na medida em que nos colocamos para além da seriedade cotidiana. Ser palhaço é, definitivamente, ser livre, transver a vida, carnavalizar as estruturas sociais. Não somente nos quatros dias “momescos” que, à duras penas, temos direito, mas nos difíceis intervalos do relógio cotidiano, ser palhaço é desterritorializar afetos, propor o novo, convocar o lado mais íntimo desarmado do ser humano, aquele que sobressai quando, por vezes, sem que queiramos, ante o desempenho do sujeito de costumeiro nariz vermelho e sapatos gigantes, deixamos escapar uma gostosa gargalhada. O palhaço não é o ator porque é mais que isso, artista que não constroi um personagem ou limita-se ao desempenho. Vai além. Na beleza do improviso, desconstroi-se como sujeito para reconstruir-sem em experiência plena de sensibilidade e afeto... No exagero dos gestos cria em torno de si uma magia delicada, inserindo-se sutilmente em nossos corações e então, tornando-se eterno.. E se posso desejar alguma coisa ao palhaço Domingos é que ele permaneça,entre afeto e memória, tecendo com a magia dos seus gestos o cotidiano dos que o amam....

sábado, 30 de julho de 2016

sobre liberdades e feminismo.

Aos 11 anos escrevi meu primeiro texto feminista. Eu nem sabia o que era isso, mas foi a primeira vez que o peito doeu, absolutamente cheio de palavras a dizer e, como seria sempre a partir dali, o papel foi o melhor canal para absorver o que eu sentia. Não me lembro de toda a poesia, mas me lembro claramente de dizer que não queria um mundo onde o homem fosse humilhado, mas que estivesse, inevitavelmente, ao meu lado... Eu já buscava nessa época, uma forma de vida que não colocasse em extremidades opostas homem e mulher, ou que privilegiasse qualquer uma das partes,mas um espaço plural, de respeito e de equilíbrio. Confesso que, em algumas situações, o simples fato de ser mulher era uma atitude de protesto. Mulher em uma escola quase que totalmente de meninos (cursei CEFFET e ,na minha turma, de quarenta alunos, somente seis eram mulheres). Mulher em uma área como o TI, onde ser doce era um convite e ser antipático era um risco profissional. Mulher em uma sociedade em que engravidar aos 17 e se separar aos 20 anos era (ainda é) um crime. Mulher onde ser solteira e demonstrar o que se sente ainda é considerado uma ameaça. Não foram poucas as vezes em que me revoltei quando percebi o tanto de machismo que existe entre mulheres. Somos juízas de nossos corpos, de nossas ações. Nos submetemos bem mais do que antes ao olhar alheio. Precisamos da perfeição, profissional e estética.E julgamos - Como julgamos!!- por idade, tipo físico, comportamento... Criamos nossas filhas para serem lindas, doces,inteligentes e quase nada humanas. E aceitamos como uma regra a imposição de que somos inimigas... E então, quando me sinto sucumbir ao desânimo, ganham força vozes e ações que se levantam contra isso. Dão as mãos. Abraçam. Acolhem. Sinto finalmente quer iremos,todas juntas... Respiro aliviada. Mas ainda há muito o que fazer. Em muitos grupos feministas as décadas de combate ao machismo criaram uma força em igual medida e em "sentido contrário". Tornamos-nos, muitas vezes, conservadoras, sectárias, intolerantes. Julgamos a sexualidade e o relacionamento alheio pelos olhos do que consideramos “certo”. Proferimos verdades sobre como as outras devem ou não se comportar. Fazemos discursos sobre conceitos morais ligados ao judaico-cristianismo e nem sequer piscamos os olhos.. Afinal de contas, queremos ou não a liberação sexual?Temos que ser éticas, dizemos. Confundimos relações com contratos e nos surpreendemos reproduzindo os mesmos modelos do patriarcado, criando fogueiras onde penduramos os que ,acreditamos,não estão de acordo com a regra. Quem trai, afinal,merece ser exposto, julgado, agredido. No calor da luta, no cansaço dos anos, nos tornamos uma força contra-hegemônica, igual e no sentido oposto da força que combatemos. E nos perdemos no caminho. Enquanto navego por entre discursos femininos e feministas, percebo que nos perdemos em nossas batalhas, buscando coerência em campos tão diversos quanto a sexualidade. Queremos regras. Ainda. E como somos conservadoras! Nossos movimentos, jovens e cheios de energia, caducaram. Precisamos do poder ultrajovem, como diria Drummond, de propor outros olhares, outras sensibilidades, onde compreendamos que o sujeito é feito de complexidade e que não são necessários mais enquadramentos... É preciso respeito ao que se sente. Apenas. E afeto pelo que o outro/outra é... Uma coisa ainda me aterroriza:enquanto continuarmos nos baseando em modelos de Relacionamento ditado pelo patriarcalismo jamais seremos verdadeiramente livres.

quinta-feira, 14 de julho de 2016

Sobre todas as coisas

As coisas,as pessoas que amamos,são eternas até certo ponto quando, por incomunicabilidade ou incompletude,planam por nosso imaginário, no limite necessário entre o presente e o vir a ser. Pensá-las é pensar que não se acabam nunca e de certa forma perduram, pela dor ou pelo afeto, no correr de nossas horas cotidianas e em tudo que tentamos ser. Tornam-se findas (e tudo em alguma medida finda)quando, de repente, olhamos para trás e vemos que, de alguma forma também se moveram de onde estavam e seguem caminhando em direção a seus sonhos. Então vasculhamos nossos baús de memória à procura da lacuna que faltava, entre intervalos de silêncio e sorrisos e nos deparamos, inacreditavelmente, com o perdão e a constatação de que prosseguimos e que, de algum modo crescemos, apesar das dores e dos não vividos... O que sobra, para além dos anos, é o afeto, para perdurar por sobre a memória e colocar no rosto, vez por outra, enquanto estivermos distraídos, o mais inexplicável dos sorrisos. E se ainda persiste uma palavra a ser dita é de que teu caminho continue a ser trilhado, com afeto e com coragem para que sejas tudo aquilo que eu tinha exata certeza de que serias um dia... Que teu coração não caiba dentro do peito e que sorria, sempre. Que não deixe de acreditar em teus sonhos e que, por vezes, sem que possas perceber, o mesmo sorriso, subitamente, possa chegar ao teu rosto e aquecer teu peito, assim como ao meu.

terça-feira, 28 de junho de 2016

navegar é preciso

Diz-se da educação que é processo, aprendizado, discurso, metodologia. Em verdade digo que a educação, enquanto prática cotidiana, se assemelha muito ao ato de lançar-se ao mar, navegando no desconhecido. Antes, traça-se a rota,combina-se o trajeto,pensa-se na estratégia a ser executada. Antes de tudo,pensa-se o porto de destino. Trajetória escolhida, é hora de fazer as malas, juntar toda a força e coragem que tiver disponíveis,vestir as melhores roupas e sair do conforto do lar. Uma vez na sala de aula, ops, no mar, todas as nossas certezas, planos, estratégias,são postos à prova simultaneamente. Em alguns momentos tudo parece estar contra nós. Não conhecemos nossa tripulação, não temos pleno controle do navio, nem tão pouco sabemos como estará o tempo todos os dias. Em alguns momentos temos plena ciência de que o leme não está nas nossas mãos. Temos, ao longo do tempo, uma vaga ideia de nossos objetivos e mapeamentos prévios. Às vezes, só o que podemos fazer,quando nossa embarcação está em plena tempestade, é correr a tapar os buracos das balas de canhão que são lançadas continuamente, sem que consigamos saber de onde vieram ou porque tentam nos atingir. Os estragos que as balas fazem racham inúmeras vezes nosso casco, fazendo entrar água em toda a embarcação. Em alguns dias tudo o que queremos fazer é naufragar enquanto esperamos ventos favoráveis. Ao nosso redor o mar profundo e impenetrável do tempo, onde tentamos navegar, segue impávido,sem que consigamos provocar-lhe o mínimo retardo ou alteração. Em um dia qualquer, enquanto estivermos amarrados ao mastro esperando que a tempestade passe sentiremos no rosto o calor do sol e nos depararemos com nossa embarcação surpreendentemente ancorada no porto de destino.



quinta-feira, 23 de junho de 2016

Está na ordem do dia: nos ônibus, nas praças, nos consultórios,nas farmácias,na padaria,no jornaleiro.Nos programas diários,na conversa de elevador,nos relatos de domingo, no jornal, nas revistas,nas redes sociais.Não tem um lugar do mundo em que não se converse sobre emagrecimento e alimentação saudável.Sobre potencializar nossos corpos e mentes.As lojas de produtos ditos saudáveis pululam e a quantidade de gente que acumula histórias de sucesso só aumenta.Seria um momento de desapegarmos dessa acumulação ainda moderna/pós-moderna que nos fez consumir em excesso e adotarmos hábitos mais humanos, em um tempo mais nosso?Seria ótimo se, com essa onda de preocupação com saúde aceitássemos nossos corpos como são e buscássemos o equilíbrio.Só que não.Tentamos voar cada vez mais alto esculpindo nossos músculos, braços,pernas,barrigas, cabelos,rostos,nos esticando em máquinas, lasers, químicas, dobrando nossos esforços a cada dia.E aqui dentro continuamos insatisfeitos e infelizes..O que vai sobrar dessa nova onda de narcisismo,que parece ter nada a ver com o "cuidado de si"?de fato não estamos cuidando de nós mesmos.Estamos cuidando da imagem que queremos ter.Belos,fortes,bem sucedidos, os que não sentem dor,os que não se fragilizam,os que nunca param para contar os estragos...Os que não podem mostrar seus defeitos.Parece irônico que esse texto esteja no lugar do "show do eu",mas talvez seja o único espaço possível de diálogo(será?) em um mundo tão cheio de visibilidades e tão avesso ao essencial.

quinta-feira, 16 de junho de 2016

Como dizia o poeta

Feito essa gente que não muda com a lua, que não vê poesia, que está sempre contando tempo e dinheiro, que acumula camadas de resistência e pequenas covardias, escondidos sob mantos de não ditos e não vividos. Na medida em que caminha,os bolsos abarrotados de “nãos”,a máscara impressa na pele escorre ante o suor que o esforço em ser frio,distante, inacessível, proporciona ao sujeito...Enquanto isso, do lado de fora da janela,há o pôr de Sol, os pequenos encantamentos cotidianos, as mãos estendidas, a imprevisibilidade do encontro e a dor lancinante que virá,porque ela sempre virá,seja “sim” ou “não” sua opção de vida. Melhor é abrir portas e janelas, deixar o sol entrar, reconhecer a sua inevitável fragilidade diante do outro, que sempre vai nos invadir em alguma medida.. Enquanto você tentar ignorar o óbvio, na esquina ao lado um poeta, sentado em um banco de pedra, escreve distraído,mais uma estrofe de seu belo poema. Ele ri de sua seriedade,de sua falsa rigidez, zomba de suas certezas...Ele sabe,mais profundamente do que imagina, que defesas só são necessárias quando nos encontramos invariavelmente tocados pelo afeto... Então, ousa...Mergulha no desconhecido... Aventure-se a não ter respostas.. E seja,então,infinitamente maior do que era até então...E surpreendentemente mais feliz.. trilha sonora: https://www.youtube.com/watch?v=oIelCdlc0hA

terça-feira, 31 de maio de 2016

Alice através do espelho



E então Alice se deparou com o espelho. Tinham sido três longos anos de batalhas e aventuras,por mares nunca antes navegados..Até mesmo para ela, sedenta por novidades, o maravilhoso cheiro do mar e o infinito azul do horizonte começavam a se configurar cansativos...Sentia falta do cheiro dos seus livros velhos e do gosto morno do chá das cinco..Sentia falta da sensação do sol da tarde sobre a colcha de retalhos da sua cama e de ter na cabeça todos os sonhos do mundo...Posicionou o leme na rota e manejou o pesado navio no curso desejado.Estava finalmente voltando para casa... Três dias depois, chegava ao mesmo porto de antes. As coisas, entretanto, estavam muito diferentes.Havia uma grossa camada de poeira por sobre os móveis e teias de aranha em todos os livros..Caminhou pelo corredor vazio e as tábuas de madeira rangeram,como se estranhando sua presença..A cada passo sentia-se mais estranha naquela casa.Quando afinal chegou na porta do seu quarto, parou por alguns segundos diante dela.Voltar era retomar um ponto antes de sua viagem,voltar ao que era, recomeçar?Pensou por um momento. Não. Já não era mais a mesma de antes. Deixara muito de si nesse longo período, onde tudo que fizera fora tentar manter-se viva diante de tantos perigos.O perigo maior, contudo, fora perder-se de si mesma, na obrigação de seguir em frente e controlar a vontade de voltar, fugir das dificuldades e correr para seu quarto,onde todos os sonhos eram possíveis e estavam ao alcance da mão.Lá fora o vento soprava forte, fazia muito frio e estaria irremediavelmente sozinha.Suspirou profundamente e girou a maçaneta, abrindo a porta.Dentro do quarto,uma nesga de sol penetrava pela cortina amarela..Ali dentro tudo permanecia como antes, embora encoberto pela mesma camada de poeira que tomava o restante da casa. Caminhou até a escrivaninha e abriu a primeira gaveta. Ali dentro, seus diários, amarelados pela falta de uso. Em quase todas as páginas o desejo incontrolável de voar, de subir mais alto, de alcançar o infinito, descrito com sua mal cuidada e apressada letra. Alice sorriu. Por quanto tempo permanecera ali, protegida, voando apenas através de suas palavras. Agora, três anos passados, percebia que fora necessário preencher-se de poesia ao longo do tempo para que pudesse suportar o duro cotidiano da viagem. Cada dia era tão pleno de acontecimentos que, ao final de cada um, não conseguia o silêncio necessário para alcançar a poesia das palavras. Agora que estava de volta, entretanto, havia muito que escrever. Na memória, cada fato vivido adquiria, no silêncio do quarto, um significado particular. Tentou abrir a segunda gaveta. Trancada. Estranhou.Então lembrou-se da chave que levava no pescoço...Como fora difícil trancar essa gaveta e levar no peito por três anos a chave que poderia abri-la...Mas agora já era hora de revisitar cada memória e estar pronta para o que viesse...Destrancou a gaveta.Lá no fundo, uma caixa com algumas fotos e infinitos textos..Por dez anos essa caixa fora todo o seu mundo,preenchido minuto a minuto nas longas horas da espera. E como ela amava cada elemento dessa caixa. Um a um foi tirando dali as fotos e as palavras, incertas, em instantes da mais incontrolável alegria ou do mais profundo desespero. Nenhuma delas, entretanto, representava o que ela era naquele momento, três anos depois..Havia um vazio no seu peito depois de atravessar todo esse tempo. Algo que talvez jamais fosse preenchido de novo..Mas ali dentro, no silêncio absoluto do seu quarto aquela caixa ainda pulsava de palavras não ditas e silêncios inexplicáveis....Fechou os olhos.E então ouviu um leve ruído dentro do quarto...Olhou em redor..Continuava sozinha, mas algo se mexia perto da janela.Alice caminhou até lá e descobriu, nas dobras da cortina,uma bela borboleta azul,que ela ainda não vira por ali. Suas asas se debatiam com pressa, tentando se desprender do tecido da cortina. Alice ajudou-a a se soltar . De repente a borboleta tomou o quarto, batendo as asas em liberdade, finalmente. Encantada, Alice seguiu-a com os olhos, tentando adivinhar seus movimentos. Como era bela, ainda que desconhecida. Assim, esquecida da caixa aberta sobre a escrivaninha, ela começou a acompanhar cada movimento da borboleta, ora se aproximando, ora fugindo, sem nunca parar de voar.. Súbito, a borboleta dirigiu-se ao espelho sobre a prateleira da parede, mergulhando nele. E então desapareceu. Assustada, sem conseguir entender nada, Alice correu para o espelho e tentou descobrir uma fenda, um furo, onde a borboleta pudesse ter entrado.Não encontrou nada. Em vez disso, enquanto tateava o vidro do espelho, encontrou seu próprio reflexo. Havia três anos que ela não olhava para si mesma, preocupada que estava em ficar apresentável, eloquente e digna para uma plateia diferente a cada dia. Quem era aquela que olhava para ela com tanta intensidade ?O rosto, cansado, os cabelos, ainda no desarranjo da viagem, assim como as roupas... Mas os olhos, depois da borboleta, tinham um brilho diferente, desconhecido..Era como se, no encantamento do encontro, se permitira olhar para si mesma, descobrindo no caminho a desordem interior... Ali dentro, toda sua poesia, guardada por dez longos anos, permanecia viva, na ânsia de sair... No voo da borboleta ela vira um universo desconhecido, mas belo, de encantamento, que a atraia, irremediavelmente. Pouco importava não estivesse ainda na sua melhor forma, no desarranjo da volta... Era ali, no desassossego do encontro, que vislumbrava um caminho a seguir, onde não lhe ocorria percorrer terras distantes, mas mergulhar no seu ainda desconhecido universo particular,de imagens, silêncios e alguns sorrisos. Alice então puxou uma cadeira e subiu à altura do espelho. Tocou sua superfície fria e se sentiu irremediavelmente atraída para o centro do espelho, mergulhando em seu interior... Ali no quarto ficaram no chão uma bússola e um mapa que ela carregara por toda a viagem. A caixa de lembranças permaneceu na cama, aberta e desarrumada e da janela,ainda hoje, é possível enxergar a luz do sol que insiste em entrar,por entre as sombras da cortina.

quinta-feira, 26 de maio de 2016

Baixio das 30 bestas

Recebo, com uma pontada de dor, o tapa na cara diário que nos assalta a cada lida nas manchetes diárias, quando um caso de violência sai das sombras do cotidiano e chega até nós. De tão chocada, me custa até escrever. Respiro profundamente. E as palavras vêm, porque há uma urgência de dizer. No Rio de Janeiro, na região de Jacarepaguá, uma mulher foi estuprada (já perceberam como a própria palavra contém uma carga de violência, linguística, se é que isso é possível e simbólica?) por 30 homens. Não 10, não 20, mas 30 homens que, não satisfeitos, filmaram a “ação” e comentaram o resultado no corpo da moça, com prazer e escárnio. Ufa!Está escrito. Agora não há mais saída. É preciso falar. É preciso encontrar um sentido (não para o ato), mas para que mais atos como esse não ocorram. É preciso resistir. Enquanto tento me recuperar penso em Foucault, quando observara o corpo como superfície de inscrição dos acontecimentos e percebo que não há corpo mais atravessado pelo tempo e pelas ações humanas do que o corpo feminino. Escondido, enquadrado, recortado, formatado e, mais recentemente, exibido à exaustão, sofremos na pele cada gota de história humana.Através das décadas, lutamos pelo direito ao sexo, à pílula, ao aborto e continuaremos lutando, infinitamente. Agora, sob uma nova luz, a da sonoridade (essa palavra difícil, de fácil execução) que implica em dizer que não somos divididas em “amigues” e inimigas”, que não somos intrinsecamente constituídas em inveja e submissão. Ao contrário. Somos capazes de construir uma rede de afetos por entre nossos úteros e protegermos umas às outras. E chorarmos juntas a cada ação, posto que afeta cada uma de nós. Por esse motivo, é com absoluta tristeza que vejo meninas e mulheres desdenhando dos movimentos feministas, geralmente por desconhecimento. Porque é impossível desdenhar daquilo que se é..E ,em última instância, o que o movimento feminista defende é o direito da mulher a ser o que quiser, inclusive machista.Mas esse texto não é sobre feminismo,embora tenha sido escrito sob essa ótica.Para compreender o estupro e exposição de uma menina por 30 homens é preciso descer mais fundo, mergulhar até o pescoço na lama de nossos silenciamentos(enquanto sociedade judaico-cristã permeada de moralismos) e alcançar o baixio. Coincidentemente, no mesmo dia em que consigo ver o polêmico filme de Claudio Assis, recebo a notícia do estupro coletivo( a cada escrita da palavra penso que vou me acostumar a ela,mas não, ela me violenta, a cada vez que a escrevo). A escolha por utilizar esse filme como metáfora não se dá pela intenção do diretor, acho eu. Mas pelos mecanismos do imaginário que involuntariamente conectaram a “ficção” à “realidade” em meu cérebro. Afinal, é desse lugar (porque sempre há um lugar de fala), do cinema e do imaginário, além do feminino, que lanço minha fala. Seria Baixio das Bestas um retrato denuncista do comportamento de agroboys em relação ao corpo feminino?Ou apenas uma ousadia estética, em um cinema nacional permeado de monotonia e lugares comuns?A essa altura do campeonato, não me cabe julgar... Apenas utilizo-me do filme como alegoria para um crime, cada vez mais comum, de violentar e expor o corpo feminino, como se ele não pertencesse a ninguém. Como se sua função fosse ser exposto, agredido, humilhado, atravessado por regras, limitações, moral.Como se a única coisa que se pudesse sentir por esse corpo fosse pena. Ou raiva, a ponto de tocá-lo ou de destruí-lo. E então, inevitavelmente, chegamos às bestas. Percebo que estava adiando esse momento, posto que também eu temia ser tomada pela raiva por aquilo que eu também não entendo.Como é possível,pais, filhos, irmãos, amigos, estuprarem coletivamente uma mulher, machucarem-na a ponto de seu corpo ficar irreconhecível e, não satisfeitos, exibirem seu corpo para a audiência? Que direito fundamental é esse que os toma, na medida de se acharem donos desse corpo, fonte de prazer e dor?Seriam mesmo as bestas de Claudio Assis, desumanizadas, sujas, envoltas em sombras, para que a violência que os constitui seja definitivamente afastada de nós, seres “do bem”? Infelizmente, não. O baixio das bestas está em cada esquina, em cada casa, ainda que existam flores na janela e carinho entre os moradores. A permissividade com a violência contra a mulher está embaixo das camas, dentro das geladeiras, nas bancas de jornal. Está escondida nos corredores, em meninas que sofrem abusos dos parentes por anos a fio e sob silêncio de suas parentes mais próximas. Está na leniência como reproduzimos brigas entre meninas, sob o jugo da piada, do meme(“já acabou,Jessica?”), no silêncio com que assistimos à humilhação das “amantes”, ou ‘destruidoras de lares”, como se seus corpos tivessem que ser expostos, bem como suas ações?(como era mesmo o nome do homem que foi traído pela mulher que dizia que ia à manicure?).Está na ignorância ou irresponsabilidade pela forma como nossos irmãos, amigos, filhos tratam suas próprias mulheres e as mulheres com quem convivem.Está na severidade como julgamos outras mulheres, em suas escolhas,em seus cabelos, em suas roupas, afinal de contas, a idade nos obriga a cortar nossos cabelos, cobrir nossos corpos, esconder nossa sexualidade. Está,em última instância, na forma como criamos nossas meninas,com suavidade e delicadeza, em contrapartida aos meninos, que precisam ter namoradinhas desde a barriga, serem ativos, sexualizados, destemidos, ousados?Estamos, todos, mergulhados no mais profundo silêncio e na mais vergonhosa culpa, quando nos calamos ante a exploração, exibição do corpo feminino alheia à sua vontade. Quando, sob o signo da liberdade criativa, aplaudimos a criação de obras onde as mulheres se tornam objeto de violência extrema e sádica,ao mesmo tempo em alvo de fetiche que, em lugar de dar voz, silencia e objetifica. Que o direito à criação e a estética seja um fato. Mas que possam existir contrapartidas, para que o imaginário possa ser atravessado pro brechas, por possibilidades outras,onde o corpo feminino fale, seja ouvido, se permita ser exposto por vontade e prazer e nunca como um ato de submissão. Enquanto isso,em nossas casas,ruas e demais espaços de convivência, que observemos com devida atenção de que forma estamos criando nossos meninos e convivendo com nossos amigos e parentes, de modo que não sejamos nós a nos calarmos diante de pequenas agressões e silenciamentos. Sabemos o que uma relação sexual não consentida pode provocar em um corpo e em uma alma. Pensemos nessa agressão multiplicada por 30 e usemos toda nossa força e sensibilidade para evitar que em qualquer corpo ou mente a naturalização de qualquer ideia remotamente próxima a isso possa germinar, sejamos homens, mulheres, cis, trans, etc, etc, etc.

domingo, 15 de maio de 2016

Terra Estrangeira

Daqui de onde olho o mundo me parece muito diverso. Já são sujeitos, na correria diária, cruzando ruas, nos afazeres diários. Entre eles, percebo as engrenagens invisíveis, que os movimentam e os mantém em pé. Nas esquinas geladas de uma Lisboa ainda belíssima, meus passos seguem-lhe os movimentos, tentando apreender-lhes os gestos, que me parecem cadenciados e ritmados, como um grande balé. Suas falas, num forte sotaque, se fazem canção diante de meus ouvidos maravilhados. Vez por outra ouço um sorriso, percebo um silêncio e tento adivinhar-lhe o motivo. Impávidos, eles seguem, sem sequer me notar. Não notam também a beleza que encontro em seus gestos, nas ruas que percorrem, nos muros envelhecidos, nas pontes centenárias, nos belos azulejos azuis que resistem ao tempo. Tudo lhes é familiar e intimo. Portanto, parecem não conseguir mais ver. Daqui de onde estou tudo me parece demasiado, enorme, belíssimo. Sigo extasiada por suas cidades, contemplo suas casas e igrejas seculares, me detenho por horas diante de suas paisagens mágicas. E respiro, profundamente, quando me deparo com suas praias, ainda geladas, permeadas de rochas e areia branca, por entre montanhas e caminhos sinuosos,que seguem sempre em frente até descortinarem um oceano infinito e azul, onde nascem as maiores ondas do mundo. Ali, com o vento frio batendo no rosto, me dou conta, inadvertidamente, da presença imponderável, mas definitiva de Deus. Se existe no mundo um lugar como esse, há que se buscar, em alguma coisa, o elemento transcendente fundamental, posto que nem só de engrenagens pragmáticas vivemos então. Diante desse quadro, inexplicável e intangível paisagem, me posto em silêncio quase religioso . Tempo e espaço, nesse momento não me parecem mais do que uma pobre invenção , feita para os tolos. Aqui a única linguagem possível é a do infinito.

segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

.. Sobre parir estrelas brilhantes..




Ora( direis) ouvir discursos, na busca incessante da construção do ego. Eu?Eu não!
Busco estrelas, na árdua batalha de desconstruir a mim mesma.
Caminho difícil esse, sem prêmios ou títulos, mãos vazias e rosto no vento.Apenas..
Enquanto vocês permanecem no sol, entre loas e elogios mútuos, eu me contento em enfrentar o enorme buraco que carrego dentro do meu peito.
É ali onde continuamente surge,num espaço entre o coração e as costelas, um espaço vazio que lateja,incessantemente, dificultando a respiração...
É inútil ignorar a dor que rasga a carne.
Ema vez que os olhos veem, o peito aperta, as mãos se fecham e sinto como se minha pele fosse retirada de uma só vez de meus ossos...
Como eu queria que o conhecimento me bastasse, que a simples observação do fenômeno pudesse chegar, na emergência cotidiana de mais um dia.
Não basta.
Porque o que vejo, quando vejo não está no que a retina absorve, mas o que a alma sente e uma vez atravessada a carne não resta opção: é preciso gritar ao mundo...
Em vão tentarei fechar os olhos, me esconder no canto mais escuro da casa. Nada adiantará. Escreva!Escreva!Berram todas as células do meu corpo...
Sucessivamente, sou assaltada por palavras, por frases, que se formam diante dos meus olhos, sem que possa controlar...
E então,quando já não é mais possível respirar, meus dedos buscam o reconfortante barulho do teclado, ante a assustadora visão da folha em branco.
Já não é mais possível fugir.
Estou ali,diante de mim mesma, minhas dores e incertezas expostas.
E vem a primeira palavra, perdida num emaranhado de caminhos alternativos..
. Uma vez escrita a primeira frase, o texto já não é mais meu.
Ele me controla, me leva pela mão, sem que possa precisar se será prosa ou poesia o que resultará de todo o processo...
Sei que, sem forças para controlar o caos que se forma, obedeço e me curvo diante do nascimento de mais uma estrela, que guarda em si porções iguais de brilho e de sombras.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

Eu amo a poesia que grita, a palavra que berra,o verso que me chuta pelos degraus abaixo... Ah!como eu amo quando uma frase, um grito ritmado e metrificado me toma e me leva mundos acima, rio abaixo, e enquanto me encanta e me faz caminhar às cegas,arranca,de súbito a pele.E eu que antes fora reservada e tímida, me vejo assim,no meio da rua deserta das minhas próprias certezas, sem defesa, descalça, a seguir estrelas...E ainda que caminhe às cegas, tenho rumo certo. Ora e qual outro não seria senão a intensa,apaixonada,busca do encantamento, com que me faça estender os braços e as pernas,tentando alcançar o infinito?ah!e logo eu que passei a vida a colecionar máscaras com que me proteger dos olhares alheios estou aqui,despida de qualquer defesa, rezando por mais algumas palavras,só mais uma, com que me elevar novamente ao desassossego...

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

Sobre histórias.Contadas e vividas

Acabo de ver a última temporada de Downton Abbey (sem spoilers, prometo!) e súbito me dou conta de algo simples, mas surpreendente, como geralmente são as grandes verdades que por vezes nos batem no rosto por anos, até que lhes voltemos o olhar. A verdade é que, independente do que escolhemos ser, somos construídos e, frequentemente, desconstruídos por boas histórias. Elas atravessam cada segundo de nossas vidas, desde os murmúrios que ouvimos ao nascer, passando pelas canções ouvidas na hora de dormir, até o glorioso momento em que podemos nós mesmos mergulhar no universo das palavras e imagens. Para cada um de nós o contato com a narrativa guarda um pouco de magia, esteja ela nas mãos de nossas avós ou nas páginas coloridas dos nossos primeiros livros. E assim,seres simbólicos que invariavelmente somos, aprendemos a dialogar com o tempo das coisas, nos costumes e linguagens que precisamos e queremos aprender...Mais do que isso: em cada capitulo da vida, aos poucos buscamos perceber a organização dos personagens, a mise-en-scène de cada momento, a fala adequada a cada ocasião..Crescemos. Mas continuamos sendo amadores, com bem pontuou a seu tempo, Sarah Bernhardt. E continuamos, ao longo da vida, a sermos preenchidos por histórias onde, por vezes, somos os protagonistas. Outras, meros figurantes. Lembro de, em criança, me encantar pelo que me parecia a mais bela de todas as funções:a do narrador. Afinal, era dele o poder de criar mundos, personagens, promover encontros e desencontros, fazer rir e chorar. Hoje, enquanto me percebo seriamente triste pelo fim de uma série, me dou conta de que ainda creio na mesma coisa:não pode haver magia maior do que , usando apenas a imaginação, convidar o outro(leitor ou espectador) a aproximar-se de seu mundo interior, pintando com as cores escolhidas uma infinidade de histórias e emoções com as quais é possível pegar o sujeito pela mão,esteja ele onde estiver e levá-lo a qualquer lugar...Se ele vai mergulhar ou apenas olhar de longe, isso ficará a cargo do tamanho da sensibilidade que terá... Quanto ao narrador, se tornará maior, na medida em que compartilhar um pouco (ou muito) de si com todo aquele que ousar se aproximar dele.....Não pode haver no mundo magia maior, a de tocar alguém que não se conhece, que não está a seu lado mas com quem , de algum modo e atravessando todas as barreiras de tempo e espaço,se está inevitavelmente de mãos dadas...

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

O corpo ainda pulsa

O corpo ainda pulsa
Sob camadas de pele o corpo ainda pulsa.
Protegido nos véus das máscaras e tintas, o corpo ainda resiste.
Dilacerado por milhares de enquadramentos,o corpo ainda deseja e se abre em convite.
Ao corpo não cabem dúvidas ou vergonha.
Ele é. Absoluto e desejante. Existe e basta.
Não tem tamanho ou proporção exata.
Gênero ou formato adequado.
Só potência e vontade.
Se tentam limitá-lo, o corpo escorrega por entre as coxias,desaparece num átimo e ressurge,lépido e faceiro,segundos depois."Aqui estou", ele diz."Aturem-me!"
E prossegue,a descoberto,mesmo ante tantas camadas de roupa.
Por baixo de tudo, os poros permanecem abertos e a pele convida ao toque, à revelia de regras e linguagens.
De que servem os símbolos,diz o corpo,se já sou movimento e transgressão?
De que me serve a moral, se permaneço incógnita aos que tentam me decifrar?
Sou, antes de tudo,potência e,ainda que tentem,ao menor descuido me lanço ao espaço,ergo meus braços e espicho minhas pernas, tentando alcançar o infinito.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

sobre vaidades..

Que os títulos sejam uma vaidade,esta certo Que o palco e os aplausos sejam uma vaidade,está certo Que o conhecimento seja uma vaidade,esta certo.. Que as leituras e práticas e habilidades discursivas sejam uma vaidade,também está certo.. Mas o que seria, afinal, a sensação indescritível de atravessar todas as barreiras de medo, suplantar o medo que vem mais do excesso de luz do que da escuridão e caminhar silenciosamente até o lugar onde te aguardam? E ali,sem firmeza mas com muita força de vontade,executar mecanicamente os passos que te ensinaram até que,de repente, seu corpo se liberte do medo, da imperfeição e das regras e seja, mais do que técnica,mais do que vaidade,mais do que perfeição e simplesmente voe?então.. Ousa!

sábado, 7 de novembro de 2015

Tudo que eu queria te dizer

Compartilho seu medo. Também me sinto sem pele. Também eu me sinto reconectar, quando sinto a sua presença. Também eu sinto dor. E fujo Mas a fuga se dá devido ao fato (falso), de que há o afastamento. Hoje me dou conta de que isso é impossível. pois seu lugar permanente é aqui dentro. Tuas palavras, nosso tempo, todas as dores, está tudo aqui. Impossível separar o que sou eu ou o que é você. A cada tentativa, pensei que iria morrer. E de fato devo,em alguma medida, ter morrido.A intensidade do encontro foi tal que me fundiu a você, fazendo com que mergulhasse no mais fundo de minha alma, fazendo-a sua.Mas o que eu ignorava,é que ela não deixava de ser minha, posto que misturados estamos desde sempre,desde o instante em que nos tocamos pela primeira vez,atravessando todas as barreiras de tempo e espaço.A força do vivido foi tamanha que quase me destruiu. E então sua ausência. E a dor,infinita,através dos anos.De repente, carne,ossos e pele estavam dilacerados pela inevitabilidade da tua falta e me restava caminhar sozinha,achava eu.Em desespero,busquei o mundo,os outros,o conhecimento aprofundado sobre as pessoas e o tempo, tentando aplacar a falta que você me fez. Em vão. Corajosamente, te busquei novamente e nossos corpos uniram-se, passo que nossas almas já o estivessem. E, de novo, a separação. Vi-me despencando no chão.Em vão te chamei, mas você não ouviu. E quando eu pensava que definitivamente tinha arrancado você de mim, você voltou, agora pelas suas próprias pernas, para me falar da grandeza do encontro para você também. Não pude evitar.Rompi todas as promessas que havia feito para mim mesma e me enchi de esperança.Era incrível como tudo parecia fazer sentido e o universo se abria misteriosamente diante de meus olhos. E de novo, como era de se esperar, você foi embora, eu achava. A dor novamente me dilacerou e, diante dos destroços, chorei por um tempo que me pareceu infinito. Súbito, meses depois, diante de um breve silêncio do cotidiano, a verdade me invadiu, com uma força inesperada: você não fora embora,nunca. Sempre esteve e sempre estaria aqui, fundido ao que sou, a tudo que sinto e que vivo. Mais do que corpos, somos duas almas que se fundiram, no intervalo que tempo e espaço abriram. tentar separar cada um é matar ambas as partes.não há saída. Assim, em minha busca por mim mesma é preciso aceitar que estarei inevitavelmente me deparando com você. Em cada gesto, cada ideia, cada palavra escrita, buscarei você,posto que sua essência já faz parte de mim.tentar fugir é negar a mim mesma, morrer em vida, deixar de respirar. Assim, talvez, a condição necessária de nosso caminhar seja que estejamos inevitavelmente separados um do outro para que tenhamos espaço para poder crescer. E talvez um dia, numa das curvas do acaso, quando estender minhas mãos, seu corpo possa estar de novo perto do meu. Por hora, me basta saber que está aqui, dentro de tudo que sou e sinto, sem que exista explicação possível para isso.Eu sinto.E essa verdade me põe,irremediavelmente,de mãos dadas com você. Por isso, meu amor, entenda que a separação de fato não existe e que não nada nem ninguém que possa ocupar o lugar que é seu, posto que seja daqui de dentro de mim que permito que você veja o que sou. Enquanto tempo e espaço constroem o cotidiano,aqui dentro seguiremos, imponderavelmente juntos. Com todo o meu amor,

Sobre mães e filhas

Acabo de ler Paula, romance de Isabel Allende sobre a doença que acometera sua filha e de todo o tempo entre o diagnóstico e a morte. É impossível não emocionar-se com a narrativa, permeada de construções inteiramente pautadas no afeto, em que se observa claramente a distensão do fio que paira entre a ficção e a realidade. Sobretudo, é doloroso para qualquer mãe de meninas. Não que os úteros sejam diferentes. Mas existe, penso eu, um elemento feminino que nos cerca,algo de misterioso, de denso, que transparece a partir do momento em que descobrimos outro útero vivendo dentro do nosso.Há um indefinível espelhamento, uma expectativa distinta, que se confirma quando se reflete sobre o significado de ter uma menina.E se filhos são,em si, milagres, há nas meninas algo particular, inexplicável, que mistura ao seu tecido um tanto de poético, visceral, permitindo que venham ao mundo pessoinhas feitas de cores únicas, exatamente como a minha filha. Sim, eu também sou parte desse milagre, que cresceu em minha barriga por nove meses e, de repente, antes que eu estivesse pronta, me contemplou por entre camadas de cílios longos e olhos negros, inescrutáveis. E se Simone de Beauvoir estiver certa, é preciso certo tempo, não só para ser mãe, sobretudo mãe de outra mulher, que se conectará a essa cadeia de úteros, gestando vidas e afetos por aí, mesmo que não ponham filhos no mundo. É preciso estar pronta para proteger-se e protegê-la, em um mundo onde o corpo feminino torna-se estratégia de marketing, moeda de troca, poço de visibilidades que nos inviabilizam. É preciso retirar das nossas palavras e gestos qualquer resquício de preconceito que possa, em qualquer medida, fazer sua filha acreditar que seu corpo deve ser inibido, enquadrado, limitado. É preciso ensinar, entretanto, a força, em comunhão com a ternura e deixar que os bebês se transformem aos poucos em pequenas fadas dançantes, que pulam pelo mundo, descobrindo-o. Deixar que seus dedos percorram todas (ou quase todas) as superfícies, mapeando espaços e construindo memórias e afetos. É preciso deixar que aprendam, o quanto antes, a sorrir e a andar de mãos dadas, consigo e com o mundo.Nesse momento, já não somos nós que as pomos no colo.Ao contrário. Somos acalentadas por elas. E quando as pernas e braços crescem e buscam o mundo, é preciso que aceitemos os gloriosos arranhões da infância. Logo piscaremos os olhos e os cabelos crescem, as pernas espicham, o quadril se arredonda e temos jovens mulheres entre nós. E então o medo. Como proteger e guiar alguém que já não nos demanda mais apontarmos a direção correta? Entre nós e elas, o mundo e toda sua capacidade de ser, a um só tempo, cruel e sedutor. Elas caminham, cometem erros. Choram. São enquadradas, em seus corpos femininos. Sofrem. E crescem, em poesia e ideias. Sangram.E sangramos junto com elas.E o tempo,que não cansa de transformar suas fisionomias, continua nos surpreendendo com a beleza de seus rostos. Súbito, olho seus cabelos longos, os olhos negros e me deparo com uma mulher, cunhada por poesia e ideias, no auge da vontade de crescer e mudar o mundo. E me remeto a Paula, filha de Isabel Allende, cuja vida fora interrompida por uma grave enfermidade. E tenho medo. Corro ao quarto de minha filha, na ânsia de vê-la, de conseguir protegê-la do correr dos anos e de todo mal. Contemplo seu rosto sereno enquanto dorme. E então compreendo a inúmera quantidade de “mortes” ocorridas em todo o tempo em que estivemos juntas. A do bebê moreno, agarrado a sua mãe adolescente, enquanto ambas crescíamos. A menininha que criava festas de aniversário em nosso quarto, a cada vez que eu voltava do trabalho. A da menina de cabelos cacheados, que corria pro meu colo ao menor sinal de perigo. A adolescente falante e inquieta, esticando os braços para criar asas e fugir de mim. Todas elas, de alguma forma morreram, mas se perpetuaram na moça de quase 19 anos, com uma determinação absurda, ante o sorriso meio irônico de sempre, que me faz sorrir sem saber porquê.E os olhos negros, que mergulharam em mim desde nosso primeiro encontro,há 18 anos. Em muitas, inúmeras coisas, essa mulher que se forma me ultrapassa,me supera, seja pela força ou por sua delicadeza. Do meu lado, continuo temendo e esperando o momento da próxima “morte” e qual faceta será a seguinte, modelada pelos ponteiros do relógio. No fundo, por trás das minhas lágrimas, contemplo seu rosto e vejo sorrirem dali todas as meninas que você e eu, filha, fomos e deixamos de ser. Estamos ali, você bebê e eu adolescente você criança e eu adulta (ou quase), eu e você aqui, nos limites e potências do crescimento. Ante o correr inescapável do tempo continuamos invariavelmente de mãos dadas.

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Desabafo

Acho que talvez eu tenha descoberto aquilo que quero:escrever, criar,pensar sobre a criação.Viver a arte de todas as formas...Cortejar o conhecimento, mas como aprofundamento de uma experiência de vida que precisa, tem que ser realizada sob a as camadas de mascara que normalmente utilizamos.Para isso será necessário retirar de si o componente fundamental de defesa:a pele.Feita de minúsculas células e centenas de camadas de convenções e mentiras, a carne nua que sangra é a unica capaz de absorver a contento toda a infinita profundidade da experiência humana.É preciso estar alerta, em todos os sentidos, para trazer à tona as vísceras de existência, fazer com que absorvam todo o oxigênio possível e dar-lhes moldura de criação artística. É preciso ser demasiadamente humano para ter a coragem de expor-se, de enfrentar olhares e palavras que cortam até o osso, posto que não encontram anteparo de personagens e desculpas...Não há defesa ou artifício quando se mostra exatamente o que se é.Para ser livre é preciso sentir que se morre a cada crítica,mas que se renasce sempre, sem ressalvas, sem freios, somente duas asas com as quais trilhar o único caminho possível: a arte como potência de vida.A vida, como potência da arte..

sexta-feira, 17 de julho de 2015

Territórios sensíveis



Há experiências que determinam caminhos, tão intensamente e de modo tão devastador que é impossível continuar sendo os mesmos após termos passado por elas... Nesse viés encontram-se definitivamente as práticas com as emoções e a arte...Na minha vida, através de muitos percursos, minha escolha sempre recaiu no cinema, como narrativa do mundo e de mim mesma.Até então eu acreditava compreender um pouco a natureza humana e que a comunicação responderia a todas as minhas perguntas, quaisquer que fossem elas.O que eu não sabia é que minha visão do ato de comunicar encontrava-se embaçada por formatos prévios, teorias diversas e alguma experiência prática, que me levavam a crer no poder transformador da comunicação, mas definitivamente não me prepararam para sua importância em situações extremas.Nada me preparara para ver e sentir de modo intenso a necessidade do afeto em um ambiente em que a dor e a morte podem estar escondidos em cada esquina.Nenhuma teoria poderia servir para explicar o que significa um sorriso de compreensão mútua em um lugar onde a própria presença do outro, ante um corpo fragilizado, pode parecer invasiva...Em uma realidade cercada pela busca incessante pela conservação da vida e onde pessoas e tecnologias se revezam numa guerra sem fim para ganhar mais um dia para as pessoas que ali estão, qual a importância da percepção, do sensível,da estética em face de tantas provações?Antes de cruzar o limiar da realidade palpável das doenças graves, lentas e dolorosas, eu acreditara que o lugar da arte frente à medicina era mínimo. Hoje, ainda que continue respeitando e valorizando a fundamental e muitas vezes inglória luta dos profissionais de saúde, consigo reconhecer que existe um lugar pra o “entre”, o relacional nesse campo de batalha onde se encontram todas as demais pessoas que também dedicam a vida a minorar o sofrimento alheio. E é nesse lugar que se encontra,entre outras coisas, a arte, não como criação e fruição estética, mas como um caminho, entre tantos possíveis, até o outro... Mais do que isso, como uma ação, pautada no afeto e no sensível, que se faz comum, posto que, através da arte eu consigo me reconhecer naquele que está em um leito de hospital. E é nesse lugar onde a comunicação se torna o elo possível de identificação que aproxima os sujeitos, para além da enfermidade. É na projeção de um filme ante rostos infantis, na atividade lúdica, no sorriso da educadora, que reside não somente o estar junto, mas o “ser junto”. Existência compartilhada que se estende para além dos pequenos pacientes envolvidos entre fios, tubos e químicas, indo até enfermeiros, médicos e demais profissionais e para os pais das crianças, devastados por uma enfermidade tão agressiva quanto seu tratamento... Em instantes, alguns pares de olhos se voltam para a narrativa da história projetada em uma cortina, tornando-se parte do filme... Por alguns momentos, na exibição do filme, cria-se um território distinto da dor, dos medicamentos, que parece romper os muros do hospital e levar pais e filhos a outro possível... Mais do que isso.No ato de propor uma experiência, há o dialogo , o contato com o outro, a mão que se estende, não para fazer de conta que a doença não existe mas, ao contrário, para propor que apesar da doença, todos nós continuamos existindo...Mais do que compreender o outro, trata-se de acolhe-lo.No curto espaço da enfermaria cria-se um lócus da afetividade, um território feito de sensível e de comum,onde as experimentações se cruzam, e os imaginários se comunicam no espaço dos leitos.....O cinema, nesse caso torna-se então o espaço entre, a ressignificação do lugar entre todos que dividem aquela experiência .Na medida em que se partilha o sensível, a comunicação é a trama que enreda a cada um, propondo nexos. Sua importância se dá na medida em que eu me reconheço não somente na dor do outro, mas no seu sonho, na sua emoção...Comunicar seria então dar um passo para minorar o sofrimento de quem enfrenta batalhas diárias, seja no combate a enfermidades como o câncer, seja sofrendo na própria pele seus efeitos devastadores...Além de “estar com”, no ato de ir até o outro e propor uma experiência sensível, há um componente fundamental de afeto que pôe em pé de igualdade educadores, pesquisadores e pacientes.Já não há mais observadores e observados, mas sujeitos inseridos em um mesmo território sensível e irremediavelmente humano.

domingo, 28 de junho de 2015

Nordeste

Nessa terra tão amada, de um amor doloroso e calmo que se faz eterno, me perco pra me encontrar,sempre.. Terra de som e cheiros, de mãos que trabalham e cores que dançam na minha retina, de culturas múltiplas,que batem no rosto como um desafio de repentista... Mesmo que eu vivesse mil anos não conseguiria descrever .... Na trama dos teus dias,milhares de rendas e fitas enfeitam casas e pessoas, bordam amores,encontros e desencontros de gente que vem de longe pra enterrar os pés na tua areia,nas tuas aguas verdes,sentir o vento limpar cada grão de poeira da alma... Quem me dera acordar todos os dias e assistir da janela tuas danças,teus bonecos de barro, tua gente que me sorri a cada esquina onde os sotaques e as palavras se misturam e me encantam , me chamam à praça,pra ouvir as músicas e versos,me demorar nos mercados e nas igrejas,ver as fogueiras que se armam sob o brilho das bandeirinhas e saias que giram,furiosamente.. Quem dera girar eu também, no meio da rua,enquanto passa o Maracatu... Resta a nós,os que não são daqui,observar encantados, na ansiedade de tomar parte, ,a evolução dos grupos,vozes e corpos que preenchem o peito, gravar no coração um pequeno fragmento de sonho e voltar pra casa, com a promessa de voltar em breve..Resta a poesia, que "não está nos versos, por vezes ela está no coração, e é tamanha a ponto de não caber nas palavras."Jorge Amado

terça-feira, 16 de junho de 2015

Sob os olhos dos outros ou: o que voce vai ser quando crescer?

Acordando de um sonho em que eu era chef de cozinha (quem me conhece, sabe que essa não seria uma opção muito legal. Pros outros) e logo me lembrei de um texto por aqui em que um menino pedia aos pais uma festa de aniversário em que o tema era a coleta de lixo e os garis. A reportagem denota grande ar de surpresa na escolha da criança, principalmente por parte dos garis, convidados VIP da festa. Como era possível em que um mundo com tantas representações mais nobres para heróis(como os populares médico,bombeiro,etc.) esse garoto escolhesse, preferisse, tivesse prazer em estar cercado por quem executa o dito “mais humilde”(assim mesmo , com mil aspas) dos serviços? E então me veio à cabeça uma série de fragmentos de discursos sobre escolhas profissionais ouvidas desde minha primeira infância. Não por acaso, sou filha de médicos e obviamente ouvi de muita gente (menos dos próprios, graças a Deus) por que diabos não escolhia o mesmo caminho dos meus pais?Não me encantava salvar o mundo através do meu conhecimento e de minhas mãos?Sim, me encantava. Sempre tive um orgulho desmedido de vê-los chegar muitas vezes usando os clássicos jalecos brancos, envolvidos em tarefas cotidianas em que a vida de muita gente estava sob o foco de suas decisões ou cuidando de grande parte de família. Apenas sempre percebi, desde os primeiros anos de idade, que intervir materialmente no corpo alheio não era para mim. Meu material sempre foi o simbólico. Fora o pavor de sangue, lógico, havia outra causa que me convocava, desde as primeiras histórias contadas pela minha mãe: a luta para combater a injustiça. Não por acaso ela sempre punha músicas de Caetano, Chico e Milton e me contava através delas uma infinidade de estórias sobre a história brasileira.. Sempre me pareceu bárbaro que houvesse um tempo em que não se pudesse cantar, não se pudesse falar e, supremo castigo, não se pudesse pensar. Estava criado o vínculo que fez com que desde muito pequena eu buscasse respostas às infinitas questões sociais que nos cercam e escolhesse, ainda que inconsciente, meu caminho profissional. Não foram poucas às vezes em que ouvi que deveria ser engenheira (porque fizera segundo grau técnico no CEFET), ou médica (porque meus pais eram médicos), ou mesmo advogada, para lutar pelas injustiças sociais. Não foram raras também situações em que minhas escolhas foram rechaçadas por incautos, pelo expediente de que ciências humanas não seria um modo digno (financeiramente falando) de sobreviver. “-Mas você não quer ser medica?”, diziam, perplexos... Não, não queria. E era plenamente apoiada pelos meus pais.Quando o assunto descambava pra arte então, tornava-se pior. Porque infelizmente, dada à conjuntura econômico-político-social-ideológica-preconceituosa nacional, ser artista, ops, fazer arte é hobby, reservado para uns poucos escolhidos, financeiramente saudáveis, com efeito. Para o restante, sobram as profissões com “algum futuro”. É impossível não lembrar da quantidade de vezes em que se falou que uma ou outra carreira estava morta, superada, (caso dos cineastas na Era Collor), da arquitetura ou do jornalismo na atualidade. Nesse cenário, reproduzem-se infinitamente os discursos, paternos principalmente, sobre o caminho que a pobre criança vai trilhar profissionalmente. Já assisti, chocada, crianças de seis e oito anos serem confrontadas com “vestibulinhos” (que conseguem ser ainda mais estúpidos que os vestibulares normais) e cobradas como adultos pela sua performance. Mais do que isso. Sob a desculpa de ajudar, muitos criticam as opções dos filhos, incitando-os a escolherem algo que “dê dinheiro”, fugindo da arte e do magistério como o “diabo foge da cruz”. O resultado são profissionais frustrados, encerrados em seus escritórios-consultórios-fábricas sem terem acesso ao indescritível prazer de fazer aquilo que se gosta, esperando pelas férias para poder vivenciar um cotidiano mais saudável e sonhar com a aposentadoria para, finalmente, voltar aos hobbies que tanto os fazem felizes. Conjuntura econômica influencia?Perfeitamente. Porém, sobretudo há representações que são cotidianamente coladas aos discursos do outro e que podem acabar, dependendo da sensibilidade alheia, gerando frustrações e infelicidade. Afinal, quem nunca ouviu falar daquele fulano, ou daquela fulana que largou tudo e foi rodar o mundo em um barco, em uma bicicleta, vendendo flores na praça ou coco na praia? Difícil esquecer nesse caso de uma conversa que tive com um vendedor de cocos que trabalhava perto do MAC (Niterói). AO me entregar o coco ele me disse (sorrisão no rosto): tenho o melhor emprego do mundo. Apontando para a magnífica praia de Boa Viagem ele continuou:- olha o meu escritório, olha minha paisagem diária. “Quando chego a casa, minha esposa nem consegue me aborrecer”, concluiu, me dando uma lição pra toda vida. Seu emprego não só lhe dava prazer,mas fornecia o necessário para que pudesse viver.Dava prazer e paz de espírito.E quantos de nós podem se orgulhar de trabalhar com paz de espírito?Muitas vezes transferimos para nossos filhos e crianças próximas as neuroses que ouvimos durante a vida, incitando-os a abandonar supostos “hobbies” por falta de retorno financeiro ou reconhecimento público. E criamos adultos infelizes. Pior:estimulamos os pequenos a competirem, enfrentando concursos desde muito pequenos, ensinando-os por tabela que precisam se destacar, serem vencedores, para sobreviverem.Esquecemos que, em algum lugar remoto, dormem as bailarinas, pintores, astronautas, artistas de circo, caminhoneiros que quisemos ser e alguém (sempre bem intencionado. #soqn) ou nós mesmos desconstruiu a marteladas de “bom senso” e “praticidade” em nome de um status, um nome, uma placa a exibir ao mundo. Não recordamos que primeiras bailarinas, artistas de sucesso, cientistas ou qualquer profissional feliz com suas escolhas enfrentou provações, derrotas, portas fechadas e narizes torcidos. Não queremos que nosso filhos sofram. E os condenamos a uma infelicidade pior, porque cotidiana, amparada em uma série de pequenas satisfações que nos afastam de nossa essência, daquilo que somos e queremos fazer. Sobram os discursos sobre concursos, empregos, realizações materiais dos rebentos, exibidos em prosa e verso por pais orgulhosos, que se desmanchariam talvez se, em vez de perguntarmos o que fazem seus filhos,perguntássemos:estão felizes?d verdade?Vejo ao meu redor poucas pessoas realmente felizes com suas escolhas, seu cotidiano e sua vida profissional. Fora todos os percalços e dificuldades pelas quais todos nós passamos, sempre há o momento de mudar de vida e, torrnando-se surdo a qualquer rotulo ou julgamento alheio, seguir o caminho que nos faz felizes. Infelizmente, aos 18 anos, quando começamos a amadurecer um bocadinho para escolher, somos confrontados com um sistema de acesso ao ensino superior cruel, injusto e que em nada prova nossas capacidades. E precisamos sobreviver. Ninguém nos conta do imenso intervalo que haverá entre as 8h(início do expediente) e as 9h do mesmo dia de trabalho, onde todo o cansaço,o desânimo e a frustração de nossas escolhas baterão à nossa porta e teremos vontade de sair correndo.Naquele momento, ainda que empoderados do melhor contra-cheque, estamos sós. É nesse momento de silêncio que precisamos ouvir aquilo que somos e termos a coragem de fazer escolhas. A meta não deve ser uma cobertura duplex ou um carro do ano (ainda que isso faça feliz um bocado de gente), mas o sentimento de fazer um bom trabalho, coerente com o que somos e acreditamos, em uma rotina onde o tempo não pese em nossas costas, ele simplesmente passe. Um trabalho onde o cotidiano não nos golpeie no estômago quando pensamos o que poderíamos ter sido. Sempre estamos sendo. Sempre é tempo de ser outras coisas.Que possamos ter em mente como meta o sorriso do vendedor de cocos de Niterói em toda sua sabedoria e digamos um sonoro NÃO a todo aquele que pretender julgar nossas escolhas profissionais.Que saibamos que a meta tem que ser , impreterivelmente, a felicidade como realidade cotidiana e que levemos esse ensinamento a nossos filhos, dando-lhes autonomia para buscarem de algum modo aquela deliciosa e rara sensação de estar no lugar certo, fazendo o que se gosta, sendo o que se é.